Arquivo de Categorias: Devaneios

Memória supérflua

Canada Dry

A memória supérflua do meu pré-Abril está cheia de sabores, odores, sonidos. O gosto do refrigerante Canada Dry, consumido como sucedâneo da acossada Coca-Cola. O dos chocolates Candy-Bar com recheio, nos quais fui viciado. O do melão verde escuro vendido porta-a-porta. O cheiro a tinta do Século Ilustrado que saía aos sábados. E o do creme Benamor usado pelas senhoras. O da cola Peligon. O da graxa para sapatos nas manhãs de domingo. O compasso dos tangos e pasodobles no Programa da Manhã da Emissora Nacional. Os Shadows a tocarem Apache. O Nat King Cole. A Filarmónica transpirando Verdi atrás do turíbulo de Agosto. O fado no rádio de pilhas. O toque de caixa no 10 de Junho. Como tudo passava devagar e na aparência nada sucedia, havia tempo para registar os detalhes. Ainda à sombra do retrato do velho.

    Devaneios, Etc., Memória

    Made in Denmark

    Sesta

    O governo da Dinamarca prepara-se para transformar a sesta num direito dos trabalhadores das áreas da Saúde e da Assistência Social. Este será mesmo remunerado, embora não possa ultrapassar os vinte minutos diários. A medida foi já adoptada, a título experimental, em 1800 empresas privadas de outros sectores. O direito a um dia de baixa por morte de animais domésticos ficará também consagrado na lei geral do trabalho. Tanto por fazer e nós aqui a perder tempo com o não-sei-quantos rangel e o professor assertoado.

    Mais ou menos 24 horas depois – Recebo um mail da Joana Lopes, que, neste momento no Camboja, se choca com estas preocupações quase banais. Transcrevo uma frase sem lhe pedir autorização: «Será possivel, viável, um mundo em que se possa dormir a sesta sem que outros (aqui) trabalhem 364 dias por ano, nem se sabe quantas horas por dia? E em que os primeiros ainda se queixam se as empresas são deslocalizadas para dar de comer aos segundos?»

      Devaneios, Etc.

      A haka dos impostos

      Haka

      A decisão da Direcção-Geral dos Impostos no sentido de chamar o actual treinador da selecção nacional de râguebi, Tomaz Morais, para numa intervenção sobre liderança motivar os seus funcionários, é uma mina para qualquer blogger com falta de assunto. E funciona para o cidadão contribuinte como um preocupante gesto de intimidação. Vou já regularizar os meus impostos antes que me apareça pela frente um funcionário hipermotivado, com espírito de liderança e espadaúdo.

        Devaneios, Etc.

        Coimbra radical

        Só Deus sabe como aprecio durante 60 minutos em cada ano a música do Conjunto Diapasão (em particular a voz de veludo martelado do vocalista Marante), como abomino música sertaneja (os empregados do Gauchão também conhecem este ódio pessoal) e como experimento sentimentos assassinos quando sou forçado a ouvir a vozearia ululante acompanhada de ferrinhos e acordeão que o Estado Novo nos doou como «folclore do bom». Mas ouvir tudo isso em sistema random, a partir de colunas potentíssimas e mais altas que o Pau Gasol instaladas no hipocentro da universidade mais antiga do país, ao mesmo tempo me esforço até ao limite por conseguir dar uma aula debaixo de tal barragem de som, é experiência que tem qualquer coisa de transcendental. Aconteceu ontem à tarde e acabei a aula a falar da grande Maria do Carmo Miranda da Cunha, mais conhecida como Carmen Miranda.

          Apontamentos, Coimbra, Devaneios

          Degustar pizza em Pyongyang

          «Os cozinheiros italianos foram levados para uma base militar de alta segurança onde perceberam que a missão seria ensinar três oficiais do exército a confeccionar pizzas». «O nosso povo também tem de ter acesso a esta comida conhecida internacionalmente», disse na ocasião ao jornal japonês Chonson Simbo o gerente do restaurante, citando o próprio Kim Jong-Il. Para saber mais, siga-se a notícia do Público online sobre a abertura de uma pizzaria em Pyongyang.

