Nocturno
Em A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto, de José Carlos Fernandes
Em A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto, de José Carlos Fernandes
Conan Doyle e Albert Camus foram goalkeepers de futebol, desporto ao qual dedicavam horas de preocupação e entusiasmo. Nabokov sempre desejou muito sê-lo. Andoni Zubizarreta Urreta, o basco espadaúdo, amante de ópera, que por mais de uma década defendeu sem rival à altura a baliza de Espanha, mantinha conversas que, a acreditar naquilo que nos conta Javier Marías, «eram só de Joyce para cima». Durante tantos minutos em campo como espectadores solitários, e tal como tem acontecido com pastores e faroleiros, é provável que alguns guarda-redes desenvolvam a imaginação criadora. Não me espanta por isso que Ricardo – o sensível montijense capaz de se concentrar na sua missão fixando, como recordou, «aquele português pequenino, completamente só num mar de ingleses» – tenha podido conceber um poema épico em cinco minutos.
Adenda do escritor e jornalista brasileiro Nelson Rodrigues (1912-80):
«Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes, num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol e, numa palavra, a derrota.»
Todos os heróis precisam de um vilão para fazer pervalecer as suas inigualáveis qualidades. Jean Valjean tinha o polícia Javert, Sherlock Holmes contava com o Professor Moriarty, Popeye defrontou Brutus, Batman combateu o Joker, enquanto o primitivo James Bond perseguia o arqui-malfeitor – e terrorista polaco – Ernst Stavro Blofeld. Entre eles, o supremo bem afirma-se apenas diante do mal mais extremo e obstinado. Cruzado por anjos e demónios, tingido de preto ou de branco, o seu mundo dual apenas aceita a simplicidade. O complexo surge sempre como estranho, inqualificável, tortuoso, demasiado humano.
Esgotado por outra aventura online, cheguei tarde ao planeta dos blogues, numa altura em que parte dos seus primeiros batedores estavam já a abandoná-lo. Depois fui saindo e entrando, a solo ou em companhia, convivendo sistematicamente com a dificuldade em combinar o registo pessoal, diarístico e minimamente escorreito, com uma fala destinada a leitores capazes de partilharem dúvidas, indignações, crises de ideias e excesssos de certezas. Coisa que jamais poderia fazer num meio tradicional, cuja redacção, e respectivos leitores, pouco interessados estariam num registo flutuante, quase sempre superficial, sem trabalho de revisão, empenhado em divagações destinadas ao próprio autor ou a alguma dessas «almas gémeas passageiras» que passam num bater de asas. Admiro pois os operários dos blogues que têm sido capazes de atravessar todas as estações, ultrapassando desânimos, ilusões e servidores em baixo, esforçando-se por permancerem activos, calorosos, inesperados. Irão todos para o céu, tenho a certeza.
Tarkovski?
Os poetas machos da geração que me antecedeu
falavam obsessivamente das pernas das mulheres.
Viviam num universo móvel onde elas as pernas
prefiguravam o indizível distante que as mãos,
tangentes, iriam procurar e querer depois beijar.
Habitavam o lugar distante lá onde todo o desejo
perfazia em privado a intenção das linhas ondulantes.
Os da minha, que eu saiba procuraram o corpo
erotismo táctil ignorante de pernas porém ágil em pêlos
odores líquidos nos lugares que não era preciso vigiar.
Saíam de manhã as mãos abertas averiguando o vento
preliminar de encontros indagados sob as árvores
ou em camas cedidas nuas por companheiros solitários.
Sabem da urgência diurna que antecede o silêncio.
vidros na areia
na medida da espuma
contorna-os
sem a margem do olhar
escapam os vidros
com medo do sangue
«A manhã», disse, «é um estado de espírito».
Tenho um problema com o desaparecido blogue Barbané idêntico ao que certa vez tive com os extintos sabonetes Nordika. Quando descobri o seu suave cheiro a pinho, a forma como me levantavam a moral sob o duche da manhã, já estes haviam deixado de ser comercializados. Percorri então, um tanto desesperado, pequenas mercearias de bairro, lojas vende-tudo de ignotas aldeias, dispensas esquecidas de familiares, conseguindo reunir um stock que me permitiu dois anos extra de saponácea felicidade. Ao Barnabé, a esse comecei a segui-lo tardiamente, quando os seus autores estavam já para «descontinuá-lo». Felizmente, andam por aí, nas livrarias, alguns títulos de Rui Tavares, talvez aquele dos barnabitas que, por assim dizer, mais me sussurrava ao sentimento. D’O Pequeno Livro do Grande Terramoto tem-se falado bastante: um livro de história que devia servir de exemplo para a desgraçada escrita – e, certas vezes, desbaratada investigação – que domina ainda a tribo dos historiadores a que pertenço. Vou recomendá-lo aos meus alunos, claro, para lhes reacender o interesse (e a admiração) pelo conhecimento do passado e as mil formas de o contar. Sai agora Pobre e Mal Agradecido, ainda na Tinta da China, que inclui, entre outros textos imperdíveis do RT, da melhor e mais inclassificável prosa que alguma vez percorreu a blogaria lusitana. Tenho, para uns tempos, o meu suplemento de Barnabé.