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N e a sua Josefina

A incerteza instala-se e percorre o planeta. Terá ou não o senhor do palácio do huitième arrondissement casado de papel passado com a ex-modelo, honrando os seus compromissos e comprovando a vertiginosa celeridade dos processos de divórcio em terras de França? Por via das dúvidas, os circunspectos responsáveis pelo Castelo de Windsor já fizeram saber que não gerem um motel, reservando aposentos separados para a sua estadia de Março, não fosse o espectro de Vitória, a rainha, retornar do além-túmulo de pistola na mão, garantindo o escândalo e um embaraçoso conflito diplomático. Ao mesmo tempo, as autoridades sauditas desaconselharam o fogoso gaulês a deslocar-se a Riade na companhia da sua mais recente companheira de quarto. Há que manter os elevados padrões de ortodoxia moral que fundam – porque não dizê-lo – as grandes civilizações. De outro modo, onde iríamos parar?

    Devaneios

    A prova do futuro

    «O presente é um território que exige que se vá além de todos os limites», escreve o filósofo espanhol Ignacio Izuzquiza. É o único território a partir do qual é possível sonhar com tempos diversos e preferíveis. Por isso, apenas numa tonalidade esquizofrénica é possível vivê-lo. Imaginando futuros possíveis projectados a partir de passados pouco mais que prováveis, localizados sempre para além daquilo que permanece convencionado como «o real». Os programas políticos que não assumam essa dimensão prospectiva e fantasiosa estão condenados a ficarem sempre aquém do possível. A gerirem o presente de forma apenas razoável («realista», dizem). A deixarem-se bloquear e a caminharem rumo a uma inevitável derrota histórica.

      Devaneios, Etc.

      Smoking

      O que acontecerá agora ao smoking, essa peça de vestuário masculino especificamente concebida para ser envergada em espaços e momentos destinados aos prazeres do fumo? Ficará definitivamente confinado às salas de jogo dos casinos? Apenas será vestido no interior das mansões à hora do bridge? Irá jazer dentro de escuros guarda-fatos na companhia de umas quantas bolas de naftalina?

      Imagem: Ian Fleming, agente dos serviços secretos da Royal Navy (código 17F) e criador de James Bond

        Devaneios, Etc.

        Exultate, jubilate

        Tive hoje a oportunidade de presenciar dois fedayin proibicionistas a entrarem lampeiros e coruscantes num restaurante sem espaço para fumadores. Li-lhes nos olhos e bebi-lhes das palavras a alegria e o arrebatamento dos iluminados. E tremi.

          Atualidade, Devaneios

          Nostalgia vermelha

          ODiario.info – uma revista electrónica apostada em ressuscitar, a partir das profundezas da memória, o espectro do antigo jornal da «verdade a que temos direito» –, acaba de editar, entre outros textos igualmente delirantes, um pedaço de prosa sobre a «revolução bolivariana» que se revela bastante pitoresco. Assinado pelos editores (José Paulo Gascão, Miguel Urbano Rodrigues e Rui Namorado Rosa), tem a particularidade de afirmar, preto no branco, aquilo que muitos dos membros da sua família política pensa, ou sonha, mas não tem o atrevimento de escrever. Nele se proclama entusiasticamente que «na pátria de Bolívar avança com ímpeto uma revolução que empolga os povos da América Latina e alarma o imperialismo pela sua meta assumida: o socialismo» e se lembra que a existência de desafios durante a «transição do capitalismo para o socialismo» constituirá sempre «um ensinamento inesquecível» desse «andamento maravilhoso e dramático da Revolução de Outubro de 17». Quando falam de uns malvados «trotskistas, anarquistas e toda uma chusma de intelectuais pseudo revolucionários – os pequeno burgueses enraivecidos de que já falava Lenine» que «somam agora as suas vozes às do imperialismo para profetizar o fim da revolução bolivariana» tenho a impressão que os autores se estão a referir a alguém mas não tenho a certeza de quem seja.

