Anda meio mundo atarantado pelo facto de Mademoiselle Carla Bruni Tedeschi ser, ao que parece, a nova namorada de Monsieur Sarkozy. Não percebo o porquê do espanto: já ouviram bem as cançonetas melífluas e soporíferas da moça? «On me dit que nos vies ne valent pas grand chose, / Elles passent en un instant comme fanent les roses.» Incomodar-se com o caso, só mesmo por despeito.
Desconfio sempre de toda a iniciativa que procure dizer-me quais são «os melhores» nisto ou naquilo. Sejam eles restaurantes, vinhos, livros, perfumes, futebolistas ou mesmo… blogues. Nada tenho contra os prémios – nunca pensei devolver os poucos que ganhei – e parece-me bem que se premeiem publicamente qualidades ou capacidades. Mas referir «os melhores» sem explicar o porquê da designação parece-me uma forma de contornar o carácter relativo que comporta sempre um qualificativo dessa natureza. E a situação piora quando um suposto critério de qualidade («o melhor») é determinado por um factor essencialmente quantitativo: o maior número de votos obtidos numa votação assente em critérios vagos e subjectivos de gosto ou simpatia (para além de não imune, por vezes, a uma «chapelada» garantida por amigos, companheiros e clientes). Como dizer que só porque ganhou as últimas eleições legislativas José Sócrates é «o melhor político português». Ou porque vendeu não sei quantas centenas de milhares de exemplares de cada um dos seus livros José Rodrigues dos Santos é «o melhor escritor lusitano». Ou porque Salazar foi votado «o maior português de sempre» tenha sido de facto «o maior». Absurdo, não é?
Parece-me por isso de uma grande lucidez o comentário à sua própria vitória feito pelo autor do Bitaites, vencedor absoluto da interessante e repercutente iniciativa O Melhor Blog Português de 2007. Parabéns, dos sinceros, pela pedagógica honestidade. E pelo prémio também, naturalmente.
Hoje, na sempre animada secção de Classificados do jornal Público, uma cidadã que se descreve a si própria como «senhora da aldeia, desinibida e sem tabus» oferece-se para preencher a sua quota de trabalho socialmente produtivo, traduzido em «sexo sem pressas». A reconversão da população rural parece estar a avançar a todo o vapor, preparando-se para superar as mais optimistas metas do plano quinquenal. E sem stress.
Metade da blogosfera portuguesa anda a bater no pobre líder da Juventude Popular por ter apontado o presidente do Grupo Parlamentar do PCP, Bernardino Soares, como um dos protagonistas dos «distúrbios revolucionários» vividos durante o Verão de 1975. Percebe-se porém a confusão do jovem e ignorante líder centrista: Bernardino tinha na altura apenas quatro anos, mas a verdade é que não parece.
Também eu já quase não utilizo CDs. Enquanto viajo, leio ou escrevo, habituei-me a ouvir música em formato mp3. Ele oferece o isolamento que por vezes procuro em relação ao ruído que perturba, estimulando novas paisagens, criando momentos portáteis de emoção, relaxe ou evasão. Há anos que o velho walkman japonês foi abandonado, trocado por leitores versáteis e ultraleves, dotados de uma qualidade de som e de uma capacidade cada vez maiores. As bandas sonoras que estes permitem criar, tal como o novo tipo de silêncio que a sua interrupção provoca, passaram assim a fazer parte de um dia também ele outro.
A mais recente conquista foi a integração habitual no leitor de programações musicais organizadas sob a forma de podcasts. Já aqui sugeri, há algum tempo atrás, a experiência da Íntima Fracção. Hoje, porque acaba de fazer um ano que passou a estar disponível online para ouvir e descarregar, é a vez de lembrar Miss Tapes, «mixes for blue girls and blue boys», um exercício contemporâneo de liberdade sonora e raro bom gosto da autoria de Hugo Pinto. Aqui fica ainda o seu episódio mais recente (62’40”):
O dia começou-me esplêndido. Na livraria, um cliente quer pedir ao empregado A Angústia da Influência (The Anxiety of Influence), de Harold Bloom, e pede A Angústia da Flatulência. Poderá ter confundido Bloom com Carolina Salgado.
De cada vez que me chega um repto para participar numa sequência de respostas em cadeia – e, se não me engano, n’A Terceira Noite este é já o quarto –, declaro sempre para mim mesmo que aquele será o último ao qual darei sequência. Não, não é por snobismo ou mania da diferença. Acontece apenas que a estratégia se tornou um tanto repetitiva, que são muitos os desafios do estilo, que todos eles exigem uma disponibilidade (e uma dose de vontade) por vezes ausente. Mas acabo por me contradizer sempre que chegam desafios singulares e estimulantes, vindos, além disso, de pessoas que prezo. É o caso deste, que chegou através do João Ventura e sugere o seguinte: que escolha o livro mais próximo, literalmente; que o abra na página 161; que procure e transcreva a 5ª frase completa; que tenha o cuidado de não escolher a melhor frase nem o melhor livro; e que o passe a outros cinco bloggers. Vamos então a ele. Ao repto.
