Sofia Loren faz hoje 75 anos e há sensivelmente 60 que anda por aí, revelada em filmes e fotogramas, a perturbar as horas de descanso de adolescentes com borbulhas e honestos patres familiae de diferentes gerações, origens, línguas, credos e regimes. Abençoada seja também por isso. E longa vida à camarada Sofia!
A ideia segundo a qual ler faz as pessoas melhores, vulgarizada pelos iluministas e pelos românticos, e comum a muitas campanhas de divulgação da leitura e a «máximas» proclamadas por boas almas, acaba de sofrer mais um abalo. O historiador alemão Ulrich Sieg publicou há pouco tempo um artigo no Frankfurter Allgemeine no qual revelou que Adolf Hitler não só possuía uma enorme biblioteca pessoal – cerca de 16.000 títulos – como terá de facto lido uma grande parte deles, uma vez que dos 1.200 conservados quase todos foram cuidadosamente sublinhados e anotados. De fio a pavio. Como seria de esperar, os livros sobre a Primeira Guerra Mundial, estratégia militar, magia e esoterismo preenchiam uma boa parte daquele número, mas havia também muitas obras de filosofia (sobretudo de e sobre Kant, Schopenhauer e Nietzsche) e ficção. De facto, ler muito não faz necessariamente bem às pessoas. Pode até ser tóxico e exemplos históricos como este não faltam. O elogio e a propaganda da leitura devem procurar estratégias melhores do que aquelas que insistem em mostrá-la como território nuclear da formação da bondade de carácter. Declarando, por exemplo, a crítica e o debate como instrumentos inseparáveis do acto de ler.
Posso tornar-me suspeito de estar a fazer publicidade à editora que tem publicado alguns dos meus livros. E provavelmente estarei – embora não inteiramente, pois não a nomeio no texto do post nem colo aqui o link –, mas este cartaz justifica o regime de excepção.
Ainda não desapareceu totalmente a desconfiança perante uma História assumidamente narrativa que dominou a historiografia portuguesa entre os finais da Segunda Grande Guerra e os inícios dos anos oitenta. Por isso, e apesar desta tendência ter vindo a recuar no contexto de uma prática recente mais assumidamente polifónica, a obra de Vasco Pulido Valente permanece entre os da sua geração como um caso raro de opção por aquele modelo. Foi todavia esta preferência que lhe permitiu transformar-se num raro caso de mérito académico associado a aptidão para uma abertura, sem preconceitos, a um público alargado e não-especialista de amantes da História. A Pulido Valente se deve, por isso, a disponibilização a um arco alargado de leitores – sem concessões de maior ao rigor e de um modo simultaneamente atraente e romanesco – de uma abordagem crítica dos últimos dois séculos de vida dos portugueses e de alguns dos seus principais intérpretes. O que não significa uma obra historiográfica metodologicamente incontroversa, por vezes vinculada a interpretações francamente polémicas.
Portugal – Ensaios de História e de Política é uma colectânea de artigos dispersos, publicados entre 1983 e 2006 em revistas e jornais, que confirma esta tendência, disponibilizando um conjunto de viagens literárias através das quais podemos tomar contacto com momentos e ambientes nucleares para um reconhecimento do nosso trajecto comum nestes últimos dois séculos. Sobressaem três estudos mais extensos: um sobre as vicissitudes do liberalismo português no período que antecedeu a Regeneração, um outro sobre as circunstâncias, as voltas e os desvios da «República Velha», desde 1910 até ascensão meteórica mas fugaz de Sidónio Pais, e um terceiro, já antes parcialmente publicado em livro, sobre a vida e o trajecto político de Marcello Caetano. Os restantes textos têm um carácter mais avulso, atravessando a biografia e a autobiografia. Em todos eles, um lugar destacado atribuído a personalidades reconhecidamente nucleares do século XX português: Afonso Costa, Sidónio, Salazar, Marcello, Spínola e Cunhal. Apenas Mário Soares – que surge recorrentemente em artigos e crónicas do autor de um modo tão fugaz quanto Hitchcock nos seus filmes – permanece aqui numa imerecida penumbra.