            Devaneios, Recortes

            Ares do campo

            Hoje, na sempre animada secção de Classificados do jornal Público, uma cidadã que se descreve a si própria como «senhora da aldeia, desinibida e sem tabus» oferece-se para preencher a sua quota de trabalho socialmente produtivo, traduzido em «sexo sem pressas». A reconversão da população rural parece estar a avançar a todo o vapor, preparando-se para superar as mais optimistas metas do plano quinquenal. E sem stress.

              Devaneios, Etc.

              Ciúme

              A primeira vez que experimentei um sentimento obsessivo de ciúme e um profundo desejo de vingança direccionei-os para a pessoa do Sr. Plemiannikov. Observo o infame sujeito, a rir-se não sei de quê, nesta velha fotografia a preto e branco. Nunca lhe perdoei as sucessivas afrontas.

                Devaneios, Memória

                Educação sexual

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                Disse-me que eu tivera muita sorte, pois tinha podido ler o Fritz Kahn enquanto ele só conseguira folhear, às escondidas dos pais, aquele livro do Professor Egas Moniz que se vendia nas farmácias. Mas ainda tinha em casa alguns exemplares avulsos da Bomba H que comprara na tabacaria do bairro por vinte e cinco tostões. Eu contei-lhe que conseguira um dia num alfarrabista uma colecção completa da Gaiola Aberta, mas que a perdera da última vez que mudei de casa. Não lhe falei do papel de Wilhelm Reich e da ex-mulher de Roger Vadim na minha vida porque a conversa ficou por ali.

                  Devaneios, Etc.

                  O PSD visto do meu sofá

                  Em ambas as sedes de candidatura o bar tem um lugar destacado. Passam muitos militantes a mastigar frutos secos e a beberricar qualquer coisa com umas pedras de gelo lá dentro, o que lhes dá um certo ar de profissionais de seguros em intervalo de acção de formação.

                  Será bom para Marques Mendes ter perdido. Parecia mais capaz, e mesmo mais feliz, quando passava mais tempo em Fafe e não precisava de se pôr todos os dias em bicos de pés. Embora ao lado de Carlos Coelho e de Macário Correia até se assemelhe a um «Grande Português».

                  Acho Ângelo Correia uma figura simpática. Talvez seja por ele não se importar de se meter ao barulho. Ou por parecer aquele tio que nunca tivemos mas imaginamos a almoçar com um guardanapo à volta do pescoço e a contar anedotas cheias de subentendidos. Ou por dizer quase sempre, com um ar sábio, a primeira coisa que lhe vem à cabeça.

                  Quando Menezes entrou no salão de hotel para fazer o seu discurso de vitória, numa das paredes um enorme ecrã de plasma continuava a projectar primeiros planos de José Mourinho. Parece perseguição, mas sabe-se lá se será premonição.

                  Apreciei as toilettes das senhoras. E mais ainda os respectivos penteados. Mas já não percebo porque razão os homens militantes copiam os da geração anterior e não cuidam um bocadinho mais do aspecto, não se mostram mais frescos e modernos. Como José Sócrates, por exemplo.

                  As duas partes foram falando, sem ponta de ironia como lhes competia, de um confronto «vivo», «franco», «aberto», «civilizado». Não é possível imaginar aquilo que teriam dito se assim tivesse de facto acontecido.

                  E amanhã será outro dia.

                    Atualidade, Devaneios

                    Xenófobos e cavernícolas

                    Este blogue, no seu esforço insano e inglório de captar a espuma da espuma dos dias, foi um dos primeiros a falar da forma como a nossa rapaziada do râguebi se apresentou em campo a vociferar A Portuguesa. Entretanto, todo o país reparou no caso. E parte do exterior também. Ao ponto de vermos a selecção de futebol, no jogo que terminou com a vistosa placagem proactiva de Scolari a Dragutinovic, cantando o hino já uns bons decibéis acima do normal. E também de os adversários bradarem o seu guerreiro «Fratelli d’Italia,/ l’Italia s’è desta,/ dell’elmo di Scipio/ s’è cinta la testa» com um outro fôlego. Mas é melhor não embandeirarmos com as maravilhas do râguebi e do seu pequeno mundo, alimentando certos mal-entendidos.

