Arquivo de Categorias: Direitos Humanos

Esquerda-direita e outras dicotomias

É razoavelmente consensual que a clivagem política entre os conceitos de esquerda e de direita nasceu com o sucedido naquele salão de Versalhes onde, a 28 de agosto de 1789, em plena Revolução Francesa, se reuniu a Assembleia Nacional Constituinte. Ali se confrontaram os partidários de uma solução política que ainda oferecia ao rei da França um razoável poder de decisão, e os que defendiam que este mantivesse um papel apenas simbólico. Na altura de decidir, os primeiros juntaram-se do lado direito da tribuna, enquanto os segundos ficaram do lado esquerdo, assim se separando os que queriam uma monarquia constitucional e aqueles que já anteviam a república. Nesse dia, a «esquerda» venceu por 673 votos, contra os 325 da «direita». Sabe-se como evoluíram os acontecimentos e de que modo o final da disputa se revelou pouco amável para Luís XVI.

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    As escolhas do PCP

    Aconteceu já em vários outros momentos nos quais o Partido Comunista Português tomou posições que nos planos interno ou internacional foram ética e politicamente retrógradas ou objetivamente antidemocráticas, acabando a defender escolhas conservadoras ou mesmo regimes despóticos e assassinos. No meu tempo de vida, desde a defesa da invasão da Checoslováquia pelos tanques russos em 1968 que isto acontece periodicamente, levando ao afastamento de muitas pessoas que num dado momento reconheceram o lado justo, necessário e até heroico do partido. Desta vez é a posição face à agressão lançada contra a Ucrânia e o seu povo que tem levado um bom número de cidadãos – muitos deles pessoas que no passado até votaram no partido e simpatizaram com algumas das suas posições – a considerar que «foram ultrapassados todos os limites». 

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      Algumas notas mais sobre a guerra

      1. Três perguntas (retóricas) algo incómodas ligadas entre si. As honestas e piedosas pessoas que, como forma de resolução do problema ucraniano, propõem a realização de uma conferência de paz – até aqui com o meu acordo, que assino por baixo sem hesitar -, mas para a qual o agressor russo não parta pressionado nos planos político, económico e militar, acreditam mesmo que perante essa possibilidade Putin vá recuar nos seus objetivos imperiais e nas suas ameaças? E que mude de posição de livre e expontânea vontade, após um súbito rebate da consciência? E que todo o rastro de morte e destruição envolvendo os ucranianos, e também muitos russos, se resolverá com uma varridela dos escombros, uma palmada nas costas e um «o que lá vai, lá vai»?

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        Crimes de guerra na primeira pessoa

        Sabemos como numa guerra não existem lados limpos da mentira e da crueldade. Se isso acontecesse, não se trataria de uma verdadeira guerra. É, desde logo, necessário contar com a propaganda e a contrapropaganda, que tendem a beneficiar ou a defender um dos lados em detrimento do outro. Quem delas não se servir, perde a guerra. Mas deve também contar-se com as dinâmicas inerentes ao combate e a quase impossibilidade de evitar situações de crueldade. Diz-vos isto alguém que já foi militar e esteve dentro de uma guerra civil, onde, como se sabe, tudo é sempre ainda pior que numa guerra com claras linhas de fronteira. Estive em áreas de combate e vi matar pessoas, civis entre elas, em alguns momentos através de gestos de descontrolo que advinham da tensão ou da incompreensão de quem pensava que a melhor forma de não morrer era «simplesmente» matar, ou só sentia vontade punir alguém que, na sua desrazão, considerava responsável pela morte de camaradas ou apenas por estar ali.

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          Linhas vermelho-vivo

          Desde 1968, o ano em que, com Paris e Praga, despertei para a necessidade de ter uma opinião política própria e de a exprimir, habituei-me – mesmo naqueles anos, entre 1971 e 1976, em que fui bastante inflexível – a tomar o lado esquerdo do futuro e da vida coletiva como necessariamente plural. Capaz de conter, a par de uma vontade transversal e profunda de justiça social e de fraternidade, uma grande diversidade nas formas de as conceber, de as conquistar e de as defender. Estas diferenças notam-se sobretudo quando olhamos os programas, as linguagens, as formas de organização e a base social, mas de uma forma muito particular quando se confrontam os valores da liberdade, da equidade e dos direitos humanos. 

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            Chegam notícias da «Terra Sangrenta»

            Nos últimos dias, com o recuo das tropas russas em algumas regiões da Ucrânia, sobretudo na área de Kiev, começam a chegar imagens e testemunhos – a larga maioria mostrados por jornalistas internacionais de muitas origens – que revelam a verdadeira dimensão de barbárie da intervenção de Moscovo no terreno. Por todo o lado a destruição total, focada nas habitações, de edifícios de apartamentos a casas isoladas, e nas estruturas que servem as populações, como escolas, hospitais, serviços de fornecimento de água e eletricidade, centros comerciais, armazéns, museus ou igrejas. Para não falar daqueles outros objetivos que podem até ser considerados também militares, como pontes, estradas, depósitos de combustível ou instalações de governo local. 