            Atualidade, Devaneios, Recortes

            L’Homme Désespéré

            Gustave Courbet

            Aqui se oferece um retrato do Senhor Gustave Courbet, artista antissocial merecidamente mal visto junto das melhores famílias e das forças vivas da cidade de Braga e seu termo, pintado pelo próprio nos anos de 1843-1845. Nele poderá já o fiel leitor perscrutar os sinais visíveis de uma frouxidão do carácter, de uma ductilidade dos princípios, de uma atitude de reprovação dos valores mais lídimos da sociedade, em harmonia com uma rejeição da propriedade, um sacrílego ateísmo e uma abjecção dos valores morais que jamais renegou, da qual é prova a sua participação na destruição da Coluna de Vendôme durante os infaustos acontecimentos da tristemente célebre Comuna de Paris, merecendo pois o legítimo opróbrio e a justa perseguição movida pelas autoridades que têm por dever a manutenção da serenidade dos espíritos e a necessária conservação da ordem pública.

              Devaneios, Olhares

              Retaliação

              A gaulesa Encyclopaedia Universalis, edição de 2009, contém uma entrada sobre Luiz Nazario de Lima Ronaldo e outra sobre Ronaldo Assis de Moreira «Ronaldinho». Não tem uma sobre Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro. Penso que se trata ainda de uma retaliação pelo facto de, durante a Guerra da Sucessão de Espanha (1702-1714), termos apoiado um Habsburgo contra um Bourbon. Estes franciús são muito vingativos.

                Devaneios, Etc., História

                ♪ Last Goodbye (um post triste)

                escarletxi

                Miss Johansson, a moçoila trigueira que impressiona favoravelmente 90% dos homens de meia-idade (e 89% dos outros), afinal canta um bocadinho pior ainda – ah, aquele «it’s over, it’s over» em re sustenido maior! – do que cantava outrora a Dra. Marilyn. Estarei errado?
                [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2009/02/17-scarlett_johansson-last_goodbye.mp3]

                  Devaneios, Etc., Música

                  De Ur a Alguidares de Baixo

                  J. L. Saldanha Sanches disse a noite passada no programa de televisão da outra senhora que «não há obras públicas sem saco azul». Faz parte da ordem natural das coisas e não existe crise económica ou política antidespesista que a possa contrariar. É assim pelo menos desde o tempo dos sumérios e dos seus construtores de zigurates. Porque haveríamos nós de ser diferentes?

                    Apontamentos, Devaneios

                    It’s a Mad, Mad, Mad, Mad World

                    Mad, mad, mad, mad world

                    Obama «não tem a letra M nas suas iniciais». Não tem mas deveria ter. Sim porque «M poderia ser» o de Martin Luther King, o de Mahatma Ghandi ou o de Mandela. E também porque o M de Obama é, «à escala nacional», o M do Movimento Esperança Portugal, e, claro o de Marques, o seu Meritório presidente. Porque ambos concitam «dois grandes desígnios», que são «Esperança e Mudança». E é afinal no MEP – não esqueçamos, o prometedor partido de Laurinda «M» Alves («Quisque cursus ligula ut nunc»?) – que se reúnem, em Portugal, «aqueles que em conjunto com muitos outros deram a vitória a Obama». Tudo isto (e muito mais) é-nos revelado, «como o devido respeito» (como diria Manuel Monteiro, outro Maluco da política que também abusa do M), aqui na página oficial do MEP. [sigam ambos os links que não se arrependerão]

                      Apontamentos, Devaneios

                      Figuras de linguagem

                      Pensador

                      «Alberto João Jardim vai estar no dia 23 no Clube dos Pensadores.» Não sei bem qual a figura de linguagem que poderemos aplicar a esta frase que chegou e à situação que ela indicia. Será o paradoxo? Será o eufemismo? O disfemismo? Talvez a hipálage, essa atribuição a um ser ou coisa de uma qualidade ou acção pertença de outro ser? A personificação, porventura? E a hipérbole, a sinestesia, a alegoria? Servirá alguma delas? Ou será preferível o animismo, que impõe a concessão da vida a seres inanimados? Talvez uma apenas, ou todas elas? A escolha é difícil, mas jamais servirá a ironia. Será melhor pensar com calma.

