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Que povo era esse?

Povo-MFA

O velho cartaz de um tempo raro, criador, agora antigo e quase proscrito, desperta uma incógnita. Que povo era esse que se nos apresentava na figura de um lavrador oitocentista arruinado pelo jogo, de um Zé do Telhado em dia de festa, de um jagunço sertanejo, de um Sandokan fora-de-horas viajando incógnito pela margem esquerda da Europa? O imaginário do 25 de Abril e do PREC tem ainda pistas por achar, expectativas por revelar, caminhos (se calhar, um dia talvez calhe) por retomar.

    Devaneios, História

    Homem-borboleta

    a rapariga da lagarta

    Chamei alguém de caterpillar. Acontece que o alvejado, para além de ser de vez em quando uma pessoa um pouco agreste, é também um erudito. E explicou-me com toda a calma que aquilo que eu lhe queria chamar não resultava bem, como até aquele momento eu pensara, da sinédoque que em inglês aproxima a lagarta do tractor. Entre os aborígenes australianos – ou, pelo menos entre os que ainda confiam nos seus mitos mais ancestrais – caterpillars, disse, são aqueles que voluntariamente voam até aos céus para descobrirem o que existe para além da morte, regressando depois à Terra sob a forma de borboletas.

      Devaneios

      A barba de Harry Potter

      Os deuses vivem uma vida muito deles, com a qual nós, comuns mortais, nada temos a ver. Importam-nos sempre as suas intervenções pontuais, coléricas ou benfazejas. Fora desses momentos, porém, nada queremos saber sobre a forma como trabalham, comem e ocupam os tempos livres. Aliás, estão tão distantes que seja o que for que possam fazer apenas podemos aceitá-lo. Mesmo quando se trata de actos da maior brutalidade ou despudor. Mas tal já não acontece com os semideuses. Poucos admitirão, sem se mostrarem contrariados, que um sátiro, protector dos pastores e dos rebanhos, se passe a comportar como um lobo. Ou que uma ninfa estabeleça a sua residência num bairro movimentado e passeie entre nós de headphones nos ouvidos (eu já vi uma, mas deveria tratar-se de uma alucinação). Semideuses, porém, são também aqueles seres extraordinários, homens ou mulheres, que pelos seus feitos, ou pelo seu talento, se destacam do comum dos mortais. E então com estes somos particularmente severos.

      Não me surpreende, por isso, que pais dos fãs de Daniel Radcliffe, o actor que interpreta no cinema a personagem de Harry Potter, se mostrem agora publicamente escandalizados com o facto deste ter aparecido, na fotografia de promoção de uma peça de teatro na qual participa, abraçado a uma outra actriz, ambos sem roupa da cintura para cima. Daniel é um semideus, e os semideuses não podem anular os traços que os definiram como tal. Deveria, pois, na opinião dos progenitores dos pequenos cinéfilos, permanecer para sempre criança e assexuado. Há uns bons vinte anos atrás, algo de idêntico se passou, quando Julie Andrews, a noviça Maria do patético The Sound of Music (Música no Coração), mostrou os seios a todo o universo no filme S.O.B., deixando prostrados de pasmo e dor aqueles que a viam como preceptora exemplar – e irrepreensível – dos sete filhos do capitão Von Trapp. É sempre difícil aceitar que as figuras que endeusamos são, em larga medida, um produto da nossa imaginação e das nossas egoístas expectativas. E que seguirão o seu próprio caminho enquanto nós permanecemos naquele que escolhemos. Demasiado humanos para deixarmos de precisar do divino.

        Devaneios

        Da resistência das mulheres-leitoras

        leitora

        A deixa de Alberto Manguel tomada aqui como «frase do mês» («Ler será, no futuro, um acto de rebeldia») serviu de mote para um post do Rui Ângelo Araújo que me agrada desde logo pelo título. «Literatura, mamas e rabos» é assunto que me levanta sempre a moral, e verificar que não me encontro sozinho nos gostos mais profundos – a inveja será mesmo o único dos sete pecados mortais que não pratico – é coisa que sinceramente me apraz.

        Comentar a frase de Manguel pode ser um exercício complicado. Até porque – não está ali mas está em tudo aquilo que o argentino diz ou escreve (e também na entrevista ao El País de sábado da qual a retirei) – ele se reporta a um tipo de leitura considerada pelo ex-guru do digital Nicholas Negroponte, há mais ou menos uma década atrás, como exercida no domínio dos «átomos». Em papel. Na forma de livro, de revista ou jornal. Será pois no território de sobrevivência deste género tendencialmente minoritário de leitura que Manguel parece conceber a constituição gradual de ilhotas de resistentes. Sobranceiros, eventualmente conservadores, estranhíssimos sem dúvida alguma, mas resistentes.