Como comum marca de água, o tom por vezes irónico, outras vezes quase impiedoso, reconhecido no autor também da sua actividade como cronista, que pode suscitar de imediato a contradição, ou desagradar aos resistentes adeptos de uma história supostamente «neutra», mas que sugere sempre interpretações incapazes de nos deixarem indiferentes. O artigo sobre o «25 de Abril», divulgado aquando do trigésimo aniversário da revolução, e provocatoriamente provido de aspas, é disso claro exemplo. A História que Vasco Pulido Valente nos vai oferecendo não deixa ninguém indiferente.
Vasco Pulido Valente, Portugal – Ensaios de História e de Política. Alêtheia Editores, 336 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Julho-Agosto]
Ao usar hoje o meu caderno Sapiens, vendido como «uma réplica fiel» dos livros para notas e esboços utilizados por Rafael, Galileu e Leonardo, reparei em como o tenho desprezado nas últimas semanas. A culpa é do iPhone. Há mais de dez anos que me sirvo apenas de agendas electrónicas, e tinha até comprado há pouco tempo um utilíssimo HTC, mas as novidades do novo iPhone 3GS resolveram quase todos os defeitos da versão anterior e converteram-me. Trespassei a máquina com menos de um ano de uso, comprei o novo aparelhómetro e procurei aplicações das quais precisava, entre elas uma versão de bolso do Office que permite modificar documentos, um editor de imagem, outro para os blogues, um dicionário, uma enciclopédia, um leitor de e-books. A seguir actualizei o livro de endereços para poder usar o correio electrónico, atulhei a máquina de música, e fiquei pronto para andar com um completo computador (telefone, máquina fotográfica, câmara de vídeo e agenda também, naturalmente) no bolso das calças.
Só posso dizer que o acessório é mesmo magnífico, de uma utilidade imensa para quem precisa a qualquer hora, para trabalho ou lazer, de um computador eficaz e de uma ligação rápida à Internet. Desde que não se importe de mudar radicalmente determinados hábitos e de transmitir, a quem observe de fora, a impressão de passar tempos infinitos a escrever SMS. É pena o preço bastante elevado (nos EUA custa menos de metade) e as limitações da bateria (o paralelepípedo faz tanta coisa que precisa ser carregado todos os dias). Apresento a prova final de que falo verdade e de que não sou um mero mercenário da Apple: este post foi integralmente escrito, a fotografia editada, e o conjunto publicado neste blogue, sem outra intervenção que não a do iPhone.
A Reader’s Digest encaminha-se para um processo de falência. A confirmar-se, esta representará para muitas pessoas, como aconteceria com o fecho da Coca-Cola ou o desaparecimento de Hollywood, o fim de uma era. Parte importante da percepção internacional da América, e até do modo como muitos americanos se vêem ainda hoje a si próprios, foram construídos tendo como suporte os artigos, crónicas, «piadas de caserna» e «episódios da vida real» condensados, a partir de 1922, na revista que tinha com lema «America in your pocket». As Selecções do Reader’s Digest serviram de instrumento da Guerra Fria e, provavelmente por isso, durante décadas circularam em Portugal sem problemas, primeiro na versão brasileira, iniciada em 1942, e a partir de 1971 em edição nacional. Em conjunto com ABola e a Crónica Feminina, a revista Selecções chegou a ser um dos títulos com maior tiragem, com lugar certo em muitas casas portuguesas. Tem ainda uma tiragem mundial de 100 milhões de exemplares – é publicada em 19 línguas e em 48 diferentes versões –, mas entretanto deixou de interessar às famílias da classe média, que foram o seu público original, e é hoje uma publicação visivelmente anacrónica. Porque o mundo mudou muito, a América também e, apesar de alguns retoques de cosmética, as Selecções não mudaram quase nada.
