O Rui Reininho é, admito, um rapaz da minha geração. Ou é um rapaz, ponto – . –, pois sou ligeiramente mais velho e, posso apostar duas minis, enquanto ele aprendia a soletrar já eu multiplicava as dezenas. Talvez por isso me amolece ouvi-lo agora, do lado de cá do milénio, com rugas, cabelos brancos e a voz completamente fanada. A arfar quase tanto quanto eu quando subo três lanços de escadas. Transmutando uma cantiga parvinha e preguiçosa (as Doce, lembram-se?), numa canção pop triste e enorme. E 100% nocturna. É ou não é?
Música: Rui Reininho – Bem Bom [Companhia das Índias]
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Toda a gente lembra na altura o impacto da silly season, mas são menos os que dão o devido valor à sua sequela natalícia. Nesta época do ano multiplicam-se de novo as trivialidades, os desejos de «muita paz no mundo», as receitas de cozinha que zombam do controlo do colesterol e as reportagens sobre personalidades que supostamente devemos admirar por dedicarem parte da sua vida a tarefas caritativas e a eventos de sociedade.
Um bom exemplo encontra-se no número de Dezembro da revista Homem Magazine, em larga medida dedicado à figura mortalmente enfadonha e desengraçada de Carlos de Inglaterra. Leio a secção de «perguntas indiscretas» e sinto-me de novo em Agosto:
Pergunta: Conhecido ambientalista, por que razão o Príncipe de Gales conduz um Bentley e é proprietário de um Aston Martin?
Resposta: Não é escolha do Príncipe deslocar-se num Bentley. O automóvel é necessário para alguns compromissos por razões de segurança (…). Normalmente o Príncipe e a Duquesa da Cornualha deslocam-se num carro oficial, um Jaguar XJ Diesel. Também se desloca em carros diesel quando está no campo.
Pergunta: É verdade que o Príncipe de Gales tem sete ovos cozidos à mesa do pequeno-almoço, embora coma apenas um?
Uma das mais enfadonhas canções de Natal – que escuto sempre com uma certa sensação de entorpecimento físico e mental – é também uma daquelas que mais continua a ouvir-se como fundo sonoro dos corredores dos pequenos, médios e grandes centros comerciais para o mês de Dezembro. Tanto tempo depois de surgir, em 1942, no musical Holiday Inn (um filme só com brancos que a televisão portuguesa de canal único passou dezenas de vezes), White Christmas, de Irving Berlin, permanece, na voz branda e xaroposa de Bing Crosby – ou em outras mil versões –, como «sinónimo de Natal» e um dos temas fora do tempo que, a par da Silent Night ou de Let It Snow, somos forçados a ouvir até à náusea nas voltas consumistas que a quadra nos obriga a dar. Nada tenho contra o Natal e o seu «espírito», mas, honestamente, preferia vivê-los ao som de Paranoid.
A mais extrema miscigenação cultural já chegou aos nossos call-centers. Hoje atendeu-me uma menina da «assistência ao cliente» da Zon que combinava claramente, e com toda a tranquilidade, a fala da zona sul da cidade de Dnipropetrovsk com o mais lídimo sotaque tripeiro da freguesia de Santo Ildefonso. Para além de me ter falado umas vinte vezes da necessidade de «restauracionar» o software.
Hoje não fui «para Tábua», mas parei à beira da estrada para almoçar num daqueles restaurantes onde é sempre possível encontrar um certo e determinado padrão de português: aquele para quem os prazeres da vida não mudaram muito desde os tempos do Doutor Oliveira do Vimieiro. O bacalhau com todos continua a ser o bacalhau com todos, a Água das Pedras a Água das Pedras, o Benfica o Benfica, e o leitão da Bairrada o leitão da Bairrada. Parei pois a pileca num daqueles comedouros nos quais, logo à entrada, percebemos não estar na Finlândia ou em Singapura: homens morenos, de bigode farto e fato domingueiro, em idade de pré-reforma, as esposas com aspecto de esposas a quem o caro-metade apresenta sempre como «a minha senhora» (para não a confundirem com «a outra»), nem um único jovem à vista e meia dúzia de crianças com ar de quem espera desesperadamente por crescer para se livrarem daquela chatice domingueira.
Claro que eu ia também à procura do meu pleonástico lacãozinho, mais a sua pele crocante, mas tive um mau pressentimento quando vi à entrada um grande pano anunciar o «Convívio de Natal dos Amigos dos Mercedes». E mal entrei no estacionamento reparei no contraste entre a minha viatura utilitária amolgada do lado direito e a enorme quantidade de automóveis orgulhosamente reluzentes – prateados, brancos, pretos, grenás – da mesma marca da qual a Janis Joplin pedia ao Senhor um só para si («Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz? / My friends all drive Porsches, I must make amends»). Mas sou um bocado distraído e não liguei. Lá dentro, contudo, percebi logo que a fauna era outra que não a costumeira: homens morenos, de bigode farto e fato domingueiro, em idade de pré-reforma, mas todos com os sapatos convenientemente limpos e reluzentes, as esposas com aspecto de esposas a quem o caro-metade apresenta sempre como «a minha senhora» (para não a confundirem com «a outra») ostentando vistosos colares de pérolas, nem um único jovem à vista e meia dúzia de crianças com ar de quem espera desesperadamente por crescer para se livrarem daquela chatice domingueira. O ruído era enorme, o cheiro a perfume era intenso, a única mesa livre ficava junto aos lavabos, e não tive outro remédio senão dar meia volta e partir à procura de outro poiso. Trauteando mentalmente: «Worked hard all my lifetime, no help from my friends, / So Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz?». Não há nada como um domingo de chuva na estrada. E não há país como o meu.