Tentei seguir exactamente o prescrito, mas não o consegui à primeira. O livro mais próximo dos meus dedos, com o curioso título Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard (ed. Verso da Kapa), e que ando a sublinhar com extremo proveito, tem apenas 158 páginas. E no seguinte, a edição do Pantagruel. Rei dos Dípsodos, da Frenesi, que me preparo para reler (garanto que não fiz batota e fui à procura dele), a referida página é toda ela ocupada por uma gravura na qual se representa «a derrota dos trezentos gigantes armados com pedras de cantaria». À terceira tentativa, porém, fui melhor sucedido. D’O Deserto dos Tártaros, do Dino Buzzati, saiu-me então qualquer coisa como: «O general era velhote e olhou o tenente Drogo com ar bondoso através do monóculo». O que me obrigou a um complexo exercício de abstracção, uma vez que sempre associei o uso do referido acessório a atitudes de autoridade ou de afectação, presumivelmente incompatíveis com a ostentação de um rosto capaz de exprimir aquela dose de brandura que habitualmente aliamos à bondade.
Segundos depois, porém, apercebi-me de que tinha acabado de receber de Buzzati uma lição sobre os atalhos da complexidade humana e a falibilidade de todas, de rigorosamente todas, as aparências. Simples e eficaz como o são sempre as melhores lições. Procurarei pois não esquecer as duas linhas desta pág. 161. E, se ainda for possível encontrar algum por aí, sorrirei para o próximo general de monóculo com o qual me venha a cruzar. Ou mesmo para a minha mal-encarada vizinha do andar de cima.
[31-10-2007] Três dias depois chegou-me uma proposta idêntica vinda da Carla Quevedo. E entretanto outra da Lídia Aparício. Agradeço o interesse, mas a verdade é que a única circunstância em que alguma coisa me saiu melhor à segunda vez foi no exame para tirar a carta de condução de veículos motorizados ligeiros de passageiros e turismo.
Disse-me que eu tivera muita sorte, pois tinha podido ler o Fritz Kahn enquanto ele só conseguira folhear, às escondidas dos pais, aquele livro do Professor Egas Moniz que se vendia nas farmácias. Mas ainda tinha em casa alguns exemplares avulsos da Bomba H que comprara na tabacaria do bairro por vinte e cinco tostões. Eu contei-lhe que conseguira um dia num alfarrabista uma colecção completa da Gaiola Aberta, mas que a perdera da última vez que mudei de casa. Não lhe falei do papel de Wilhelm Reich e da ex-mulher de Roger Vadim na minha vida porque a conversa ficou por ali.
Cartier-Bresson usava uma todos os dias. E Robert Capa também. E Corbijn, Erwitt ou Rodchenko. E Arbus, e Kertész, e Lagerfeld. E Frank. E Winogrand. Salgado também usa. Sem ela a representação do mundo conhecido seria outra, o poder da imagem seria forçosamente menos indeclinável, a nossa memória comum seria infinitamente mais pobre, mais disforme.
O Aquilino que foi para o Panteão Nacional não foi só o carbonário, a «terceira carabina do Terreiro do Paço», ou o «grande prosador» de linguagem vernácula do qual falou Cavaco Silva, seu putativo leitor, num discurso que ignorou o percurso republicano e antifascista do filho do padre de Carregal de Tobosa. Foi também um português que sabia que coisa era o «caldo de leite com abóbora e feijão vermelho, temperado a orelheira de porco e salpicão, vinho, o palhete e espirrador». Que gostava de «bolinhos de bacalhau sobre o vinagre, o caldo verde, o polho de grão assado no espeto, as talhadas de salpicão, a perna de vitela ou o javali caçado na mata». Que se imaginava na tasca do Chacim, em Infesta, a comer o «ceote de lampreia do Abade de Mozelos, regado a vinhos dos Arcos». Olhando as coisas sob este ponto de vista, suavizamos um pouco o cerimonial mórbido em que agora o meteram.
