Para alguns ilustres académicos espanhóis a língua imobiliza-se por decisão sua. E quem não cumprir as regras deve ser publicamente admoestado, ainda que seja ministro do reino. Uma posição respeitável, claro. Pelo menos tanto quanto aquela que contesta a sua validade. Lá como cá, a obsessão fixista conserva o seu peso, indiferente à imparável e infinita revisão dos dizeres.
Christine Granville, a mulher que mais tempo serviu no SOE – o Special Operations Executive criado por Winston Churchill em 1940 – e que terá sido também agente da espionagem polaca, foi de facto a condessa Kristine Skarbeck e levou uma vida muito pouco vulgar. A sua actividade de infiltração começou logo após a invasão da Polónia. Depois do recrutamento em Londres, saltou por numerosas vezes de pára-quedas sobre território ocupado pelos nazis, atravessou de esqui os montes Tatra para entrar clandestinamente no seu país, organizou grupos de resistência urbana e combateu com comprovada coragem no maquis. Enganou por diversas ocasiões a Gestapo, conseguindo salvar de uma morte certa alguns companheiros detidos pelos alemães e evadindo-se da prisão pelo menos por duas vezes. Ironicamente, viria a ser assassinada em 1954 por motivos passionais. Os seus traços e façanhas terão inspirado Vesper Lynd, personagem de Ian Fleming que surge em Casino Royale (1953), a sua primeira Bond novel, mas uma vez mais a ficção ficou muito aquém da realidade.
O noticiário da SIC acaba de adiantar como título de notícia, pela boca de Rodrigo Guedes de Carvalho, que «a chuva parou em Lisboa durante a procissão do Corpo de Deus». Ao mesmo tempo, as imagens mostravam o Cardeal-Patriarca, ataviado com vestes sumptuárias apropriadas ao momento, espalhando incenso ao desbarato – um produto, recorde-se, que provoca danos na saúde de quem o absorve – pelas ruas de uma urbe supostamente em festa. Como se esperava, ninguém deu vivas a Afonso Costa.
Chega-me a informação de que a Biblioteca Municipal de Faro bloqueou o acesso ao blogue Quase em Português, da autoria do arquitecto alemão-português (ou o contrário?) Lutz Brückelmann. Apesar da intermitência dos últimos tempos, um dos melhores blogues nacionais, diga-se. Parece que tem a ver com a colecção de playmates que o Lutz tem vindo a mostrar. Vamos esperar que não aconteça o mesmo à Terceira Noite.
Gostaria de conhecer os critérios (por exemplo: se se refere a homens e a mulheres ou apenas a um dos grupos, qual a dimensão do universo que foi objecto do inquérito, qual a sua localização geográfica, qual o nível escolar dos inquiridos, qual a sua idade, o nível dos rendimentos, etc.) que nortearam este estudo. Sem esses dados, comentário algum pode passar do nível da simples impressão. Mas como também tenho direito a uma, aqui vai ela:
Se bem conheço o meu povo, o referido estudo não revela que a larga maioria dos portugueses gosta mais de sexo que de futebol, e que, neste particular, se encontra acima da média europeia. Mostra apenas que entre nós existe um grande número de mentirosos e que os espanhóis são bastante mais sinceros e desinibidos.
Um grupo de naturais almoça neste 13 de Maio com um colega que fala um português correctíssimo, mais fluente que o deles embora com o acentuado sotaque gutural de alguém que veio de Leste. A pergunta deste, quando surgem no ecrã da televisão os lenços brancos agitados pelo povo crente durante a cerimónia do «adeus à Virgem»: «Mas eles estão a despedir que treinador de futebol?» A aculturação é sempre um processo rico e fecundo, de resultados imprevisíveis.