                    Um deles refere-se à tentativa de fazer crer que o râguebi estimula a bravura e um são patriotismo. Entretive-me a dar uma volta pelos comentários de alguns blogues e sítios desportivos interessados na modalidade e fiquei completamente atordoado com a quantidade de opiniões de natureza racista e xenófoba que se serviram do hino nacional para mostrarem como «ainda há verdadeiros portugueses» ou «não são precisos pretos» para mostrarmos os nossos feitos. E, a quem achar que não se deve dar assim tanta importância ao hino, exige-se ali «que abandone o país» ou então «mude de nacionalidade» (os itálicos entre aspas foram retirados de alguns comentários). Apesar de reconhecer a bravura desportiva do gesto, preferia que os Lobos tivessem ficado mudos, cantado em playback, ou mesmo uivado, do que terem dado ocasião a que este tipo súcia se possa manifestar. Apenas um fait divers? Atitude de uns quantos recém-chegados mais ou menos dementes e sem tradição entre o público da modalidade? Veremos.

                    O outro mal-entendido diz respeito à tentativa de se fazer crer que o mundo do râguebi é constituído por pessoas normais. Que nem todos os jogadores se chamam Martim, Tomás, Salvador, Gonçalo ou Diogo, que nem todos relaxam um pouco do atarefado quotidiano jogando golfe e bebendo puro malte, que nem todos eles são veterinários, engenheiros agrónomos ou (e) filhos-de-família. É verdade que não, mas nem por isso a situação real aproxima os raguebistas do cidadão comum. É que, para além, que eu saiba, de não existirem jogadores que sejam ao mesmo tempo filósofos, poetas, cineastas ou bailarinos – um pouco mais próximos, como é sabido, do português-padrão –, é espantosa a quantidade de atletas com um aspecto pouco saudável e, sinceramente, um tanto ou quanto animalesco, próprio de quem lida boa parte do tempo com bestas. Como parece ser o caso – o Ricardo Araújo Pereira também chamou, na Visão, a atenção para este exemplo de retorno humano ao estádio de Neanderthal – do gaulês Sébastien Chabal (na imagem). Aquele a quem os adeptos franceses chamam de Átila, Homem das Cavernas, Hannibal Lecter ou O Anestesista. Mas há mais. Não, os jogadores do râguebi não são gente como nós. E, como diria um conhecido autarca do norte e homem da bola no pé, «quem disser o contrário, mente».

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                      «It’s Alright, Ma»

                      Vi Easy Rider seis vezes. E todas elas em poucos meses, três numa única semana. Tinha 17 anos, pouco cinema à disposição, detestava a vida imutável da cidade pequena e imaginava-me um pouco a percorrer as estradas americanas que me pareciam infinitas. Era aquela, para mim, a América. Desmedida e contraditória, feita de rapazes como aqueles, bons armados em maus, que se passeavam, soberbos, por entre simplórios da Louisiana com cara de sacanas. Mais conflito de gerações que luta de classes, sem dúvida. As stars and stripes pintadas na Harley Davidson de Wyatt (Peter Fonda), o chapéu de batedor fora do tempo usado por Billy (Dennis Hopper, também o realizador do filme), pareciam-me trocistas, provocadores. American dream às avessas com marijuana à descrição. Mas só depois do deprimente final – a morte violenta dos dois argonautas: «It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)» – percebia definitivamente o olhar cínico de Fonda. Para o exorcizar, voltava então a ver tudo de novo.

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