                        Atualidade, Devaneios

                        Footurismo

                        O futuro

                        Portugal associou-se hoje à Espanha para lançar uma candidatura conjunta ao Mundial de Futebol de 2018. Confesso que nesta altura tenho dificuldade em pensar em qualquer coisa projectada para um futuro tão remoto, mas talvez seja por isso que não sou presidente da Federação nem me deixam entrar no clube de bridge. Quem tenha a capacidade previdente de projectar com antecipação aquilo que os outros irão sonhar no futuro sabe muito bem que o mundo pula e avança com bolas coloridas (e operações financeiras de longa duração). Além de que nessa altura já teremos o TGV em condições de darmos um saltinho a Barcelona a ver a bola, regressando a casa a tempo de ver o Prós e Contras. Construir o futuro é isso mesmo, antever. E depois há que continuar a trabalhar, levantar a cabeça e olhar em frente. Nós, maledicentes e esquerdistas, é que não estamos a ver a coisa e só temos pensamentos negativos. Mas calar-nos-emos quando ouvirmos o ruído das obras e virmos o povo em êxtase, a saltar, a saltar, as bandeiras a abanar.

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                          Gente imensa

                          Intelectuais

                          Em Intellectuals – um livro já com mais de vinte anos, pronto agora a sair em edição portuguesa – o historiador e jornalista britânico conservador Paul Johnson inventaria as características recorrentes que considera próprias de quem vive aquela condição. Serão estas, aliás, que quase sempre as transformam em figuras públicas, muitas vezes singulares e admiráveis, mas que na vida privada se transmutam em seres falíveis ou execráveis. Eis algumas dessas qualidades-natas (por ordem alfabética para que ninguém se sinta prejudicado): agressividade, ambição, auto-comiseração, auto-convencimento, cobardia, credulidade, crueldade, egoísmo, falsidade, hipocrisia, indolência, ingratidão, intolerância, irascibilidade, manipulação, misantropia, oportunismo, rudeza, snobismo e vaidade. É preciso ser-se imenso, e ainda imensamente competente, para aguentar com tanto atributo em cima.

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                            A voz do povo

                            Tintim e Haddock

                            Que me perdoem os companheiros bloggers que voltam à carga, perplexos ainda, ou confiantes na singularidade da descoberta, sobre se Tintim, um dos nossos heróis do século XX, era ou não era gay. Mas qual é a dúvida se, ao digitarmos «tintin gay», o Google resolve devolver-nos 455.000 links?

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                              Proletas

                              O Proletário

                              N’A Bola de ontem: «[O goleador Liedson] atingiu a marca de Yazalde, homem que nasceu num bairro pobre da Argentina, vendeu jornais, depois bananas e mais tarde ganhava a vida a picar gelo. Até nisso há algo de semelhante entre ambos: não há muito era Liedson repositor de armazém…»

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                                A FNAC não tem cheiro

                                O Leitor

                                Bem sei que a imagem está corroída até à carcaça, mas a vida nunca é feita de experiências únicas. Sempre tive uma espécie de fixação lasciva no papel impresso. Mantinha estimulantes experiências olfactivas quando na camioneta das seis da tarde chegavam à loja, atados com um cordel de sisal e de rótulo fixado com uma cola escura, feita à mão, os rolos de jornais impressos em Lisboa na madrugada anterior. Outra, mais preciosa, encontrava-a nos fundos de uma casa de ferragens que vendia também artigos de papelaria, quando lá ia dar cabo das economias da semana em revistas de quadradinhos e carteiras de cromos. Logo que comecei a frequentar livrarias e bibliotecas que não conheciam ainda o vício da limpeza a aspirador de alta voltagem e a modernice da desinfestação química, passou a dar-me um prazer particular sentir aquele cheiro único a folhas novas e usadas, cobertas de imagens e sinais, capas coladas ou cosidas, mapas e cadernos, dedadas das pessoas, aparas de lápis e marcas de insectos. Elas transformaram-se então em alcovas peculiares, lugares para a consumação do vício solitário da leitura, da contemplação orgástica das pilhas dos livros, da apalpação das lombadas. Ainda me entrego silenciosamente a tais práticas, admito, em certos alfarrabistas, em velhas livrarias de província, e noutras, raras, que vou encontrando fora de portas. Existe por isso qualquer coisa de estranho, de enfadonho, insípido e incolor, nas estantes dos hipermercados de livros: elas já não têm sovacos, não cheiram, e, por isso, não dão gozo. Vício antigo e que vai desaparecer, o papel impresso é como aquelas meias de vidro com forte percentagem de fibra e costura na parte de trás, que fazem um ruído peculiar quando roçagam uma na outra: estão fora de moda mas não deixam de abrasar. Ou estarão de novo na moda e eu, demasiado concentrado na leitura, ainda não dei por isso.

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