Palavras e frases entram e desaparecem, como bordões da fala, de acordo com diferentes tendências ou modismos. Ao facultar exemplos, a comunicação social, em especial a televisão, tornou este processo, mais constante e célere do que ocorria em passados mais distantes. Entretanto, quem tem a profissão de professor tem a sorte (algumas vezes, também o azar) de perceber melhor esta transformação, pois os seus alunos são um bom indicador das palavras ou das frases que estão em voga, bem como daquelas que estão a desaparecer ou de todo eles já não usam. Por vezes, isto já me aconteceu em alguns momentos, o próprio professor adquire aquele tique e, sem dar por isso, de repente já o está a usar, colaborando na sua disseminação. Outras vezes é forçado a mudar para ser plenamente entendido. Não vejo nada de mal nesta tendência, que apenas torna mais veloz o processo infinito e constante de metamorfose das línguas. Aliás, língua alguma, salvo aquelas julgadas mortas, escapa a essa dinâmica, por muito que alguns puristas procurem evitá-lo ou disfarçá-lo com normas excessivamente rígidas.
Desde que em 1982 comecei a ensinar na universidade, a cada Julho costumo fazer um balanço da forma como correram as aulas. Até há pouco, e mesmo sendo juiz em causa própria, considero que ele foi sempre globalmente positivo. Sem falsa modéstia, e retirando uma ou outra situação pontual menos boa, inevitável numa experiência que envolveu meia centena de disciplinas e seminários, cerca de setenta orientações de pós-graduação e ao redor de vinte mil alunos e alunas, acredito que o esforço e a entrega valeram sempre a pena. A memória que tenho da larguíssima maioria das aulas e dos alunos, mesmo de muitos dos menos empenhados, foi quase sempre a de envolvimento, curiosidade e aproveitamento médio, bom ou excelente. Ao ponto, tantos anos depois, de permanecer na memória de largas centenas deles, que continuam a transmitir-me constantes e até afetuosos testemunhos de que o esforço compensou. (mais…)
Completei ontem, 6 de Janeiro, 35 anos como professor da Universidade de Coimbra. Como é natural, quando comecei sabia menos que hoje, era mais rígido na abordagem dos programas e inexperiente no relacionamento com os alunos. No entanto, considero que a maioria das aulas desses anos iniciais foram mais «aulas universitárias» que algumas das atuais. Pelo menos como sempre entendi que as aulas universitárias devem ser: espaços de abertura ao conhecimento avançado, à troca de ideias e à cultura crítica, e lugares de preparação para a vida pessoal e profissional. Os motivos dessa involuntária degradação, manifesta ao longo da última década, são vários e complexos. Limito-me a seis.
Em primeiro lugar, as consequências do «processo de Bolonha», que às vantagens juntou escolhas a meu ver negativas, como a redução do tempo letivo e a transferência do foco pedagógico dos conteúdos para as competências. Ou, como disse há dias Richard Zimler, a passagem da educação para o treino. Em segundo lugar, o alargamento exponencial das tarefas administrativas atribuídas aos professores, reduzindo em muito o seu tempo e a energia para se dedicarem às suas aulas, aos alunos e à investigação. Em terceiro, a afirmação de um ambiente cultural e de um pensamento dominante favorecedores de «saberes práticos», associados ao mercado e ao lucro, e menos ao conhecimento como fator de enriquecimento pessoal. Em quarto, a substituição do paradigma da cultura vinculada à leitura imersiva, pausada e refletida, por um outro, essencialmente visual, efémero e processado em zapping. (mais…)
Qualquer professor, independentemente do grau do ensino no qual exercita a profissão, depara-se a todo o instante com problemas da comunicação associados a erros do português escrito, alguns deles crónicos, que os seus alunos cometem. Quem andasse distraído poderia, no entanto, pensar que no ensino superior essa praga – que tanto deforma os textos e prejudica a sua clareza – se sentiria bastante menos que noutros graus de ensino, mas os últimos anos, e os últimos cinco ou seis em particular, terão servido para desfazer tal ideia. Lemos agora relatórios, trabalhos, testes escritos, e-mails dos alunos, nos quais as palavras incorretamente escritas, a par de uma sintaxe cada vez mais trôpega ou simplificada, por vezes inadequada ao padrão de discurso no qual se está a procurar comunicar, representam um verdadeiro tormento, prejudicando a expressão fluida mas rigorosa do conhecimento. (mais…)