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              Refugiados, solidariedade e caridade

              Passadas quatro semanas do início da invasão da Ucrânia, já chegaram a Portugal mais de 21.000 pessoas, a larga maioria composta por mulheres e crianças que aqui procuram refúgio, e com ele, em muitos casos, a possibilidade de escapar à morte e à destruição do seu país, podendo começar a refazer as suas vidas. Para trás ficaram muitos homens, e também algumas mulheres, que integram agora a corajosa, e, pelo que se pode ver, eficaz resistência armada ao invasor. Ficou também a vida toda: as suas casas, os seus bens, os amigos e familiares, o emprego, a escola, os projetos, as memórias.

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                Pacifismo seletivo, capitulação e colaboracionismo

                Diante de todas as guerras, começando pelas travadas em larga escala sobre as quais circula um volume esmagador de informação e propaganda, importa falar de paz e trabalhar para que esta tenha lugar. Aliás, o objetivo da guerra é sempre a conquista de uma ordem fundada na paz, se bem que seja indispensável distinguir as travadas pela justiça ou contra a opressão, das outras, a maioria, onde a própria «pacificação» impõe uma ordem injusta e dolorosa, ainda que produzida com menor dose de ruído. Fala-se nestes casos de uma «paz podre», fundada na violência e na lei do mais forte. 

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                  Imigrantes e refugiados

                  Em menos de quatro semanas o número de imigrantes ucranianos/as em Portugal passou de cerca de 27.000 para mais de 45.000, continuando a crescer devido à chegada de refugiados da guerra de invasão do seu país perpetrada pela Rússia. Tornaram-se assim a segunda comunidade estrangeira mais numerosa, a seguir à de brasileiros, bastante maior, e superando a de ingleses e de cabo-verdianos. São pessoas vulneráveis e em larga medida qualificadas, preenchendo ao mesmo tempo um imperativo de solidariedade e um enriquecimento da nossa sociedade, onde em muitas áreas de atividade, devido ao crescimento demográfico negativo, existe já um défice de pessoas. É claro que isto não acontece sem se notar a animosidade do costume, para já apenas murmurada, mas que irá tornar-se audível. A da extrema-direita, para quem a palavra «refugiado» significa inimigo, e a dos setores para os quais existem sempre refugiados prioritários e estes não serão de origem europeia. Com motivações diferentes, ou mesmo opostas, ambos os extremos coincidem no grau de desumanidade. [Atualizado em 23/3/2022]

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                    Refugiados e humanitarismo conceptual

                    A perder de vez a dose de paciência que ainda me restava com aquela espécie de gente que, de tanto amor conceptual por uma humanidade distante, não perde a oportunidade para apoiada em explicações ou em fantasias fabricadas à medida, mostrar menosprezo pelo sofrimento mais próximo. Aquele manifestado na primeira pessoa e gravado no corpo, por gente de carne e osso que nos surge ao virar da esquina ou à distância de apenas umas horas de viagem. 

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                      Lavar as mãos como Pilatos

                      Desde o início do terrível conflito determinado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, a posição do PCP tem sido coerente com aquela que tem mantido noutras ocasiões igualmente dramáticas e de idêntico sentido. Pela maior proximidade temporal e pelo idêntico e brutal estilo de intervenção, relembro o que aconteceu na Síria, onde, usando como desculpa a presença no terreno do Daesh, ali de facto minoritário, apoiou a intervenção russa de suporte bélico ao ditador Assad, sobre a qual chegou a organizar sessões «de esclarecimento» pelo país, que levou à total destruição de cidades inteiras – Alepo, a maior do país, foi arrasada –, à morte de centenas de milhares de pessoas e à fuga e exílio de milhões.

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                        A dificuldade da confluência

                        Em vários locais do país, como noutros lugares da Europa e do mundo, realizaram-se ontem manifestações de protesto contra a brutal invasão da Ucrânia imposta pelo tirano e oligarca Vladimir Putin. Como acontece nos momentos mais críticos da vida social, e assim deve ser, essas manifestações foram amplamente unitárias, reunindo, na convocatória, um amplo leque de partidos e movimentos políticos, e depois, na rua, um grande número de homens e mulheres seus apoiantes ou, na larga maioria dos casos, sem partido. Em Coimbra participaram Bloco de Esquerda, CDS, Cidadãos por Coimbra, Iniciativa Liberal, Nós Cidadãos, PAN, PPM, Partido Socialista, Partido Social Democrata, RIR, Somos Coimbra e Volt Portugal. Só não estiveram Livre (acredito que por falta de contacto, pois este partido participou em Lisboa e no Porto), Chega (que não foi convidado por não ser defensor da democracia) e Partido Comunista Português (que a par do chamado Partido Ecologista Os Verdes tem «compreendido» e justificado a invasão).