        Mas o post dos Canhões de Navarone parte daqui para um outro assunto que fez soar em mim uma campainha. Para o poder referir, vou-me travestir por brevíssimos instantes de um daqueles simpáticos jovens que, a troco de alguns euros, efectua inquéritos para sondagens públicas. Pela parte do mundo que vou cruzando, e da qual vou mentalmente procurando anotar as práticas e costumes, sou levado também a concluir que as mulheres lêem mais que os homens. Ou melhor, lêem muito mais que os homens. Não sei se será por uma questão de sensibilidade, de distribuição mais racional dos horários, de inteligência, de concentração nas coisas essenciais, mas parece-me ser assim. E assim sendo, se o cenário se não alterar, um papel decisivo na condução da futura resistência dos humanos-leitores estará necessariamente nas mãos delas. Parece-me um belíssimo cenário e, se puder, cá estarei, junto com as minhas dioptrias, para nele partilhar a resistente existência.

          Devaneios

          Nostalgia de um tempo por vir

          Nostalgia
          As canções de vinte e dois minutos
          não existem mais. As saias-calça de bratzuanza
          desapareceram. Os sabonetes Ipogorum
          não se encontram. Os pneus das naves não são mais
          feitos de carbo-chips. Ninguém usa ventosas
          na roupa para andar de rodaloz. Os painéis
          de leitura já não abrem com o clique de voltagírio.
          E as casas ai as casas deixaram de cheirar
          a mengapuzes assados.

          Originalmente em Sous les Pavés, la Plage!

            Devaneios

            Inacção

            O lugar-comum sugere a repetição, o movimento que se ausenta. «A ideia de se instalar nos lugares, lugares tranquilos», escreveu uma vez Olivier Rolin. Vales sombrios de longo cativeiro e de torpor. Distantes de outros vales, de margens nunca vistas, de hábitos ignorados, de horizontes que permanecerão por descobrir.

              Devaneios

              A luz da noite

              Quase deixámos de usar a expressão «triste como a noite», confinada à métrica das chulas e dos fados vadios que resistem. Longe das aldeias despovoadas, fora das vielas onde já só dormem mendigos, bêbedos e drogados, a noite deixou de ser apenas silêncio, breu, território de caça para imitadores de Bela Lugosi e de Christopher Lee. Como um tempo para a melancolia e para a depressão. É o dia que agora nos atemoriza e entristece.

                Devaneios

                O enermúgno

                Uma das minhas fantasias inaugurais – viver em ambiente rústico dentro da cidade – jamais a preencherei. Despertar pela manhã com as galinhas da quinta. Adormecer com o ladrar distante de um rafeiro. Sentir, como o ultra-romântico, os ramos da nespereira roçando a vidraça, «empurrados pelo vento». Mas também caminhar quinhentos metros, passar o portão de ferro, e, quase anónimo, poder comprar o diário, a eau de toilette preferida, o livro que saiu ontem, uns sapatos de camurça. Infelizmente terei de me conformar a viver no apartamento periférico, eternamente cúmplice das embraiagens dos automóveis a tentarem estacionar e da gritaria dos desvairados nocturnos. Esta madrugada foi assim que acordei: dois sujeitos que discutiam na rua sob o efeito do sono, do álcool, talvez do ciúme, ou de qualquer outra causa ou sentimento. O mais afirmativo gritava alto, exaltado, repetindo o impropério: «És um enermúgno, tás a ouvir! Um enermúgno, pá! Não passas dum enermúgno, seu enermúgno!» O insultado mantinha-se em silêncio e remoía, com os olhos no chão e incapaz de argumentar. Admitindo o tom de voz do companheiro ou a grandeza do neologismo.

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                  O amor em fascículos (4)

                  o verdadeiro libertino
                  O século de Setecentos descobre o amor libertino (do latin libertinus, liberto). Em Les Liaisons Dangereuses (1782), de Choderlos de Laclos, o visconde de Valmont e a marquesa de Merteuil, os dois personagens centrais, haviam sido amantes. Após a separação, permanem cúmplices e rivais, divertindo-se a contarem ao outro as aventuras de alcova, dando-se conselhos, sugerindo-se conquistas. Aqui, os «grandes sentimentos» cedem o lugar aos jogos do poder pessoal, às estratégias de sedução, à centralidade e à fugacidade da volúpia. O fictício Don Juan, como o vero Casanova, são as figuras arquetípicas desta forma de amor que se não detém na contemplação ou na entrega incondicional. Fruindo as suas obsessões num jogo do qual detêm, na perfeição, os códigos e as argúcias. Permanecendo como modelos de uma sensualidade extrema e teatral, que se crê sem entraves e que, no limite, não reconhece o afecto ou mesmo o crime.

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                    O amor em fascículos (3)

                    r-love
                    Tenho alguma dificuldade em falar nas aulas do amor romântico. Quando tento revelar, em primeira mão, as quatro características que distinguem esse estado de espírito ocidental e único – o facto de nascer sempre de um encontro fortuito, a impossibilidade de desaparecer por um simples esforço de vontade, o sexo como algo de longínquo e não essencial, a presunção de que aquele estado de plenitude durará «para sempre» – parece-me entrever alguns sorrisos cínicos. Se sugiro a leitura de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, ou de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, sinto cruzarem-se alguns olhares trocistas. E preciso desdobrar-me em explicações. Afinal, o amoroso romântico – sonhador, nostálgico, capaz de ir até ao fim do mundo, ou de morrer, pelo seu amor – é acima de tudo um personagem literário. Paradoxalmente, são muitos daqueles que nada lêem que mais acreditam nele.