Acabo de descobrir que a Microsoft deixou de produzir e comercializar a Encarta, a primeira enciclopédia em versão unicamente electrónica. Entre 1993 e 2009, ela determinou um padrão de recolha, arquivamento e disponibilização popular dos saberes, servindo de modelo à transferência para o suporte digital de outras enciclopédias, como as consagradas Britannica e Universalis. Apesar do êxito que manteve por mais de uma década, a Encarta foi incapaz de resistir comercialmente ao efeito demolidor de uma «enciclopédia social», gratuita e colaborativa, como a Wikipedia. Esta conta hoje, e apenas na versão em inglês, com perto de 3 milhões de artigos, um número perfeitamente gigantesco quando comparado com os 42.000 artigos que podem ser encontrados na derradeira versão da Encarta. Não tem comparação com qualquer outra enciclopédia o ritmo de crescimento e o fluxo de consultas processados diariamente, minuto a minuto, pela Wikipedia, mas não deixa de ser preocupante que a fonte principal de conhecimento manipulada pela esmagadora maioria dos utilizadores da Internet seja um repositório sem autoria reconhecida e desprovido de processos de aferição da informação que recolhe e oferece. Sob a forma de nuvem, paira sobre as nossas cabeças um saber flutuante, por vezes equívoco e sujeito a constantes revisões, com a vida determinada pelo vento, cuja sombra pode ser tão estimulante quanto ameaçadora.
O L’Osservatore Romano coloca Oscar Wilde nos pináculos da lua, considerando-o «uma das personalidades do século XIX que com mais lucidez analisou o mundo moderno nos seus aspectos perturbadores mas também nos seus aspectos mais positivos». Aproximar-se-á o fim dos tempos? Tratar-se-á de um primeiro passo no caminho da beatificação? Ambas as coisas? [Ideia roubada ao Pedro Vieira]
A música verdadeiramente portátil começou nos inícios da década de 1960, com a vulgarização do rádio transistorizado, do gira-discos e do gravador de pilhas. Eles foram instrumentais no lançamento de uma nova cultura popular centrada na música urbana e nos seus ambientes. Mas essa era uma experiência ainda partilhada, vivida em grupo ou exibida diante dos outros, na praia, em piqueniques, em bailes de garagem. Só o aparecimento do walkman rompeu com tal dinâmica, transformando a portabilidade da música em mantimento do individualismo galopante que emergiu nos eighties. Forneceu também a possibilidade de um novo tipo de apropriação cinematográfica do quotidiano, hoje reforçada com a banda sonora infinitamente renovável, transportada por cada um no seu leitor de mp3. No entanto, quando o processo começou, há mais ou menos três décadas atrás, toda essa mudança parecia ainda mais do que improvável. «Diziam que eu devia estar maluco para andar por aí de auscultadores», conta o alemão-brasileiro Andreas Pavel, inventor do stereobelt, estreado em 1972, sete anos antes da Sony lançar no mercado o seu primeiro walkman comercial, mas ignorado na altura pelos grandes fabricantes. O começo deste pedaço da história recente, início provável de uma nova era na utilização banal ou celebratória da música e na construção sensorial do mundo, é contado aqui.
Fora de alguns universos peculiares, «garoto» já não é nome que se aponha a alguém. Impõe uma depreciação da infância e da condição juvenil, totalmente deslocada nos tempos que correm. Por sua vez, «garotada» é um termo desdenhoso, invariavelmente associado a uma imaturidade que se presume condenável, socialmente desclassificada, tendo caído igualmente em desuso. O oposto do «garoto», ou, bem pior, do «garotão», era o homem «grave», sério, circunspecto, o cidadão inequivocamente adulto, probo e hirto, que jamais condescendia com a brincadeira, usava sandálias sem meias ou enrolava as mangas da camisa acima do cotovelo. «Garotice» era assim, sempre, o gesto inconsequente e irreflectido de quem jamais crescera. Já a designação «garota» não depreciava. Pelo contrário, impunha, por uma ordem lógica antiga e patriarcal, que toda a mulher jovem fosse considerada como uma desprotegida criança, ragazza, petite fille, fräulein, baby aguardando pacientemente, e um tanto irreflectidamente, pelo seu amo. «Garota» era assim a «miúda», a «pequena», a namorada bela e perfeita, vislumbrada a requebrar ao sol de uma qualquer Ipanema. Ninfa que jamais perdia o seu tempo com garotos.