Podemos sempre fazer um esforço para recuar até aquele instante, localizado algures no nosso passado remoto, no qual decidimos ser aquele, e não outro, o clube de futebol do qual vamos gostar para toda a vida. Em certos casos, aquele com o qual nos envolvemos em momentos de euforia ou de depressão. Os motivos mais simples e mais comuns são os que condicionam a maioria dos adeptos: «é-se» do clube A ou B porque os nossos pais também o são, porque é esse o clube que mais adeptos tem na nossa terra ou no nosso bairro, porque – o pior dos motivos – é aquele o clube «que ganha sempre». Mas podemos sempre escolhê-lo porque gostamos da cor berrante ou discreta das camisolas, porque o associamos a um certo grupo social, porque é o clube da namorada que se deseja ou simplesmente porque é aquele que melhor se opõe aquele outro que simplesmente detestamos.
Porém, em cada tempo e circunstância as referências que nos fazem preferir uma camisola – ou a paixão por um emblema – serão sempre diferentes. Leio na crónica de hoje de Vasco Pulido Valente que, na sua infância, o Benfica estava «ligado à esquerda» (e por isso teria o miúdo Vasco simpatizado com ele), enquanto o Sporting era identificado com o regime. Populares, autenticamente populares, pelo menos na capital do país, seriam clubes como o Oriental, o Atlético ou o Belenenses. «Do Porto não se falava», e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto. Para mim, as referências foram já completamente outras. Na viragem para a década de 1960, o Benfica era o clube «de toda a gente», do qual o regime se servia para mostrar um rosto benévolo do Império e para divulgar a imagem de uma já inexistente grandeza. O Belenenses era o clube do Tomás e do Tenreiro, enquanto o Atlético já mal se via, o Oriental tinha descido à Segunda Divisão e a Académica era apenas a simpática equipa «dos estudantes». O Sporting parecia-me, então, ser o clube de uma parte mais autónoma e razoavelmente esclarecida, embora um tanto snobe, da população. Apenas uma circunstância permanecia intacta: do Porto continuava a quase não se falar e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto.
Claro que estes retratos possuem uma base estritamente empírica, capaz de produzir hoje resultados completamente diferentes. A verdade é que nenhuma ideia-feita pode contrariar o impulso irresistível para se gostar da cor mágica das camisolas ou para se simpatizar com o nome de um clube de futebol. Afinal, verdade lapalissiana, existe sempre qualquer coisa nos afectos que não se explica, e que pode induzir estados de alma e atitudes genuinamente irracionais. Por isso compreendo as lágrimas do Manuel do Laço quando soube que o seu Boavista iria descer de divisão por causa do apito final do «Apito Dourado». Se tivesse agora quatro ou cinco anos de idade, com o amor que tenho geralmente pelos fracos e pelos humilhados, talvez me tornasse um adepto incondicional do time do maillot xadrez. Nesta fase da vida, permaneço fiel à minha escolha irracional.
Outros tempos aqueles, quando os call-centers não existiam e jamais alguém nos oferecia, através de chamadas insistentes e não solicitadas, telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens perante as ofertas, vindas da concorrência, de outros telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens. Clique aqui (e depois outra vez) para apreciar, em todo o seu esplendor, a notícia que a imagem acima invoca.
Comemorando a 100ª chamada proveniente de um «número privado» registada, em apenas cinco dias, no meu telefone fixo. Imagem da revista Gente, no. 23, 16 de Abril de 1974
A memória recuada que tenho da Sexta-Feira Santa remete-me para uma memória de medo seguida de perto por um sentimento de revolta. O medo era o da criança de educação católica a quem contavam dos raios e dos coriscos reservados, a par de um lugar no Inferno, a quem ousasse comer carne (embora quem pudesse enchesse a boca de amêndoas e coelhos de chocolate). E como eu sentia vontade, principalmente naquele dia, de comer um enorme bife, com ovo estrelado a cavalo e montanhas de batatas fritas! A revolta sobreveio anos mais tarde, quando as quatro estações da rádio e o canal único de televisão iniciavam quarenta e oito horas de uma programação apenas preenchida com vias-sacras, prédicas, penitências, mensagens do patriarcado, peças de Schumann e de Brahms, e cantorias de igreja de qualidade muito duvidosa, não me deixando, como sempre, entrar em órbita com o programa Em Órbita, minha escola e santuário. «Ao terceiro dia», o domingo de Páscoa emergia como tempo de júbilo e um regresso à vida.