Posso contar uma experiência em tudo parecida com a que outros contaram hoje nos jornais, nos blogues, nos murais do facebook. Em maio daquele ano fiz o exame da 4ª classe na minha escola primária, a principal, a da vila. Mas os alunos das aldeias em volta tiveram de vir, alguns a pé, nos seus melhores fatos, com o ar mais sério que eram capazes de pôr, cumprir a prova que desde a 1ª classe tanto temiam e para a maioria deles iria encerrar, para sempre, o tempo de estudos. Depois, em junho, como fazia parte do pequeno grupo dos que deveriam entrar no ensino secundário, fui à grande cidade fazer o exame «de admissão ao liceu» com prova escrita e oral. Lembro-me de tudo: do átrio enorme e assustador, dos corredores em cor beije e das salas numeradas, da minha primeira gravata vermelha (com pintas brancas), da cara patibular dos professores e, no final, passada já a grande dor de barriga, de ter comido na rua um portentoso sorvete de morango. Mas não recordo mais nada: das perguntas, da forma como me desembaracei delas, do que aprendi ou inventei para poder passar aquele transe sem grandes problemas. Nada, nadinha, nicles. Hoje compreendo que afinal o essencial não era aprender mais e melhor: era antes assinalar um ritual de submissão à hierarquia dos saberes e ao sagrado lugar da autoridade. E é isso que, na verdade, pretende replicar esta ideia peregrina de ressuscitar no século vinte e um o exame do 4º ano de escolaridade. Industriar os maleáveis cérebros dos pequenos corpos, para além de uma aprendizagem rudimentar, no reconhecimento de que existe um cerimonial de aferição a cumprir. Numa vida inteira a ser-se avaliado e a fazer por passar à frente dos outros. Sabendo muito, pouco ou quase nada.
Uma matéria destacada esta semana pelo Público e pela Visão chamou a atenção para um livrinho com o expressivo título Faz o Curso na Maior. O subtítulo, programático, merece também a atenção: Estuda o Mínimo, Goza ao Máximo: Os Conselhos de um Professor Universitário. Nuno Ferreira, 32, o autor, é-o ou foi-o, ao que declara no Instituto Politécnico de Setúbal, no Instituto Politécnico Autónomo, na Universidade Lusófona e no ISCTE, e pretende, aos olhos do público leitor e potencial comprador da «obra», fazer valer o currículo de sucesso que o levou a ascender da condição de aluno calão à de docente e, hoje, à de «especialista em banca e corporate finance numa das mais importantes consultoras estratégicas do mundo». Nuno foi, como reconhece, o protótipo do aluno preguiçoso e sem vontade de estudar, que no entanto teve a presciência de saber diferenciar muito bem três tipos de estudante, escolhendo de entre eles aquele que lhe convinha personificar: o vulgar, que pouco estuda, nunca terá grandes notas e jamais irá longe; o «cromo», o «pobre marrão», que segundo ele apenas vive para o estudo; e o esperto, aquele que, tal como ele, passou os anos do curso a faltar às aulas, a passar manhãs na cama, a ficar no bar da faculdade a jogar às cartas, a beber imperiais numa cervejaria e a ir a festas atrás de festas, organizando até algumas e ainda com tempo para praticar desporto com regularidade.
O tema é difícil. Principalmente para quem integrou e conserva nas suas quimeras úteis o ideal de uma pedagogia que capaz de privilegiar tanto o conhecimento das coisas e das ideias quanto a formação da capacidade crítica de pessoas livres. Um tema doloroso para quem jamais deixou de simpatizar com as propostas antiautoritárias de Paulo Freire e dos seus bons cúmplices. Como Agostinho da Silva, para quem «nada pode ser ensinado por imposição» e um professor «não é um capataz mas um auxiliar e um guia, cuja função é sugerir e não impor.» Difícil ainda para as convicções de quem pensa que a este princípio não pode ligar-se o seu inverso, que é o da subordinação do professor a lógicas que transtornaram os papéis de quem tem a missão de ensinar e de quem precisa aprender, convertendo a escola num local de conflito dentro do qual, demasiadas vezes, se gasta mais tempo a mediá-lo do que a fazer aquilo que realmente importa.
É este, no entanto, o cenário sobre o qual se têm desenvolvido os dolorosos problemas «de disciplina» que afetam muitas escolas secundárias e que – aspeto ainda algo encoberto – chegaram já às universidades. Na verdade, e por isso usei as aspas ao falar de disciplina, trata-se sobretudo de problemas de ausência de autoridade. Não no sentido da imposição violenta da vontade de alguém, ou de um regime educativo tirânico, mas da defesa das condições de trabalho de quem, professores e alunos, vive em comum para ensinar e para aprender. Por isso não posso se não discordar da posição dos que defendem serem os dispositivos legais que podem reforçar a autoridade do professor «uma resposta ilusória», como acaba de declarar uma deputada do Bloco, ou que esta se obtém basicamente «por reconhecimento social», como sugeriu um deputado do PCP. É que foi justamente esta posição, dominante durante décadas, que desarmou os professores e os transformou em alvos fáceis, retirando-lhes instrumentos necessários para poderem exercer de forma digna, livre e democrática a sua missão. O tema deveria, por isso, ter um peso importante na agenda dos partidos da esquerda e dos sindicatos do setor. E não ficar nas mãos da direita.
