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Mais vale tarde

A captura de Radovan Karadzic, infelizmente tardia, leva-me a conceber o duro labor do cabeleireiro que trabalha para os calabouços do Tribunal Penal Internacional, com sede na Haia. O ex-general Ratko Mladic exigirá, espera-se, bem menos esforço daquele profissional.

Mudando de registo: esta gente não merece o respeito que o TPI lhe irá inevitavelmente garantir. Sarajevo e Srebrenica existiram, os seus executores também. Perdoar nestes casos é impossível, pois eles não perdoaram.

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    Depois de Alcácer-Quibir

    «O único lado» ao qual o novo partido Movimento Mérito e Sociedade aceita pertencer «é ao lado da frente». Para lá chegarmos será necessária uma força, esta, a única realmente capaz de dirigir «a estratégia e a política de desenvolvimento» em condições de «resolver de forma sensata os aspectos negativos da nossa organização social, política e económica». Claro que o MMS não é de esquerda, direita ou centro, uma vez que «esses são conceitos que já não se aplicam a uma sociedade contemporânea», pois «tiveram o seu papel na história mas estão ultrapassados». No essencial, é preciso levar o mérito ao poder, pois o seu reconhecimento «constitui um fantástico indutor de desenvolvimento equilibrado e sustentado de uma sociedade». Este permitirá maximizar «o espírito de conquista e desembaraço dos portugueses», que afinal até dispõem da maior zona económica marítima da Europa como «princípio activo». Ora aqui estão a mensagem e o discurso mobilizador dos quais andávamos há tanto tempo à espera. Falta agora levá-los «a todas as famílias e a todas as casas». Passando à frente dos missionários da Bíblia, dos angariadores do Citibank e dos adeptos irredutíveis do SMS.

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      A música mais indesejada do mundo

      «A música mais indesejada do mundo» (noutra tradução, «a mais supérflua»), foi escrita por Vitaly Komar e Alexander Melamid, artistas plásticos e performers russos, de origem judaica, que trabalharam em parceria entre 1965 e 2003. Através de efabulações centradas em apropriações da memória colectiva, construíram uma obra única cujo núcleo original se formou a partir de uma aproximação aparentemente impossível, ou contranatura, do dada ao realismo socialista. Uma experiência que, como seria de esperar, em 1973 lhes valeu a expulsão da secção juvenil da União dos Artistas Soviéticos na qual haviam acabado de entrar – acusados de «distorção da realidade soviética» -, e mesmo a destruição pública de algumas das suas obras. Encontra aqui uma descrição desta The Most Unwanted Music, expressamente concebida para, nos seus 25 minutos de duração, soar desagradavelmente ao maior número possível de ouvidos. Não se aceitam reclamações.

      [audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/06/komarmelamid_the-most-unwantedsong.mp3]

      PS – Um leitor chamou a atenção para um erro que cometi por ter partido de informação incorrecta. De facto, a peça não foi escrita por Komar e Melamid, mas sim por Dave Soldier (música) e Nina Mankin (letra), a partir de uma ideia dos primeiros. Mais dados aqui. Obrigado pela correcção.

        Devaneios, Música

        Hidrogénio (eu também tive um sonho)

        Não sei se este post me irá custar caro, mas eu também tive um sonho e vou contá-lo. Nesse sonho Hugo Chávez voltava a fazer rondas como oficial de dia, o rei Abdullah abraçava o sufismo e José Eduardo dos Santos praticava jogging sem seguranças no Calçadão de Copacabana. OPEP era um nome de refrigerante com sabor a limão. Todos os carros circulavam movidos a hidrogénio e o petróleo apenas servia para fazer shots marados. As bombas da Galp tinham sido transformadas em sex-shops e os autocarros «movidos a vontade de vencer» eram vendidos aos turcos. Sonhei com tudo isto esta noite, quando adormeci depois de ter visto os anúncios dos novos automóveis ecológicos – ou a um passo de o serem – da Honda e da BMW.

        [isto não é publicidade]

        [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=yxk8YNKLyo8&eurl=http://hydrogendiscoveries.wordpress.com/category/bmw/]
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          Resistir

          Entra-me pela mailbox adentro um anúncio de um espectáculo que recomenda, subvertendo a velha frase, «Relax, don’t have a cigar». Acreditem os seus autores que produziu o efeito inverso. Uma bandeira da resistência ao higienismo dominante esvoaça desde há meses na janela do meu gabinete de trabalho. Sem a hipótese de ser trocada pelas ordens verde-rubras de mister Scolari ou do professor Marcelo. Ao menos aqui deixem-me em paz.