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                          O atrevimento da «opinião» infundada

                          Ao contrário do que por vezes oiço, não considero que para falar de forma pública sobre qualquer assunto seja necessário que quem o faz seja um especialista no tema. Se assim fosse, não existiria opinião pública, ou então as conversas cingir-se-iam a obscuros conciliábulos de peritos. Passei grande parte da vida num meio profissional onde é habitual não tomar posição sobre questões críticas porque, como diz quem se escusa a formular opinião não-consensual ou a definir uma escolha difícil, elas não são «da sua especialidade». Todavia, quando emitimos opiniões perante os outros, e em particular quando o fazemos para uma audiência – as redes sociais vulgarizaram este processo, e isto não é necessariamente um mal – temos o dever de nos informar sobre o tema abordado, evitando assim dizer disparates logo na primeira frase. E não precisamos de pesquisas aturadas: a Internet fornece informação essencial sobre tudo e o trabalho de cada um consiste em procurá-la e em lê-la com atenção e de forma crítica.

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                            Um pouco de racionalidade, outro tanto de história

                            1. Como qualquer pessoa razoavelmente atenta e avisada previa com bastante segurança, a guerra, sob a forma de invasão, prevista por uas quantas almas para começar esta semana entre a Rússia e a Ucrânia, de facto não teve lugar. E, mesmo considerando, para quem tenha fé, que o futuro só a Deus pertence, muito dificilmente ocorrerá nos tempos mais próximos. Tratou-se de um jogo de pressões e chantagens que, obviamente continuará, na qual cada uma das partes procura assegurar posições num processo de equilíbrio instável. Pelo menos enquanto prosseguirem as disputas territoriais e os conflitos de influência entre Moscovo e Washington, com a União Europeia de permeio. Misturar o desejo de alimentar o sensacionalismo com o visionamento dos filmes de ação não é grande munição para produzir análises criteriosas de política internacional.

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                              «Cancel culture» em tempos sombrios

                              Como se sabe, a «cancel culture» (ou «cultura do cancelamento») é uma forma de ostracismo em que uma pessoa é expulsa de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis – tenham elas ocorrido online ou no mundo real – por parte de quem desenvolve essa operação. Conduz ao boicote dessa pessoa, geralmente alguém prestigiado, de bom nome, que no presente ou no passado, incluindo-se aqui mesmo um passado bastante distante, adotou e compartilhou uma opinião controversa ou teve um comportamento no atual momento considerado errado ou ofensivo. Esta pessoa é então «cancelada», apagada, ignorada ou boicotada por antigos amigos e seguidores, transformados agora em adversários jurados, provocando um grave prejuízo na sua vida pessoal e pública.

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                                Utopias que geram distopias

                                Um dos problemas da produção daquelas utopias que se supõe conceberem, nos planos literário ou filosófico, modelos de sociedades tomadas como perfeitas, é que tendem a tornar-se distopias. De um não-lugar imaginado como equilibrado, justo e feliz para um espaço social de opressão, desespero e privação. Infelizmente, a história, sobretudo a do século XX, está cheia de exemplos desta natureza, remetendo para experiências onde o horror foi antecedido por uma expectativa de perfeição. Na verdade, a «mãe de todos as utopias», proposta por Thomas More, em 1516, na obra que deu o nome a todo um género, contém já de si a semente desse horror, uma vez que propõe como perfeita uma sociedade, em boa parte inspirada na vida monástica, onde, em nome da igualdade, não há lugar para a liberdade individual e todos os gestos são ferreamente legislados e impostos. Sendo tal concebido, como sabe quem leu a obra, em nome de uma proposta humanista de superação das iniquidades do mundo, e em particular as da Inglaterra da época do autor. Um ideal de bem transformado em fonte do mal.

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                                  A nobre arte da política

                                  Ontem à noite, enquanto via na HBO mais um episódio da série de televisão, já com alguns anos, sobre a vida pública e privada de John Adams (1735-1826), uma das figuras centrais da Revolução Americana e o segundo presidente dos Estados Unidos, confrontei-me com um tema recorrente nas biografias de homens e de mulheres que dedicaram o essencial da sua vida à arte – arte porque deve misturar técnica e invenção – da política. Refiro-me a considerar a forma como essa escolha, se estiver associada a um ideal e a uma perspetiva coerente do mundo e da história, em muito determinou as suas escolhas de vida, as suas relações pessoais, a sua capacidade para distinguir o importante do acessório. Sendo construída como uma missão, à qual tantas vezes se sacrificam o descanso, a tranquilidade, alguns prazeres e mesmo a própria família, enquanto os riscos e as situações mais árduas se sucedem. O longo percurso de Adams, desaparecido aos 90 anos, para a época uma eternidade, foi disso constante testemunho.

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