Nem sempre concordei com algumas das metas, e sobretudo com muitos dos processos, que dominaram a luta estudantil desde os meados dos anos noventa, após o arranque aparatoso do movimento antipropinas em 1992-1994. Por essa altura, uma parte significativa dos dirigentes associativos empenhou-se numa fuga para a frente, subordinando os seus cadernos reivindicativos à exposição mediática, como se por si só esta legitimasse o seu esforço. Concentrados nos três minutos de fama dos telejornais, eles foram-se progressivamente concentrando numa lógica corporativa, esquecendo a grande maioria de estudantes que não se reviam no «aparelhismo» associativo, e outros sectores universitários, como os professores, geralmente encarados mais como «inimigos de classe» do que como possíveis aliados.
Observámos então actividades e «jornadas de luta» verdadeiramente patéticas, com escassas dezenas de estudantes encabeçados pelos seus «dirigentes» – sistematicamente rodeados dos microfones das rádios e das câmaras das televisões – a fecharem faculdades a cadeado, contra a completa indiferença, e até a animosidade, da larga maioria dos seus colegas, dos professores, dos funcionários e da opinião pública. Estive na época em reuniões horríveis, nas quais, com muitos outros professores abertos ao diálogo e sensíveis a grande parte das preocupações estudantis, fui tratado como um perigoso adversário, jamais como eventual aliado. Vi ao mesmo tempo como a grande maioria dos alunos, incluindo muitos dos mais participativos, observava com o maior desdém a atitude dos que diziam falar em seu nome. O resultado era já previsível e em breve seria confirmado: o recuo e a desmobilização da prática reivindicativa, a reacção defensiva das instituições universitárias, o desinteresse gradual dos cidadãos comuns e dos próprios média, condenando a luta estudantil ao apagamento.
Vejo pois com interesse e expectativa a vaga de luta estudantil que parece reemergir do silêncio. Preocupada agora, pelo menos aparentemente, com causas que transcendem a dimensão estritamente casuística e corporativa e comportam um impacto social mais geral, como sejam a crítica do sub-financiamento das universidades e a progressiva exclusão dos alunos com menos recursos materiais. De facto, apenas as preocupações e as palavras de ordem que têm em conta os problemas colectivos podem retirar a luta estudantil do gueto para o qual se deixou empurrar, devolvendo-lhe o estatuto de movimento social forte e respeitado. Os estudantes em luta, nas escolas ou na rua, sempre foram um sinal de futuro, de ousadia, de esperança. Mesmo quando as suas razões e modus operandi pareceram, ou foram, discutíveis. Em momentos como o actual, quando a maioria das nossas instituições universitárias se preocupa sobretudo com a sua própria sobrevivência e os governos se habituaram a impor políticas economicistas sem grande resistência das autoridades académicas, a sua iniciativa é crucial. Olhemos então, de novo, para eles.
Ao contrário daquilo que pode pensar quem esteja de fora, os problemas pedagógicos do ensino universitário não são agora em menor escala, nem mesmo, em alguns casos, substancialmente diferentes, daqueles que estão desde há muito identificados nos ensinos básico e secundário. Limito-me aqui a enumerar duas áreas particularmente críticas, embora raramente abordadas. A primeira tem a ver com profundas convulsões que têm afectado crescentemente a autoridade do professor e o relacionamento na sala de aula. A segunda relaciona-se, de um lado, com o confronto entre a forma tradicional de conceber os processos do conhecimento e os métodos de ensino, e, do outro, com as diferentes expectativas das mais recentes gerações de alunos, frequentemente associadas aos novos instrumentos de acesso à informação.
Em «La era del profesor desorientado», um artigo surgido sábado passado no El País, anuncia-se uma situação que, afinal, está a cruzar todas as fronteiras da velha e ex-conservadora Europa: os professores enfrentam estudantes menos obedientes, aparentemente menos receptivos, mas que se movimentam muito bem em áreas que eles, educadores, conhecem mal ou não dominam de todo. Faz-se então uma pergunta: será preciso regressar à velha disciplina ou é antes preferível modernizar o ensino?
