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Quinta-essência

Anna e Jean-Luc

Para os alquimistas, a quinta-essência é o poder, a qualidade e a virtude de tudo e de cada coisa na natureza. Pode ser considerada como um quinto elemento dentro de toda a matéria. Como tal, ela forma a base a partir da qual fluem os quatro elementos facilmente visíveis: o fogo, a água, o ar e a terra. Circulando de forma muito subtil, penetra em todos os objectos, e, ainda que oculta dentro de toda e de cada substância, pode ser reconhecida. Todavia, os anti-tabagistas mais radicais jamais terão acesso à totalidade da quinta-essência desta fotografia de Jean-Luc Godard e de Anna Karina, tirada em 1961 no dia do seu casamento.

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    Sydney, a outra

    Assusta-me a ideia de viajar até à Grande Ilha: enorme a distância, longas horas encapsulado num Boeing, a companhia de sujeitos que trazem tatuado o crime e o degredo. Resisto também à destruição das ideias-feitas. Já me chega Chatwin, no Canto Nómada (The Songlines), descrevendo aquele aborígene, sentado num bar esconso algures perto de Alice Springs, que fazia imitações bastante convincentes de Bob Marley, Jimmy Hendrix e Frank Zappa. Quero preservar os clichés: as avionetas sobre o deserto, o vulto longínquo de alguns cangurús, boomerangs em perigoso voo rasante, sombreiros à Crocodilo Dundee, jogadores de rugby com os bícepes de um Mike Tyson ruivo, e, claro, o edifício da Ópera concebido por um dinamarquês um tanto dado a visões. 30 Dias em Sydney, de Peter Carey (Asa), transporta-me, porém, para qualquer coisa de estranhamente diverso. As «envolventes falésias amarelas», as «ondas lentas, alongadas», o «deslumbrante tom azul com laivos róseos a despontar da espuma na rebentação». Reflectindo a cidade visível de aço, vidro e asfalto, sinal de futuro sob o efeito solar.

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      Vozes

      A fala de algumas línguas, sobretudo a daquelas que não entendemos, define sempre uma harmonia, uma emoção peculiar, que somos incapazes de representar na nossa própria língua. Ouvi certa vez o palestiniano Abdel Karim Sabawi ditar em árabe um dos seus poemas. Não entendi uma só palavra, mas vi estender-se pelo ar, dois passos à minha frente, uma espiral única de vozes e de inequívocos ritmos. A língua italiana, novilatina e por isso mais próxima, essencialmente calorosa, salienta também esse efeito, sobretudo quando pronunciada num dos seus incompreensíveis dialectos. Mas nada de tão raro quanto o grego falado aos seus ignaros. Simultaneamente indecifrável e materno, próximo e fugidio, parece revelar em poucas palavras a bruma azulada, o cheiro a flores cortadas, um resvalar de risos.

        Devaneios, Poesia

        «Às vezes, a realidade é mais estranha do que a ficção»

        Dormia a sono solto na manhã do dia do trabalhador. O bairro periférico parecia dormir também. Ao longe, quase deserta, a via rápida procurava ainda acordar. Como os velhos dirigentes sindicais, que à mesma hora molhavam o pão no café com leite, antes de se prepararem para mais um desfile. De repente, o telefone. Do outro lado uma voz de mulher tentava convencê-lo a comprar a crédito um robô capaz de limpar o pó, de aspirar, de cortar a relva, de fazer bricolage. Suspeitou que fosse uma mentira do Primeiro de Maio. Disse qualquer coisa, desligou.

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          Medidor de paisagens

          Somos protagonistas da paisagem, que é sempre uma representação única para cada um de nós. Por isso ela pode ser tão sublime quanto terrível, tão desolada quanto tranquila, impressionante ou monótona. Desaparecidos de vez os territórios selvagens e inexplorados do passado, sucedem-se agora as áreas desflorestadas, preenchidas com culturas intensivas, as manchas irregulares da urbanização, as estradas que se prolongam, alargam e multiplicam. Como as paisagens industriais, os parques de diversões, os subterrâneos por onde a vida humana continua, os campos de batalha. Somos aí actores e espectadores, voyeurs da nossa própria existência. Filmamo-nos e fotografamo-nos apenas para não nos perdermos no labirinto que nos serve de consolo.

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            Sabedoria em Aphania

            Em Petsetilla’s Posy, obra semi-obscura publicada em Londres no ano de 1870, Tom Hood descreveu Aphania, um reino imaginário da Europa central no qual existia um código penal para as ausências de estilo e onde o plágio era punido com três anos de exílio. Determinadas violações da sintaxe eram mesmo castigadas com a pena capital, em alguns casos executadas de imediato e no próprio local no qual haviam sido cometidas. Para preservar a pureza de estilo, os adjectivos encontravam-se guardados na biblioteca nacional e cada escritor apenas podia utilizar três em cada dia. Os decididamente incapazes de escrever um livro de qualidade mínima eram pagos pelo Estado para viverem na ociosidade e se absterem de o tentar fazer.

            Mais no Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel.

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