Arquivo de Categorias: Democracia

O fenómeno woke e as caricaturas

A última coluna de opinião de António Guerreiro é sobre o fenómeno woke. Como sei que muitas pessoas cultas e informadas não sabem do que se trata – nem toda a gente pode estar permanentemente atenta à infinita e cada vez mais rápida renovação dos léxicos – faço copy-paste do primeiro parágrafo do artigo da versão portuguesa da Wikipédia, inevitavelmente sintético e limitado

«Woke, como um termo político de origem afro-americana, refere-se a uma perceção e a uma consciência das questões relativas à justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano “stay woke” (em português: continua acordado ou desperto), cujo aspeto gramatical se refere a uma consciência contínua dessas questões. No final da década de 2010, woke foi adotado como uma gíria mais genérica, amplamente associada a políticas identitárias, causas socialmente liberais, feminismo, ativismo LGBT e questões culturais (…). O seu uso generalizado desde 2014 é resultado do movimento Black Lives Matter.»

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    Dar ou não a cara na rede

    Como faz a generalidade das pessoas que têm muitos e constantes contactos fora do seu círculo próximo de vida e de trabalho, recorro inúmeras vezes aos motores de pesquisa ou às redes sociais para conhecer melhor quem me está a contactar ou quem pretendo contactar por isto ou para aquilo. Por vezes para ver por onde anda quem um dia conheci e gostaria de rever. É essencial ler a sua pegada: saber minimamente o que faz ou fez, conhecer-lhe um pouco o rosto, ter um mínimo de referências que nos permita identificar com razoável dose de segurança com quem queremos falar ou quem a dado momento nos procura.

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      Da aventura de ler ao desvario de rever

      Quando comecei a decifrar as letras tornei-me logo um leitor voraz. Por isso a minha perspetiva do mundo confunde-se com a imaginação, a dúvida, a experiência e os saberes proporcionados pela leitura intensa e quotidiana. Sem ela, jamais teria conhecido tantos lugares distantes, nunca teria voado sobre falésias e despenhadeiros, navegado até outras épocas e planetas, conversado com personagens de romance ou medido a extensão do real e do irreal. Também pouco ou nada saberia da história do mundo e do seu legado, de outras línguas, de filosofias que libertam, do imperativo das utopias e da infinita diversidade do humano nas escolhas e na subjetividade. Habitaria apenas realidades expectáveis, servo de destinos que não entenderia e jamais poderia contrariar.

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        A morte exagerada do PCP

        Escuto Ana Sá Lopes, analista com a qual na maioria das vezes concordo, afirmar num podcast que «num prazo de 20 anos poderemos assistir à extinção do PCP». É claro que duas décadas são muito tempo, e hoje tudo muda a mil à hora; todavia, sem ter qualquer simpatia por um dos últimos partidos comunistas europeus ortodoxos que ainda mantém algum peso social, tendo aqui a recorrer à ultracitada frase de Mark Twain sobre o exagero que tinham sido as notícias sobre a sua própria morte. A matriz, autoritária em política externa e conservadora nos costumes, que domina o partido, tenderá com toda a certeza – e sem estar aqui a fazer adivinhação – a ver-se transformada. Não de dentro para fora, pois boa parte dos seus mais rígidos militantes são precisamente muitos dos mais novos, mas antes de fora para dentro, em função da mudança social e, como dizia Cunhal, «da vida».

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          Waters na sua franja

          O músico Roger Waters, um dos fundadores dos antigos Pink Floyd, é claramente uma pessoa com uma orientação política incomum no seu meio. Está no seu pleno direito, e algumas das posições que toma até poderão ser em parte justas. Mas duas delas são obviamente erradas e nocivas, embora ambas coincidentes com as que defende como suas aquela franja, autoproclamada «de esquerda», para a qual tudo o que se oponha aos EUA é por uma boa causa e merece defesa, seja quem for que o faça e a forma como o faz.

