Arquivo de Categorias: Devaneios

Vox populi

Passo pelo corredor da casa e oiço, saídos da televisão, grandes gritos do povo enfurecido que protesta na rua, que acusa, que condena. Clama-se por justiça, alguém é considerado culpado. Pensei que tudo aquilo era contra o casal McCann. Mas não, era contra o Scolari.

    Devaneios, Etc.

    2h03m

    Pode viajar-se agora a 300 à hora no belo comboio Eurostar laranja branco e prata. Uma viagem entre Paris e Londres demorará em breve apenas 2 horas e 3 minutos. Vai ser bastante mais fácil conceber álibis para infidelidades além-Mancha ou para atentados em Balmoral.

      Atualidade, Devaneios

      Gestualidades

      A codificação dos gestos é sempre mais lenta do que a realidade que a suporta. Hoje, num restaurante, alguém numa mesa em frente da minha pedia a conta – aberta por um PDA, processada por computador desktop, impressa a jacto de tinta – mimando para o empregado, de forma convencional, o gesto de escrever. Calculo a agitação que teria criado se lhe tivesse ocorrido levantar a mão direita (ou, pior, a esquerda; ou, pior ainda, ambas) simulando o acto de digitar.

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        O atendedor

        De repente o telefone tocou. Passava uma meia hora das onze da noite, e do lado de lá uma voz feminina que era apenas um murmúrio. Palavras que eu não podia compreender, numa língua que não soube identificar. A voz falava baixinho e chorava, num lamento indecifrável. Disse-lhe, em inglês, que tinha muita muita pena mas que provavelmente deveria estar enganada, que eu não era com toda a certeza a pessoa que ela pensava que eu era, que não conseguia de todo entendê-la. Do outro lado, como se eu não tivesse falado, como se a minha voz pudesse ser apenas uma gravação, a mesma mulher prosseguiu no seu lamento incompreensível, chorando ao meu ouvido mecânico. Pedi desculpa e disse que precisava desligar, desejei-lhe uma boa noite, disse de novo que lamentava, desliguei. Sem a certeza de ter sido engano.

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          O S. João e a broa de Avintes

          Lamento Tiago (Barbosa Ribeiro), mas nunca percebi, e continuo sem perceber, o que de especial, ou de particularmente democrático, tem a «folia» sanjoanina do Porto. Apesar de já a ter experimentado algumas vezes, chegando a madrugar sujo, suado e namorado em Matosinhos. Sempre a achei uma festa desenxabida e popularucha, com toda a gente a noite inteira a caminho de lado algum, a fazer de contas que está muito feliz e assaz contente. Por isso mesmo o Estado Novo a tolerava sem problemas. E agora, como dizia uma festeira raçuda entrevistada pela televisão, «divertimo-nos muito, senhor: damos umas marteladas e comemos sardinhas». A comparação com o Santo António lisboeta é inevitável: este é também um vestígio de um passado pouco edificante, ainda muito marcado pela intervenção folclorista do SPN/SNI, que de positivo tem apenas o facto de não ser apresentado, como acontece com o S. João no Porto, como «a festa de toda uma cidade». Quando vejo os assomos de «pimbalhismo» e de afirmação provinciana e palonça de uma dada identidade em que se transformaram estas paródias – aproveitadas, além do mais, pela pior demagogia eleiçoeira –, recordo sempre uma frase que ouvi há alguns anos numa estação regional de rádio: «Dizem que em Avintes só há broa, mas há mais, há muito mais do que isso: também há broa com chouriço».

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            O imenso adeus

            adeus

            De repente tornara-se invisível. Como acontecera com a sua própria sombra, também o olhar dos outros deixara de o perseguir. Podia agora sorrir, ou acenar, ou imitar o voar oblíquo dos pássaros, sem que lhe perguntassem porque o fazia.

              Devaneios

              Femme fatale

              Femme Fatale

              A femme fatale, avisam os livros, é atraente e sedutora. Um pouco intimidante também. Com um charme capaz de enredar amantes e vítimas, sem remissão possível, numa teia de situações comprometedoras e sempre razoavelmente perigosas. A deusa suméria Ishtar já revelava os atributos, marcando o nascimento histórico do mito masculino que envolve sentimentos misturados de medo e desejo. De Dalila e Salomé a Mata-Hari e a Gilda (uma inesquecível Rita Hayworth no filme de Vidor), o trajecto foi longo e bastante complicado para uma longa lista de homens apenas brevemente felizes, irremediavelmente perdidos.