Traduzo o parágrafo inicial do artigo do diário espanhol: «Uns acreditam que o problema reside no facto dos professores do século XX tentarem educar a jovens do século XXI em escolas do século XIX, e por isso as coisas não funcionam. Outros, que foram perdidos valores básicos da educação, sobretudo a disciplina e o esforço. Na realidade, trata-se de duas maneiras distintas de enfrentar um mesmo facto: que os docentes não conhecem, não encontram ou não lhes oferecem as ferramentas necessárias para ensinar a novas gerações de jovens, as quais não respondem da mesma forma que as anteriores à educação escolar.» Um caso sério, diante do qual a pior solução – que infelizmente tem vingado em muitos casos –, consiste em meter a cabeça na areia, ignorando a situação real de mudança de paradigma que atravessamos, e marinando na ficção de que um dia as coisas «melhorarão» por si (isto é, voltarão ao antigo modelo). Ou então decairão inapelavelmente. Em ambos os casos, atirando a toalha ao chão.
Nicholas G. Carr, o autor de The Big Switch, aponta para uma viragem que não é ilusória: «A Internet diminui aparentemente a minha capacidade de concentração e de reflexão. O meu espírito reconhece agora as informações de acordo com a forma como a Internet as distribui: como um fluxo de partículas que escorre rapidamente. Antes eu era um mergulhador num mar de palavras; agora rasgo a superfície como um piloto de jet-ski.» Carr serve-se dos avanços das neurociências relacionados com a plasticidade do sistema nervoso para sustentar que os circuitos neuronais se adaptam facilmente a uma leitura rápida, sublinhando como este aumento de velocidade está a reprogramar biologicamente o nosso cérebro. Quando, ainda nos anos 60, Marshall McLuhan anunciou o fim da «galáxia de Gutenberg», da preponderância do paradigma tipográfico, o cenário era já previsível para os mais sagazes.
Mas foi a criação e sobretudo a generalização da Internet que suscitou um confronto inevitável entre o antigo modelo da leitura lenta – silenciosa, reflexiva, essencialmente individual –, e um outro, fundado agora na velocidade, no ruído, no movimento e na partilha. E também na simbiose com outros processos de comunicação. Os resultados de um inquérito recente reportaram que cerca de 80% dos adolescentes americanos são incapazes de se concentrarem na leitura sem a presença de música ou de um qualquer ruído de fundo, ou sem imagens a dançarem num ecrã, algures debaixo do seu ângulo de visão.
Um dos problemas que a situação transporta consigo não está no reconhecimento de uma mudança radical nas formas de percepção e nos estilos de vida, uma vez que esta é incontornável e de certa forma inevitável. Está antes nos sectores que ainda têm peso no controlo do saber e da comunicação, e a observam «entendendo» que o processo é passageiro e esperando, quixotescamente, que ele possa um dia recuar. O resultado é uma clivagem brutal entre universos e linguagens que em breve os tornarão incompatíveis, projectando cenários para um novo estado de barbárie.
A realidade é particularmente dramática no campo do ensino superior, em particular no das humanidades, no qual o paradigma gutenberguiano, essencialmente livresco e baseado ainda, demasiadas vezes, no arquétipo do sábio humanista encerrado no seu gabinete, permanece dominante, tanto ao nível pedagógico como nos critérios de aferição científica, em termos de orientação e de reconhecimento dos trabalhos académicos, privilegiando-se claramente nas avaliações curriculares o modelo anterior. Continua a considerar-se, em muitas ocasiões, que existe uma «leitura de distracção», decididamente inferior, a qual pode de facto transcender a comunicação em papel, e uma «leitura de informação», sem dúvida superior, que dos livros, ou pelo menos dos escritos em formato tradicional, se serve como suporte praticamente exclusivo.
Existe porém um outro modelo de leitura. Este implica uma hibridez de instrumentos cognitivos, de formas de saber e até de códigos de validação. E a construção sistemática de pontes entre processos e atitudes. Ele não supõe a diluição do conhecimento superior no saber comum, mas tão só o reconhecimento de que existe também um património de experiências, de dados e de saberes em relação ao qual as estratégias da investigação, da partilha e da comunicação terão de ser mais abertas. Estas devem em larga medida ser reinventadas, para que os vestígios do anterior paradigma possam sobreviver e não sejam apagados pelas gerações que estão a chegar – apetrechadas já das grandes alterações ao nível dos mecanismos de percepção – e o olham como qualquer coisa de caduco ou mesmo de incompreensível. No diálogo homónimo atribuído a Platão, Fedro, o jovem interlocutor de Sócrates, percorre distraído um texto em papiro no preciso momento em que o filósofo disserta, amargurado, acerca dos inconvenientes e dos perigos da escrita. É este corte entre dois mundos, tão absoluto quanto absurdo, que seria bom conseguirmos evitar.