Depois de Maria João Pires, é a vez de Miguel Sousa Tavares nos ameaçar de fazer-se brasileiro. Se bem que de forma diferente, ambos incompatibilizados com um tratamento público abaixo daquele que acreditam merecer. Mas se a grande pianista não muda de estatuto com a decisão, vendo-se basicamente aliviada de certas maçadas com a contabilidade, no caso do cronista e ex-jornalista o salto será grande, pois do outro lado do Atlântico parece ser também reconhecido como escritor emérito. Só podemos desejar a ambos as maiores felicidades. Voltem sempre para as sardinhadas.
Não é vulgar uma editora celebrar a «concorrência». Mas é isso que a Angelus Novus acaba de fazer, associando-se à celebração dos 30 anos dos «editores refractários» da Antígona («personagem mítica, Antígona simboliza, antes de mais, a desobediência»). Uma casa editorial única, pelo perfil muito marcado do seu catálogo e pelo seu valor de exemplo. No seu blogue, a Angelus Novus explica as razões da sua homenagem, propõe um excelente texto de Manuel Portela sobre o assunto, e publica uma entrevista dupla com o editor Luís Oliveira, na qual participo. Tudo a partir daqui.
Mesmo sem a companhia de tremoços, amendoins ou berbigão, a levemente espumosa Taedonggang faz as delícias de Pyongyang. O povo – aparentemente apenas homens, as mulheres apenas servem ou registam – nem se importa de se sentar simetricamente e de fato completo, numa espécie de enfermaria de centro de saúde onde é proibido afixar cartazes, para fruir a diurética cervejola. Kim Jong-Il aprova.
«If you can’t beat ‘em, piss ‘em.» Em Reiquiavique, Islândia, as fotografias de ex-banqueiros decoram os urinóis de um bar. Por cá, os costumes permanecem mais brandos.
A «malta» era a maralha. «Eh, malta, éfe-érre-á!», brada ainda por vezes, em dias de guarda, a equipagem estudantil. Amorável e cúmplice, era a maltinha, a maltosa. Na antiga gíria coimbrã aplicava-se à hoste, igualitária à força do companheirismo, dos machos trajados de negro com nódoas de vinho nos fundilhos das calças. Representava também a súcia de indivíduos de má fama, de índole não recomendada às pessoas de bem, vadiando e malandrando como modo de vida. Com maior nobreza, identificava trabalhadores que se deslocavam juntos de um lugar para outro, em demanda de trabalho. Na Casa de Malta, recordava Namora «um casebre meio derruído, sem dono», habitado por «gente erradia», que se podia ver da sua casa do Penedo. Quem a ocupava, escrevia o jovem médico, eram «vagabundos, quase sempre, malteses a cumprir um fado de nómadas que a desconfiança dos outros atiçava, que a miséria deles e dos outros parecia legitimar, ambulantes que mercadejavam adornos ingénuos, campónios de passagem para gloriosos eldorados.» Queria dizer, era «a malta», aquela malta. Em tempos sombrios a malta foi ainda a massa dos «nossos», que nada tinham a ver com «eles», os pousados vampiros: «o que faz falta é animar a malta», cantava o cantor apelando ao despertar dos excluídos. Mas essa malta, a maralha, parece estar desaparecida em combate. Ou anda um tanto desalentada.
O Parlamento lituano aprovou ontem uma lei que proíbe qualquer referência pública a experiências ou ligações de natureza homossexual, bissexual e poligâmica. O objectivo invocado é promover «a saúde psicológica» e cuidar do «desenvolvimento físico, intelectual e moral dos menores». A Lituânia é, obviamente, o único país da região do Báltico no qual o catolicismo é a prática religiosa maioritária.