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                Riso kafkiano

                Conta John Banville, no seu livro sobre Praga, que quando Kafka começou a ler excertos de O Processo a um grupo de amigos, foi acometido de um tal ataque de riso, logo à primeira página, que acabou por desistir da leitura. Algo me terá escapado na história soturna de Joseph K.

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                  Cinema noir-engagé

                  Film Noir

                  Segundo o Correio da Manhã, João Botelho está a preparar, em conjunto com a jornalista Leonor Pinhão, um filme que será uma adaptação livre do best-seller Eu, Carolina. De acordo com o realizador, o título provisório é Corrupção, «uma homenagem a Fritz Lang, que dirigiu Big Heat», e pode definir-se desde já como «um filme negro, ao estilo dos policiais americanos dos anos 40». Pinto da Costa e Carolina Salgado estarão, como será de calcular, no epicentro da trama. Conhecendo-se o «ultra-benfiquismo» do realizador e da sua mulher, é de esperar uma obra de cinema noir-engagé.

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                    O Alves

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                    Era um senhor com um tom voz que vinha do passado e gravatas de nó minúsculo. Capaz de comentar um jogo declarando sem um piscar de olhos, para um país com quase quarenta por cento de analfabetos, que «os garbosos mancebos da Briosa executam com elevado pundonor, e quiçá a maior distinção, um futebol deveras estereotipado.» A frase encontrei-a ontem, copiada a lápis numa agenda de 1965.

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                      Bon vieux B.

                      Boris Vian

                      «Dizer idiotices, por estes dias em que toda a gente reflecte profundamente, é a única forma de provar que temos um pensamento livre e independente.» Para lembrar que anda pelas livrarias Boris Vian por Boris Vian, uma compilação de aforismos – este de 1951 –, alguns deles conhecidos, outros dispersos por manuscritos avulsos, daquela pessoa que se fazia passar por um tal de Vernon Sullivan. Seleccionados por Noel Arnaud, traduzidos por Sarah Adamopoulos e editados pela senhora dona Fenda, convém que se diga. A conservar sobre a mesa de trabalho, numa prateleira acessível da despensa ou no porta-luvas do carro.

                        Devaneios, Recortes

                        Rankings

                        Fátima arrasa S. Bento da Porta Aberta, Sameiro e Almortão. De acordo com uma jornalista da SIC, numa peça do telejornal cujo tema era exclusivamente esse, o complexo da Cova da Iria encontra-se «em primeiro lugar no ranking dos santuários portugueses» no que respeita à afluência de peregrinos. Em contrapartida, no mês passado Maria Sharapova perdeu o lugar no ranking do ténis feminino para Justine Henin (embora eu talvez prefira Elena Dementieva, que se encontra em décimo mas possui um belíssimo nome).

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                          Early Morning games

                          Com os netos a brincar um pouco adiante, dois homens – «feitos», como se dizia antes – inventam à minha frente uma vida trepidante. Por alguns minutos não percebi bem do que falavam eles, assim com todo aquele entusiasmo. Apenas o final de uma frase me ofereceu a chave: «Vais pela estrada e paras junto à casa amarela. Sais do carro e entras na floresta. E segues por ali dentro, mas com muito cuidado, por causa dos índios. Mas atenção, que nem todos eles são de evitar! Pelas pinturas de guerra percebes logo que alguns são diferentes. São os da tribo Tanduí, dos quais te deves fazer amigo. Se conseguires, eles integram-te na tribo e, depois de alguns rituais, oferecem-te o anel Mankala. E será com esse anel no dedo que conseguirás aceder ao nível seguinte.»

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                            Homem-sanduíche

                            Uma rapariga com um sorriso atraente olha-me e considera, talvez pelo meu aspecto aparentemente asseado e pelo telemóvel de que me sirvo enquanto caminho, que deverei possuir «um automóvel recente e em bom estado». Parece-lhe-á que também tenho ar de quem «não utiliza parques de estacionamento». Entrega-me então um panfleto com uma proposta objectiva: deixo que o meu carro seja decorado com publicidade – «a imagem de grandes marcas» – e serei remunerado por isso. Em breve, alguém me sugerirá que cole um anúncio da Sony ou da Gillette na mochila e passeie em lugares públicos com ele bem visível. Depois que tatue o logótipo da BMW na testa e sorria com ar cool a quem quer que por mim passe na rua. Serei remunerado por isso, coisa que faz sempre jeito a um funcionário público presumivelmente honesto.

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