Arquivo de Categorias: Direitos Humanos

E agora, América? (cinco notas soltas)

1 – O que aconteceu ontem, dia 5 de novembro de 2024 – fixemos a data, pois ela será marcante e traumática – nas eleições presidenciais dos Estados Unidos da América, foi bem além daquilo que a generalidade dos observadores e comentadores tinham previsto. A vitória de Donald Trump não foi sequer tangencial, contrariando a generalidade das sondagens e das expetativas de quem, dentro e fora da nação fundadora da democracia moderna, jamais previu pelo menos uma folga destas. Ela coloca aos norte-americanos, e também a todo o planeta, problemas associados ao que se antevê ser uma viragem abrupta no entendimento da democracia liberal, no equilíbrio entre os Estados, nas dinâmicas da cidadania e na vida das pessoas comuns.

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    A América também é aqui

    Há cerca de vinte anos, quando passei a ter nas aulas muitos estudantes brasileiros, reparei no grande desconforto que sentiam de cada vez que me referia aos Estados Unidos apenas como «a América». É um velho hábito europeu que ecoa um costume dos norte-americanos, transformando a palavra em conceito gerador de uma identidade transversal a ambos os lados do Atlântico. Como surgiu referido, em sentidos diversos vinculados a esse referente único, em Mon oncle d’Amérique, o filme de Alain Resnais, na canção pessimista This is not America, de David Bowie e Pat Metheny, ou sobretudo em God Bless America, o conhecido hino composto em 1918 por Irving Berlin, usado pela propaganda patriótica americana durante e após a Segunda Guerra Mundial. 

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      O Chega e a «república dos brutos»

      Quando surgiu, o partido Chega foi por muitos considerado apenas um irritante epifenómeno da nossa democracia, algo que nunca passaria de um grupo de saudosos do antigo regime, ocasionalmente reunidos em redor de um fala-barato oportunista, que aproveitava a voga internacional do populismo internacional para dar voz a uma extrema-direita que, no fundo, não se acreditava poder ganhar grande peso no país de Abril. Nesta altura, o seu inegável crescimento, com a generalidade das sondagens a atribuir-lhe um mínimo de 14 ou 15% dos votos nas legislativas de março – não sendo impensável que possa ainda crescer mais desviando muitos votantes do PSD – mostra que aquele olhar inicial era afinal bastante ingénuo.

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        A boa coerência

        A coerência, entendida como forma de equilíbrio entre aquilo que alguém proclama, aquilo em que acredita e o que faz, é uma qualidade positiva e, se não rara, pelo menos escassamente distribuída. Não pode, porém, ser confundida, e tantas vezes é-o, com a teimosia das atitudes ou a calcificação do pensamento, próprias de quem se recusa a conformar as convicções às mudanças do mundo e da história. Por este motivo, ser-se ortodoxo, no sentido de tomar sempre como falsos e inaceitáveis ideias e factos que questionam as suas ideias ou as revelam caducas, não pode ser tomado – e por vezes assim é, quando aplicada a alguns percursos de vida – como grande qualidade. Existe, todavia, uma coerência positiva: a de quem não desiste de uma perspetiva do mundo crítica e atenta à mudança, ou a de quem vê nos princípios elementares da solidariedade humana algo de que jamais abdica. Por muito que em alguns momentos para o fazer tenha de se mostrar «incoerente» e fazer escolhas difíceis
        [Originalmente no Facebook]

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          Vai doer como o diabo, mas é indispensável

          Estamos a viver um período particularmente difícil e sangrento desse longo e dramático conflito que desde os finais do século XIX, e em especial a partir de 1946, tem como campo de batalha Israel e a Palestina, com reflexos imediatos nos países árabes da região, sobretudo no Líbano, na Jordânia e no Egito, e incessantes ondas de choque que atingem o mundo inteiro. Estas têm sido muito ampliadas na guerra iniciada a 7 de outubro com a ofensiva-surpresa dos grupos Hamas e Jihad Islâmica, apoiados pelo Irão, lançada a partir da Faixa de Gaza contra os colonatos judaicos, algumas cidades israelitas próximas e instalações militares.

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            A hipocrisia de um certo discurso «da paz»

            Imersos em experiências e práticas culturais profundamente influenciadas pelos valores essenciais do cristianismo, sendo ou não crentes crescemos confrontados com o versículo do Evangelho de São Lucas «Paz na Terra entre os homens de boa vontade», que dá o mote, em particular nesta altura do ano, a uma retórica generalizada de rejeição da guerra e de louvor da paz. Porém, a frase exprime uma contradição nos seus termos ao diferenciar os seres humanos que considera «de boa vontade» dos demais. Aliás, judaísmo, cristianismo e islamismo, as religiões do Livro, integram na sua experiência histórica palavras de aprovação da violência quando esta castiga quem abandone ou combata a «verdadeira» fé.