Este blogue, no seu esforço insano e inglório de captar a espuma da espuma dos dias, foi um dos primeiros a falar da forma como a nossa rapaziada do râguebi se apresentou em campo a vociferar A Portuguesa. Entretanto, todo o país reparou no caso. E parte do exterior também. Ao ponto de vermos a selecção de futebol, no jogo que terminou com a vistosa placagem proactiva de Scolari a Dragutinovic, cantando o hino já uns bons decibéis acima do normal. E também de os adversários bradarem o seu guerreiro «Fratelli d’Italia,/ l’Italia s’è desta,/ dell’elmo di Scipio/ s’è cinta la testa» com um outro fôlego. Mas é melhor não embandeirarmos com as maravilhas do râguebi e do seu pequeno mundo, alimentando certos mal-entendidos.
Um deles refere-se à tentativa de fazer crer que o râguebi estimula a bravura e um são patriotismo. Entretive-me a dar uma volta pelos comentários de alguns blogues e sítios desportivos interessados na modalidade e fiquei completamente atordoado com a quantidade de opiniões de natureza racista e xenófoba que se serviram do hino nacional para mostrarem como «ainda há verdadeiros portugueses» ou «não são precisos pretos» para mostrarmos os nossos feitos. E, a quem achar que não se deve dar assim tanta importância ao hino, exige-se ali «que abandone o país» ou então «mude de nacionalidade» (os itálicos entre aspas foram retirados de alguns comentários). Apesar de reconhecer a bravura desportiva do gesto, preferia que os Lobos tivessem ficado mudos, cantado em playback, ou mesmo uivado, do que terem dado ocasião a que este tipo súcia se possa manifestar. Apenas um fait divers? Atitude de uns quantos recém-chegados mais ou menos dementes e sem tradição entre o público da modalidade? Veremos.
O outro mal-entendido diz respeito à tentativa de se fazer crer que o mundo do râguebi é constituído por pessoas normais. Que nem todos os jogadores se chamam Martim, Tomás, Salvador, Gonçalo ou Diogo, que nem todos relaxam um pouco do atarefado quotidiano jogando golfe e bebendo puro malte, que nem todos eles são veterinários, engenheiros agrónomos ou (e) filhos-de-família. É verdade que não, mas nem por isso a situação real aproxima os raguebistas do cidadão comum. É que, para além, que eu saiba, de não existirem jogadores que sejam ao mesmo tempo filósofos, poetas, cineastas ou bailarinos – um pouco mais próximos, como é sabido, do português-padrão –, é espantosa a quantidade de atletas com um aspecto pouco saudável e, sinceramente, um tanto ou quanto animalesco, próprio de quem lida boa parte do tempo com bestas. Como parece ser o caso – o Ricardo Araújo Pereira também chamou, na Visão, a atenção para este exemplo de retorno humano ao estádio de Neanderthal – do gaulês Sébastien Chabal (na imagem). Aquele a quem os adeptos franceses chamam de Átila, Homem das Cavernas, Hannibal Lecter ou O Anestesista. Mas há mais. Não, os jogadores do râguebi não são gente como nós. E, como diria um conhecido autarca do norte e homem da bola no pé, «quem disser o contrário, mente».
Já quase toda a gente crucificou Maria José Nogueira Pinto pela peregrina ideia de fazer erguer uma Chinatown alfacinha que afastasse os vendedores chineses da Baixa, dando lugar apenas a um comércio «decente». Com preços que não envergonhem o cliente, claro. Pulido Valente faz hoje, no Público, uma acusação particularmente contundente, considerando que ela «não tem no ADN o mais vago vestígio do amor português pela pechincha». Ora nem mais. É o que se pode chamar a excelente conclusão de uma «análise objectiva do conteúdo de classe» das declarações da senhora.
Reconhecemos os clichés garantindo que todos americanos são extremamente estúpidos, que todos os japoneses são workaholic nerds de instintos acentuadamente suicidas, que todas as suecas são umas boazonas um tanto ou quanto aventureiras, que todos os irlandeses são uns alcoólicos que se vestem de verde. O «caso McCann» tem-nos feito relembrar o estereótipo do inglês. «Calmo», «fleumático», «demasiado contido» dizem e repetem polícias, advogados, jornalistas, comentadores ou psicólogos. Um professor espanhol, visivelmente problemático, assegurou mesmo, na RTP1, que, no caso «del matrimonio McCann», tanta contenção acabava por revelar a evidência da culpa. «Continental people have sex life; the English have hot-water bottles», escrevia George Mikes em How to be an Alien, um livro no qual se parodiava um certo modelo do «ser-se inglês», transformando os súbditos da rainha Elizabeth Alexandra Mary em seres frouxos, impenetráveis e potencialmente violentos como todos os frouxos. A PJ não irá por aí, naturalmente.
Passo pelo corredor da casa e oiço, saídos da televisão, grandes gritos do povo enfurecido que protesta na rua, que acusa, que condena. Clama-se por justiça, alguém é considerado culpado. Pensei que tudo aquilo era contra o casal McCann. Mas não, era contra o Scolari.