Dois dos mais respeitáveis jornais portugueses – o Público e A Bola – oferecem todas as sextas-feiras um indigente «semanário gratuito» chamado Sexta. Esta semana, o Sexta saiu também no sábado coincidente com o Dia Internacional da Mulher. Sempre «actual», o jornal oferece-nos por isso um «Especial Mulher», patrocinado pela Dove, que transporta a toda a largura da capa, acompanhada de um agradável rosto feminil, a frase «A beleza não tem idade». E aborda todos esses magnos problemas relacionados com tamanho das pálpebras, textura do cabelo, maciez da pele e manutenção da linha que, como se sabe, fazem a cabeça em água às mulheres, já que os homens não se querem bonitos e têm assuntos mais graves com os quais se devem preocupar. Ainda mal desperto, considerei a hipótese de ter retrocedido no calendário até aos anos trinta, quando se mostravam já ténues os ecos da primeira vaga feminista e a segunda tratava ainda de aprender a gatinhar. E, por breves instantes, voltei a datas e a lugares nos quais estas atitudes não eram olhadas com tanta indiferença.
Aquilo que me surpreende quando reparo que este blogue-solo perfaz hoje dois anos de idade não é a rápida passagem dos dias. Dessa já me tinha apercebido lá fora. É a quantidade de dúvidas, incertezas, convicções, iras, tonterias, maldições e cumplicidades que em tão pouco tempo e em frágil horário nocturno aqui pude partilhar.
Pós-escrito – Agradecido pelos comentários de polegar para cima e pelas citações simpáticas de tantos blogues. Felizmente, nem todo o povo é sereno.
Na sequência do oportuno reparo de João Tunes sobre alguns problemas ambientais que deveriam preocupar seriamente o nosso zeloso e apostólico Director-Geral da Saúde – e também os mais corajosos e consequentes dos deputados da nação –, uma chamada de atenção para a actividade nefasta do incenso. Essa agressiva substância aromática, supostamente purificadora, que tantos católicos praticantes ou simples turistas são forçados a respirar passivamente nas mais diversas ocasiões litúrgicas e que o insuspeito Catholic News considera manifestamente perigosa para a higiene pública ou, pelo menos, para a saúde dos fiéis. Mais detalhes aqui.
«O presente é um território que exige que se vá além de todos os limites», escreve o filósofo espanhol Ignacio Izuzquiza. É o único território a partir do qual é possível sonhar com tempos diversos e preferíveis. Por isso, apenas numa tonalidade esquizofrénica é possível vivê-lo. Imaginando futuros possíveis projectados a partir de passados pouco mais que prováveis, localizados sempre para além daquilo que permanece convencionado como «o real». Os programas políticos que não assumam essa dimensão prospectiva e fantasiosa estão condenados a ficarem sempre aquém do possível. A gerirem o presente de forma apenas razoável («realista», dizem). A deixarem-se bloquear e a caminharem rumo a uma inevitável derrota histórica.
O que acontecerá agora ao smoking, essa peça de vestuário masculino especificamente concebida para ser envergada em espaços e momentos destinados aos prazeres do fumo? Ficará definitivamente confinado às salas de jogo dos casinos? Apenas será vestido no interior das mansões à hora do bridge? Irá jazer dentro de escuros guarda-fatos na companhia de umas quantas bolas de naftalina?
Imagem: Ian Fleming, agente dos serviços secretos da Royal Navy (código 17F) e criador de James Bond
Compilado e actualizado com a colaboração dos leitores por Francisco José Viegas, pode encontrar-se n’A Origem das Espécies o guia dos bares, cafés e restaurantes portugueses que não descriminam o fumador.
Para um inventário do anedotário jornalístico de 2007: com um destaque idêntico aquele atribuído ao funeral de Benazzir Bhutto e à vaga de violência que o acompanhou, os telejornais recordaram ontem «os 100 dias no desemprego» do treinador de futebol José Mourinho. A normalização da falta de sensibilidade e de civismo associada à mais genuína estupidez.