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              Reforma e idadismo

              Desde que há cerca de ano e meio fechei a fase da minha vida pessoal como professor no ativo e passei à condição de «aposentado» – um quase eufemismo utilizado para mascarar a dimensão negativa, em regra pejorativa, muitas vezes socialmente associada à palavra «reformado» – começando, como é natural, a ter uma vida algo diferente da que antes tinha. Não que me falte trabalho para realizar ou projetos para desenvolver, e alguns amigos já nem me devem poder escutar a repetir que trabalho mais agora do que antes, o que até é verdade, embora num horário bem mais maleável e sem ter de cumprir os fretes impostos pela burocracia, mas porque mudei inevitavelmente alguns dos meus hábitos, ritmos e trajetos.

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                Importância da crítica e pobreza do proselitismo

                Em mais de quatro décadas como professor universitário, insisti sempre num princípio de pedagogia que julgo fundamental. Referia-o logo no primeiro dia em todas as aulas e seminários: muito mais do que armazenar conhecimento, importa o desenvolvimento da capacidade crítica. Juntando logo que, ao contrário do proclamado pelo senso comum, criticar não significa «dizer mal», ou ser-se acintoso com alguém de quem discordamos, mas exprimir convictamente uma dúvida ou hipótese alternativa destinada a abrir perspetivas dinâmicas e a impedir que alguma teoria ou interpretação possa ser tomada como indiscutível e definitiva.

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                  Essa palavra «vingança»

                  Não existe palavra mais rude que «vingança». Ela traduz a resposta a uma afronta com outra afronta, mesmo quando não está na nossa índole fazê-lo. Pelo início do século XVII, o filósofo Francis Bacon descreveu-a como «justiça selvagem», capaz de «ofender a lei e atirá-la para a rua». Pode ter uma dimensão pessoal, mas a sua modalidade mais imoderada é a de grupo, pois aqui não é pontual, funcionando por meio de de ciclos longos de desafio e retaliação, realizados por famílias e clãs, ou por tribos e etnias, muitas vezes sob a forma de «vendeta de sangue». Pode também ser lançada por setores animados por doutrinas intransigentes de teor religioso, filosófico ou político, em larga medida dinamizadas pela ira e pelo ódio a quem as procure contrariar. 

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                    O imperativo da paz e as «identidades assassinas»

                    Uma frase de Camus, deixada em 1945 no jornal clandestino da Resistência Combat, proclamava que «a paz é a única batalha que merece a pena ser travada». Exprimia um sentido de justiça e um imperativo ético cuja formulação permanece atual. Neste artigo ajuda a sublinhar a necessidade de um combate pela paz entre a Palestina e Israel, possível num quadro de equilíbrio apenas alcançável através da solução de dois Estados independentes, livres e cooperantes, recomendada desde 1974 pela ONU com base na divisão territorial anterior a 1967. Após oito décadas de conflito sangrento e traumático, da intensa presença de ódios instalados, de interferências externas potencialmente trágicas e do sofrimento dos povos, sobretudo do palestiniano, ela será sempre dificílima de obter; no entanto, as alternativas são piores.

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                      Palestina, Israel e a necessária moderação

                      Sobre os terríveis acontecimentos e o cenário de guerra e destruição agora ampliados em Gaza e Israel, cito dois historiadores progressistas israelitas que se lhes acabam de referir. Enquanto para Alon Pauker, «os extremistas, tanto em Israel como em Gaza, alimentam-se uns dos outros e não se preocupam com as vidas das pessoas», para Eli Barnavi «o ataque do Hamas resulta da combinação entre uma organização fanática islamita e a política idiota de Israel.». Estamos, obviamente, perante pessoas moderadas, de uma espécie, se não em vias de extinção, pelo menos com grandes dificuldades de afirmação em Israel. O mesmo acontece, aliás, do lado árabe, onde as palavras sensatas de quem apela à solução política e partilhada do conflito como a única que pode evitar a continuação da opressão e do sofrimento do povo palestiniano são igualmente raras e carecem de grande coragem por parte de quem as profere, considerando a força e os métodos da intolerância, do islamismo radical e do jihadismo.

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                        Ativismo, sectarismo e compromisso

                        Todos os dias presente nos noticiários – mais recentemente a propósito dos combates pelo clima ou de vertentes da luta feminista – o ativismo é uma prática positiva e crucial da cidadania. No sentido filosófico, o termo aplica-se a uma doutrina ou argumentação que privilegia a transformação da realidade em detrimento de uma abordagem que seja sobretudo especulativa. Já no plano mais objetivamente político, usa-se como sinónimo de protesto continuado ou de militância dedicada em prol de causas ou de combates de interesse e impacto públicos. Por vezes em condições de ultrapassar ou de complementar a mais formal e programática atividade partidária. 