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            «A luta» não é sempre justa

            Ao contrário do que ocorre sob as ditaduras, quando todos os meios para combater a tirania e a repressão são perfeitamente legítimos, em democracia o objetivo da luta social, em especial a de rua, não é derrubar o regime, mas sim defender medidas justas, procurar alargar e melhorar os direitos, e aperfeiçoar a própria gestão da vida coletiva. Por este motivo é muito importante distinguir quem sai da sua concha pessoal para combater coletivamente por causas e interesses legítimos, protestando e reivindicando, se necessário com força e veemência, de quem tem como objetivo da luta de rua enfraquecer um governo democrático, fazê-lo cair e trocá-lo por outro, a seu contento. De preferência, um que faça tábua rasa daquilo que foi maioritariamente decidido em eleições livres. Não existe comparação ou conciliação possível entre as duas escolhas.
            [originalmente no Facebook]

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              Um ano de sofrimento, hipocrisia e esperança

              Completa-se hoje um ano sobre o início da guerra na Ucrânia, determinada pela súbita invasão russa imposta pela política imperial e belicista de Vladimir Putin. Um ano que, na altura, apressados analistas, alguns deles oficiais generais, anunciavam ir durar «no máximo, uma semana». Um tempo determinado em primeiro lugar pela sistemática e brutal destruição de boa parte do país invadido, pelo imenso sofrimento do seu povo, pela devastação de vidas e de esperanças, e por um número, ainda indeterminado, mas na escala dos largos milhares, de mortos, entre civis e militares. Contando-se também entre estes muitos cidadãos russos, alguns deles mercenários e ex-presos de delito comum incorporados com a promessa de um perdão, embora a maioria sejam recrutas e reservistas incorporados à força, às dezenas de milhar, pelo regime de Moscovo.

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                Fazer os outros de parvos

                Parte dos partidos e organizações que integram o nosso espectro político, de um extremo ao outro, manifesta muitas vezes uma importuna tendência para afirmar pontos de vista que tendem – perdoe-se a crueza – a fazer os outros de parvos. A prática ocorre mais em algumas forças que em outras, e por certo não em todas, mas é muito negativa para a democracia, sobretudo quando vem de correntes que se bateram e batem pela justiça e pela igualdade. Consiste em afirmar ideias que qualquer ser pensante, informado e honesto consigo mesmo sabe que não são verdadeiras, mas esses setores insistem em proclamar ‘urbi et orbi’ como indiscutíveis verdades.

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                  Paz não pode ser injustiça

                  Trazer a paz diariamente na boca, tomando-a como um valor absoluto, mas sem distinguir a que se conquista e funda na justiça, na equidade e na democracia, daquela outra que se baseia na opressão, no direito do mais forte e na tirania, é, ao mesmo tempo, prova de hipocrisia, cegueira e cobardia. A paz é um valor essencial da dignidade humana, sem dúvida, e deveria corresponder à ordem natural do mundo, mas não pode ser alcançada e mantida à custa da indiferença e da injustiça.
                  [originalmente no Facebook]

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                    Para além e para aquém de Kiev

                    Ao longo de vários séculos a população da Europa viveu atormentada por uma sombra ameaçadora que os historiadores designaram «o medo do turco». Isto é, o constante receio subjetivo de uma conquista otomana que virasse o seu mundo ao contrário. Ao mesmo tempo, setores da elite cultural ocidental foram alimentando uma dimensão de fascínio por esse universo, instalado a oriente, que a maioria desconhecia tanto quanto temia. Num e noutro dos casos, o sentimento dominante era o de grande estranheza perante hábitos, crenças, valores e formas de organização política e social substancialmente diversos daqueles que, apesar da pluralidade de regimes e sociedades, eram basicamente compartilhados pela generalidade dos europeus.

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                      O espírito gregário e a pobreza da opinião

                      Uma das boas vantagens que tem trazido a massificação da Internet e das redes sociais traduz-se na forma muito fácil e rápida como estes dois fenómenos contemporâneos tornaram possível que praticamente qualquer pessoa seja capaz de disseminar informação pertinente e de partilhar a sua própria reflexão crítica. Com múltiplos e complexos problemas à mistura, e com muitos erros e desvios também, alguns deles gravíssimos, sem dúvida alguma, mas não são eles que estão em causa neste apontamento. Aquilo que aqui se pretende sublinhar é que essas capacidades positivas são em boa parte contrariadas pelo facto de um grande número de homens e de mulheres, tendo capacidade reflexiva e conhecimento para poder exprimir opinião de uma forma sustentada e crítica, ser incapaz de dialogar com ideias e problemas que transcendam aqueles de momento invocados, no domínio do imediato, no interior do seu próprio universo político.

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                        As circunstâncias dos abusadores

                        Dois apontamentos mais sobre a revelação, agora em Portugal, de um número bastante elevado – ainda assim, sem dúvida, muito inferior aos dos casos não testemunhados ou que foram e são recorrentemente silenciados, que jamais verão a luz do dia – de vítimas de abusos sexuais praticados nas últimas sete décadas com a completa impunidade da generalidade dos seus perpetradores e da instituição eclesiástica que os enquadrou e lhes conferiu o poder para poderem abusar. Uma instituição, forçada pelo ar do tempo e pelo próprio papa a enfrentar o tema, e que agora vem lamentar o ocorrido sem todavia abordar com clareza formas de punir os criminosos ainda vivos e de compensar minimamente as suas inúmeras vítimas. Não serão, por certo, apenas desculpas e piedosas orações a resolver o seu terrível lastro.