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                      Amor em fascículos (2)

                      amour
                      O «amor galante» surge, no século XVII, como instrumento fundador de uma ordem das coisas. Na literatura, a paisagem, os caminhos, as colinas, os riachos, os lagos e florestas que envolvem as ligações amorosas, transfiguram-se em função do motivo central: os dois amantes que, descobrindo-se, redescobriam ao mesmo tempo a sua presença no mundo. Uma gama vasta de emoções subtis, de metáforas sucessivas e reveladoras – que a poesia barroca desenvolverá de forma poderosa e obstinada, e que o extremo-romantismo retomará – teatraliza a ligação amorosa, sobrepondo-se a um viver comum que lhe escapa e lhe parece desenvolver-se num território degradado. Amar é, assim, colocar o mundo num palco novo. A galanteria aparece, desta forma, como comédia do amor, tendo lugar no texto mas sem corresponder minimamente às expectativas do autor. Como um fingimento vivido enquanto ocasião de deleite.

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                        Amor em fascículos (1)

                        Amor
                        Para Denis de Rougemont, a paixão amorosa terá nascido em pleno século XII, quando dentro do universo feudal se constituiu o mito literário do amor cortês (L’Amour en Occident, 1939). A lenda de Tristão e Isolda definiu o arquétipo. Aqui encontra-se um pouco de tudo aquilo que virá a excitar uma certa imaginação amorosa: o condição de Isolda como mulher casada e supostamente inacessível; a pureza de Tristão e o seu pendor acentuadamente melancólico; a paixão que não pode ser evitada nem controlada, mas que se revela impossível; o filtro mágico que irá unir para sempre os dois amantes; a fuga de ambos através da floresta; as aventuras heróicas e façanhas extraordinárias condicionadas por sucessivos obstáculos e um estado febril de esperança amorosa; o suicídio de Tristão e a morte de Isolda; o amor para além da própria morte. A lenda ocupará um lugar considerável no imaginário cavalheiresco medieval, traçando, pelo menos até aos neo-românticos, o modelo do amor enquanto relação sublime mas necessariamente inquietante. Condenado ao êxtase mas também à definitiva infelicidade.

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                          Os Ciclopes

                          Ciclope
                          Netos de Uranos (o Céu) e de Gaia (a Terra), deuses primordiais na mitologia grega, os Ciclopes são criaturas fantásticas que possuem como atributos a força bruta e, consequentemente, o poder que esta lhes confere. A sua fraqueza reside apenas na visão monocular, a qual, apesar de assustadora para quem os contempla, lhes limita o ângulo de visão, facilitando inúmeras vezes as armadilhas ou a retirada dos seus inimigos.

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                            Chá no deserto

                            Do outro lado do Estreito, sem papéis e sem bagagem. Aceitar o calor. Falar a língua do colonizador tardio. Gesticular um pouco, se necessário. Seguir de dedo no mapa as cidades invisíveis (de Bowles). Espreitar os gineceus das suas casas. As fontes interiores que as suavizam. As sombras que se sucedem às sombras. Guardar o rumor berbere e depois o silêncio, sem olhar as espadas. Murmurar: «não importam as espadas».

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                              Caminho do mar

                              Mal assinalada em certos mapas, inteiramente ausente da maioria deles, a ilha utópica de Philos – concebida por Martigny, na Voyage d’Alcimédon (1789), como um república das artes e do amor – encontra-se protegida do mundo por uma geografia singular: a única parte da sua costa que não se encontra cercada por escarpas e enormes rochedos é um pequeno vale. Aí, porém, as águas são tão pouco profundas que os navios têm forçosamente de se conservar a grande distância. O único processo para alcançar a ilha será, pois, o provocar do próprio naufrágio.

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                                Motel

                                Motel
                                Luzes frágeis pelas quatro da madrugada. Os corredores vazios. De tempos a tempos, alguns passos, a porta que bate, água pelos canos, vozes que parecem palavras. Sem som, o televisor passa imagens indecifráveis. Lá fora, alguém desliga os faróis de um carro. Uma aparência de solidão.

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                                  Cinefilia em sonhos

                                  chien andalou
                                  Folheava num quiosque um diário espanhol quando um pormenor me chamou a atenção: uma pequena crónica sobre o mundo de futebol abria, de forma inusitada, com uma dupla dedicatória a Luis Buñuel e Sofia Loren. Afinal, que coisa teria passado pela cabeça do jornalista para juntar aquela epígrafe de recorte nostálgico a um texto que falava basicamente do interesse pelo hip hop de um rematador merengue? Apenas fui capaz de imaginar o autor, em noite de insónia e crise de ideias, incapaz de encontrar tema para o artigo que na manhã seguinte deveria impreterivelmente entregar. Adormecendo exausto, por fim, para acordar em sobressalto com a cena do olho retalhado a golpe de lâmina do Chien Andalou. Adormecendo de novo para ver surgir a Loren, em todo o seu antigo esplendor, beijando-o na testa e segredando-lhe o tema da crónica.

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