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                          Parasitas da democracia

                          Quando se faz análise política num espetro largo, ainda que esta se apoie em dados objetivos é sempre possível conviver com uma margem de erro. Sabe-se que todo o humano é complexo, e que no meio dos sinais e das regras que criamos ou encontramos, podemos deparar com a exceção. Além disso, tudo o que neste âmbito se comenta, ainda que fundamentado, é sempre uma aproximação. Por isso, traçar um esboço da psicossociologia da nossa extrema-direita e da repercussão que tem na vida coletiva que nos cabe, jamais significará traçar-lhe um retrato definitivo, pois este está em permanente construção. Todavia, não andará longe da abordagem aqui proposta. 

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                            O beijo como agressão e um combate necessário

                            Num dos mais perfeitos filmes de François Truffaut, Baisers Volés (Beijos Roubados), de 1968, estreado entre nós três ou quatro anos depois, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), o protagonista, vive obcecado com a sua incapacidade para perceber se aquilo que sente por Christine (Claude Jade) é amor ou apenas desejo. Muitas das pessoas que na época viram o filme andaram semanas a debater apaixonadamente a compatibilidade parcial ou a incompatibilidade total entre estes dois conceitos. O papel figurado do beijo – o título saiu de um verso da canção «Que reste-t-il de nos amours», de Charles Trenet – é ali fundamental, dado este deter uma qualidade quando é clandestino. de certa forma «roubado», e outra quando é público e consentido. 

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                              JMJ: crítica e discriminação

                              Uma boa parte da opinião pública portuguesa, seja aquela que tem voz na imprensa e televisão ou a que se exprime principalmente através das redes sociais, tem vindo a fazer críticas à forma como se organizou e está a funcionar a Jornada Mundial da Juventude de 2023. Boa parte delas prende-se com o despesismo excessivo e absurdo, parcialmente levado a cabo com recurso ao erário público de um Estado que se autodefine como laico. Outra parte liga-se ao modo como o evento está a perturbar a vida corrente de uma boa parte de cidadãos que com ele rigorosamente nada têm a ver. Outra ainda, esta de uma natureza mais objetiva, respeita ao empenho da Igreja católica portuguesa no evento por comparação com a sua simultânea recusa em tomar posição sobre graves e provados comportamentos que têm sido imputados a muitos dos seus membros e colaboradores.

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                                O tema deste artigo foi-me sugerido pela leitura de uma entrevista feita ao autor colombiano Héctor Faciolince, saída no diário Público, onde este relata a sua terrível experiência quando há alguns dias um míssil russo caiu na pizzaria em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia, onde se encontrava. A explosão provocou 13 mortos, entre eles a escritora ucraniana Victoria Amelina, com quem estava a almoçar: «de repente estávamos no inferno», relata, ainda perturbado e a recuperar dos ferimentos. Lembra, aliás, que o ataque não foi um «dano colateral» da guerra, mas uma escolha deliberada e cirúrgica, associada ao facto do Ria Lounge ser «o restaurante onde todos os correspondentes de guerra na Ucrânia vão quando estão na cidade».

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                                  «Peso da responsabilidade» e miséria do anonimato

                                  Esta crónica não tem um fundo moralista, embora possua um fundamento ético, no sentido proposto n’O Mito de Sísifo por Camus: «Todas as formas de moral se baseiam na ideia de que qualquer gesto tem consequências que o legitimam ou que o negam». Isto implica uma pluralidade de práticas e de valores, julgados nas diferentes construções culturais e políticas como legítimos ou como inaceitáveis. Neste contexto, o iluminismo produziu uma perceção peculiar da moral, capaz de combinar liberdade individual e dever para com o coletivo, e depois o romantismo fez dela estandarte. No século XX, que Michel Winock chamou «dos intelectuais», estes assumiram-na como fator-chave da conduta pública e do reconhecimento social.  

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                                    Cultura da denúncia e assalto à democracia

                                    Todos os regimes autocráticos firmam a sua autoridade no uso arbitrário da força, na eliminação da divergência e na disseminação do medo. Para o conseguirem recorrem ao que Foucault chamou os mecanismos da microfísica do poder, combinação tóxica de vigilância hierárquica e sanção normalizadora que dá corpo à disciplina. Esta foi sempre particularmente severa sob as tiranias e as ditaduras, em especial naquelas que incorporaram o complexo totalitário, capaz de impor, nas palavras de Hannah Arendt, «uma dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida».

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