Não sei como é possível falar-se tanto da Grécia e dos seus problemas contemporâneos sem evocar, ainda que en passant, a mensagem subliminar e eterna dos roqueiros progressivos filhos de Afrodite. Lançada em 1968, recapitule-se, nos tempos sombrios dos coronéis de Atenas.
O partido-da-língua-de-pau não muda. Enquanto os outros apoiam ou aplaudem, ele «saúda» sempre. E se os cumprimentados o merecerem, «saúda calorosamente». Quando os restantes definem metas, ele possui «objectivos claros». Se os mais falam da experiência que vão ganhando, ele diz «a vida ensina». Quando os outros apresentam ideias ele «reafirma a sua base ideológica». Se falam de discussão, ele prefere «um amplo e profundo debate». Se organizam encontros, ele prepara as coisas em «1600 reuniões ou plenários, nos quais participaram mais de 26000 militantes». Enquanto se esgrimem posições, ele dá logo «uma resposta inequívoca». Quando os outros reestruturam, ele promove um «reforço da organização». Chama os fascistas de «fâchistas». Creio mesmo que prefere ainda designar o espaço de «cosmos». E os mais indefectíveis militantes continuarão por certo a relembrar como Лайка a saudosa cadela Laika.
Adenda: A Gestapo encorajava alguns prisioneiros que suspeitava de serem comunistas a escreverem pequenos artigos. O objectivo era confirmarem a sua filiação pela análise da linguagem. Uma tarefa fácil, diziam os agentes.
Gostaria também de dizer que «já em muitos outros momentos aqui se reflectiu sobre a importância desta iniciativa». Mas por não ser verdade estou impedido de o fazer. De facto, não tenho acompanhado como gostaria e a magnitude do evento justificaria a preparação do XVIII Congresso dos Barbeiros de Valdivostok, que tem início amanhã. Com a promessa de fazer seguir desde já um enviado especial, saúdo efusivamente todos os animosos baetas daquela bela e laboriosa cidade da península Muravyov-Amursky e o seu destacado papel como força indispensável e insubstituível na construção de uma sociedade vladivostoquiana mais justa porque melhor escanhoada.
São José de Cupertino, San Giuseppe da Copertino (1603-1663), voava sem limitações, circundando igrejas e aterrando sem danos nos seus altares. Conta-se que certa vez, numa decisão cuja lógica permanece inexplicável na literatura hagiográfica, voou até uma oliveira e permaneceu sobre um dos seus galhos por mais de meia-hora. É hoje, naturalmente, o padroeiro dos profissionais da circulação aérea, como os pilotos, os astronautas ou os pára-quedistas. Alguns entendem também ser ele o protector de pessoas com certos problemas do foro neurológico, traduzidos naquilo que o povo chama de «comportamento áereo». Conta-se que, por vezes, a José bastava o distante toque de um sino, ou que alguém pronunciasse a palavra céu, para que perdesse o contacto com a terra e iniciasse uma das suas fulgurantes trips.
Holodomor o que foi? Sigam-se os links todos (incluindo os muito importantes que constam dos comentários mas dispensam comentário), recue-se na máquina do tempo e aprenda-se. Já agora, veja-se também mais este.
Falando de morenas o Urban Dictionary não tem dúvidas: «Brunette’s are known to be reliable, dependable, intelligent, and exotic. It’s also been said that brunettes are more approachable since the color brown is prevalent across all cultures. Brunettes are more seductive and exotic than blondes, and they stand out». E sobre as loiras afirma, peremptório: «Notorious for being sluts, great blowjob givers, dumbasses, illiterate, annoying, uncultured, confused, and possibly most important of all, the kryptonite of black males, especially professional athletes. They travel in packs and tend to be fucking hot. Be very scared. If one comes in contact with a blond, immediately call for assistance from a brunette».
Pelos finais do século XVII, um inglês de nome Richardson tornou-se conhecido em toda a Europa por ser capaz de colocar brasas na língua, mastigá-las, comer vidro derretido, manusear ferro incandescente e dobrá-lo com os próprios dentes.
O pessoal não perdoa as declarações despropositadas e um pouco estrambólicas de Manuela Ferreira Leite sobre a necessidade de uma licença sabática semestral da democracia. E toca de zurzir a senhora como putativa candidata a ditadora. Mal disfarçada com aquele anacrónico colar de pérolas, ainda por cima. Um exagero, um erro de análise, como reconhecerá qualquer cidadão sensato sem vontade de citar Brecht e de disparar dois tiros para o ar ao menor pretexto. Uma amiga menos intransigente, e provavelmente mais sábia, fala-me da possibilidade da irmã do advogado e comentador futebolístico Dias Ferreira ter bebido um copito a mais durante aquele almoço na Câmara de Comércio Luso-Americana. Quero acreditar que sim. Não sei porquê, é uma ideia que me agrada. E uma ideia que também me alivia um pouco.
A crise no consumo instala-se e o comércio a retalho precisa quase desesperadamente de clientes. Já tinha notado um exagerado aumento da simpatia em algumas lojas nas quais era até agora tratado com uma cortesia que se aproximava da indiferença. Hoje tive a confirmação com uma mensagem de SMS – desatento, devo ter dado o número de telemóvel para uma qualquer «ficha de cliente» – na qual me prometiam quatro camisas e uma gravata na compra de um fato completo. Ainda por cima com bastante tempo para me decidir. Vou fazer-me de caro a ver se a proposta melhora um pouco, e daqui por umas semanas vou estar com um look bestial sem ter de recorrer ao cartão de crédito. Depois irei inscrever-me numa escola de tango.