Os deuses vivem uma vida muito deles, com a qual nós, comuns mortais, nada temos a ver. Importam-nos sempre as suas intervenções pontuais, coléricas ou benfazejas. Fora desses momentos, porém, nada queremos saber sobre a forma como trabalham, comem e ocupam os tempos livres. Aliás, estão tão distantes que seja o que for que possam fazer apenas podemos aceitá-lo. Mesmo quando se trata de actos da maior brutalidade ou despudor. Mas tal já não acontece com os semideuses. Poucos admitirão, sem se mostrarem contrariados, que um sátiro, protector dos pastores e dos rebanhos, se passe a comportar como um lobo. Ou que uma ninfa estabeleça a sua residência num bairro movimentado e passeie entre nós de headphones nos ouvidos (eu já vi uma, mas deveria tratar-se de uma alucinação). Semideuses, porém, são também aqueles seres extraordinários, homens ou mulheres, que pelos seus feitos, ou pelo seu talento, se destacam do comum dos mortais. E então com estes somos particularmente severos.
Não me surpreende, por isso, que pais dos fãs de Daniel Radcliffe, o actor que interpreta no cinema a personagem de Harry Potter, se mostrem agora publicamente escandalizados com o facto deste ter aparecido, na fotografia de promoção de uma peça de teatro na qual participa, abraçado a uma outra actriz, ambos sem roupa da cintura para cima. Daniel é um semideus, e os semideuses não podem anular os traços que os definiram como tal. Deveria, pois, na opinião dos progenitores dos pequenos cinéfilos, permanecer para sempre criança e assexuado. Há uns bons vinte anos atrás, algo de idêntico se passou, quando Julie Andrews, a noviça Maria do patético The Sound of Music (Música no Coração), mostrou os seios a todo o universo no filme S.O.B., deixando prostrados de pasmo e dor aqueles que a viam como preceptora exemplar – e irrepreensível – dos sete filhos do capitão Von Trapp. É sempre difícil aceitar que as figuras que endeusamos são, em larga medida, um produto da nossa imaginação e das nossas egoístas expectativas. E que seguirão o seu próprio caminho enquanto nós permanecemos naquele que escolhemos. Demasiado humanos para deixarmos de precisar do divino.