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            O milagre de Lisboa

            O noticiário da SIC acaba de adiantar como título de notícia, pela boca de Rodrigo Guedes de Carvalho, que «a chuva parou em Lisboa durante a procissão do Corpo de Deus». Ao mesmo tempo, as imagens mostravam o Cardeal-Patriarca, ataviado com vestes sumptuárias apropriadas ao momento, espalhando incenso ao desbarato – um produto, recorde-se, que provoca danos na saúde de quem o absorve – pelas ruas de uma urbe supostamente em festa. Como se esperava, ninguém deu vivas a Afonso Costa.

            (Em Espanha o espectáculo não difere muito.)

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              Tento na língua

              Uma grande delegação da União Europeia, chefiada por Durão Barroso, desloca-se à China para discutir a criação de um «mecanismo económico e comercial de alto nível». Pelo caminho, tentará convencer as autoridades do principal país emissor de gases causadores do efeito de estufa a comprometerem-se com esforços de combate às alterações climáticas. Os responsáveis europeus contam poder tratar ainda em Pequim de temas ligados aos direitos humanos e à situação no Tibete. Esperarão porventura, com toda a legitimidade, que os governantes chineses concedam aos últimos dois temas uns intensos cinco minutos.

              Entretanto, as referências concertadas de manifestantes locais – como é sabido, no Império do Meio as manifestações são por via da regra livres e espontâneas – a Joana d’Arc, à independência da Córsega e ao carácter consabidamente «nazi» do estado francês, são no mínimo comoventes. Que se cuide o governo português e não se deixe enredar em questões menores, como os tais direitos humanos, para não ver nas ruas de Cantão ou Nanquim uma manifestação com cartazes declarando «Brites de Almeida=Meretriz» ou «Free Porto Santo Now!».

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                Previsão para Maio

                «Maio é, habitualmente, um mês de aguaceiros esparsos, mas a instabilidade que agora reina no clima trará chuvas torrenciais de uma violência inaudita. Verá o seu carro ser arrastado por uma enxurrada, mas isso deixá-lo-á primeiro indiferente e, depois, aliviado.»

                De O Que Está Escrito Nas Estrelas [Anos I & II], o «horóscopo de assombroso rigor científico» no qual o autor de BD José Carlos Fernandes transformou o seu último álbum (embora trabalho antigo), composto por 24 inquietantes histórias ilustradas. Por precaução, não o deverá perder (Ed. Tinta da China).

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                  Erotismo no Porto

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                  No comício-festa que reuniu num pavilhão do Porto a nata e a guarnição das clientelas do PS para «comemorarem» em conjunto «três anos de governo com resultados» foi perceptível, a quem o observou do lado de fora, a presença no ar de uma intensa carga erótica, associada a todo aquele feérico e teatral ambiente de cor, luz, alegria, autosatisfação, cumplicidade e feromonas. O poder funciona de facto como um estupendo afrodisíaco. Estimula a energia e ajuda a pintar o mundo de cor-de-rosa. Enquanto dura.

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                    Lindas e despreocupadas

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                    Dois dos mais respeitáveis jornais portugueses – o Público e A Bola – oferecem todas as sextas-feiras um indigente «semanário gratuito» chamado Sexta. Esta semana, o Sexta saiu também no sábado coincidente com o Dia Internacional da Mulher. Sempre «actual», o jornal oferece-nos por isso um «Especial Mulher», patrocinado pela Dove, que transporta a toda a largura da capa, acompanhada de um agradável rosto feminil, a frase «A beleza não tem idade». E aborda todos esses magnos problemas relacionados com tamanho das pálpebras, textura do cabelo, maciez da pele e manutenção da linha que, como se sabe, fazem a cabeça em água às mulheres, já que os homens não se querem bonitos e têm assuntos mais graves com os quais se devem preocupar. Ainda mal desperto, considerei a hipótese de ter retrocedido no calendário até aos anos trinta, quando se mostravam já ténues os ecos da primeira vaga feminista e a segunda tratava ainda de aprender a gatinhar. E, por breves instantes, voltei a datas e a lugares nos quais estas atitudes não eram olhadas com tanta indiferença.

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