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                          Calamidade e hipocrisia

                          O número de vítimas mortais do terrível sismo que afetou o sul da Turquia e o norte da Síria vai já, neste momento, em mais de 5.200 pessoas, estimando-se que possa ultrapassar os 20 milhares. O volume de feridos e desalojados será colossal, numa paisagem de devastação, horror e sofrimento que chega em imagens brutais ao conforto das casas de quem, neste lado do mundo, se sente seguro e protegido. No caso da Síria, com a agravante de se tratar de uma área em larga medida controlada pelas forças que combatem Hassad e eram já um constante alvo dos ataques militares de Damasco.

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                            A justa luta dos professores sob um olhar crítico 

                            O atual alargamento dos processos de comunicação e a crescente facilidade de produzir opinião fazem com que, quando se abordam de uma forma analítica e não linear temas que suscitam grande controvérsia, facilmente quem sobre eles escreve possa ser mal interpretado. Esta realidade relaciona-se também com formas ligeiras de leitura, vendo-se apenas aquilo que se deseja ver, a branco ou preto, muitas vezes sem ponderar a totalidade do argumento. Por isso este texto começa com uma necessária cautela: o seu autor é inteiramente favorável à luta dos professores de todos os graus de ensino por condições de vida e de trabalho que de há muito se têm vindo a desvalorizar. Mais: não lhe parece que ela consiga algo de positivo se não for levada a cabo de uma forma unitária e vigorosa, impedindo os seus interlocutores de a desvalorizarem.

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                              A autoria como gato por lebre

                              Até ao século XVIII a condição de autor de uma obra escrita era de tal forma desvalorizada que o seu nome surgia no rosto sempre na última linha em caracteres muito pequenos. O destaque era conferido ao patrono – quem pagava o trabalho ou a quem a obra era dedicada -, de seguida a um título invariavelmente muito longo, e depois ao impressor, que também editava. O justo triunfo do autor foi, em larga medida, um produto do movimento romântico e, se a ele raramente passou a corresponder uma compensação justa pelo trabalho – salvo se for um best-seller, daqueles que se vendem hoje nas estações de comboio e nos hipermercados, ao lado de pastilhas elásticas e bolachas -, ocorre ao mesmo tempo um reconhecimento visual do seu papel, sendo agora identificado com clareza.

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                                Pela militância

                                Li numa reportagem que a Iniciativa Liberal, atormentada por alguns fantasmas, se recusa a designar os seus inscritos como «militantes», antes lhes chamando «membros». Amigos do Bloco de Esquerda corrigem-me de vez em quando fazendo-me ver, aparentemente com orgulho, que também não têm «militantes», mas «aderentes» ou «ativistas». Por mim, continuo a considerar nobre e de profundo sentido a palavra «militante», historicamente associada, sobretudo na grande área da esquerda, a quem combate por uma causa, dando por ela o melhor de si, diariamente e com empenho. Militantemente, portanto. Se alguém pode ver como negativo o qualificativo, associando-o a uma relação de dependência e de apagamento individual, esse será um problema do partido ou do movimento que a impõe, ou então da pessoa que dessa forma a vive e aceita, não da nobre e necessária condição de militante. Porque sê-lo foi e permanece uma forma de liberdade e de cidadania.
                                [originalmente no Facebook]

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                                  Promiscuidade entre política e negócios

                                  Apesar de determinada por episódios recentes envolvendo dois ou três membros de segunda linha do governo do Partido Socialista – de uma forma que, sendo inaceitável, foi artificialmente ampliada pelas oposições, em especial as de direita, empenhadas em generalizar as críticas a partir de casos singulares – existe nas democracias contemporâneas, e na nossa também, um problema sério que pode ser relacionado com esta situação. Diz respeito ao modo como certo número de pessoas, em lugares de responsabilidade pela coisa pública, e que deveriam colocar em primeiro lugar o espírito de serviço à comunidade que determinou a sua eleição ou escolha, se envolvem ao mesmo tempo em atividades que visam sobretudo o rápido enriquecimento pessoal, tornando-se esta uma das fontes da crescente opinião «antipolíticos».  

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