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Equivocados

Deparo nas redes sociais com posts de amigos do Bloco e do PCP, para quem a fé move montanhas, que entre artifícios de demagogia e malabarismo se esforçam por mostrar que os problemas criados com a votação do Orçamento ao lado da direita e da extrema-direita são praticamente inexistentes. Quanto muito, serão um mal que vem por bem. Para eles, o que aconteceu a 27 de outubro foi pois da exclusiva responsabilidade do PS, esse partido «de direita» que «só pretendia eleições antecipadas» (sic). Além disso, os inúmeros apoiantes e votantes seus que se estão a mostrar incrédulos, indignados e desiludidos – bem mais do Bloco que do PCP, por razões sociológicas e políticas conhecidas – não estarão é a entender patavina da estratégia aplicada. Nas palavras desses amigos, o crescimento eleitoral será mais que seguro e tudo se irá resolver lá para janeiro, pelo que a história os absolverá. Quem não perceba isto só pode ser gente de má-fé, pouco inteligente ou crédula. Tudo isto é triste e tudo isto existe, embora não seja fado.

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    O desastre anunciado

    Podemos estar a viver um desastre anunciado, relacionado com uma forma redutora de fazer política. Na sua aceção mais básica, esta é, desde a antiga Grécia, a arte de participar na governação da comunidade. Visa o todo, não a parte, e o que em democracia separa os partidos com vocação de governo daqueles que se décadas a fio se limitam a uma atitude protestativa ou de representação de setores minoritários, é justamente a capacidade que têm para considerar uma ampla diversidade de interesses na definição das suas estratégias e das suas campanhas. 

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      Mitografias, certezas e insónias

      Seja ele o passado, o presente ou um idealizado futuro, não podemos viver sem ficções do real que recorrem a mitos. A definição de mito – os relatos fantásticos que deram significado à vida quotidiana da Grécia antiga serão sempre o seu modelo primordial – é complexa e cheia de sentidos; todavia, para o que aqui importa, destaco dois que constam do Dicionário Houaiss: «a construção mental de algo idealizado» e, a ela ligado, «um valor social ou moral (…) decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época». O mito é, pois, indispensável para o funcionamento das sociedades humanas, ao participar como peça nuclear na construção da sua coerência e dos diferentes sentidos de pertença de quem as habita. As mitografias, por sua vez, juntam constelações de mitos, com eles compondo modos sistemáticos de representar o mundo.

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        Gil, Caetano e a Internet

        Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».

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          Os populismos e o mundo «a partir do sofá»

          Os populismos, sejam os associados a diferentes ditaduras do século passado, ou aqueles que ocupam um lugar de destaque nos sistemas políticos contemporâneos, incluindo nestes os que parasitam hoje a democracia representativa procurando transformá-la em «iliberal» – um oximoro difundido pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán – são mais habitualmente conotados junto da opinião pública com a extrema-direita política. A sua proposta formal de superação do fosso existente entre a elite e o povo não é, sob essa perspetiva, senão uma tentativa de aprisionamento deste último por parte de um grupo que proclama falar em seu nome justamente para lhe retirar poder e ter condições para agir de forma autoritária e completamente arbitrária.

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            A tragédia afegã e o que é urgente

            O que se consumou por estes dias no Afeganistão, «cemitério de impérios» onde já os exércitos de Alexandre, o Grande, da Inglaterra imperial, da Rússia dos czares e depois da União Soviética foram desafiados e vencidos, foi uma enorme e humilhante derrota política dos Estados Unidos da América. A intervenção militar naquele país da Ásia Central, decidida por George W. Bush logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 protagonizados pela Al-Qaeda, foi à época explicada como uma iniciativa de «guerra justa», de caráter defensivo, decidida porque os seus perpetradores ali conservavam as principais bases, continuando a ameaçar os EUA e a Europa. Daí o imediato apoio do Reino Unido, seguido da intervenção da NATO. Da iniciativa resultou então a queda do feroz regime taliban, no poder desde 1996.

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              O «novo normal» de agosto

              Desde que tenho a profissão que tenho, com horários maleáveis, mas extensos e jornada de trabalho sempre a rondar as 60 horas semanais, muitas vezes sem fins de semana, feriados e boa parte das férias, tento viver o mês de Agosto de forma tranquila, cortando as amarras físicas com o espaço habitual de trabalho e fazendo por viver num regime mais livre, ainda que cumprindo muitas vezes extensas jornadas de leitura e escrita. Na verdade, são parte do que sou e do que faço desde muito cedo, e por isso não as tomo como um fardo. Conheço muitas pessoas que durante bastante tempo foram agindo de uma forma análoga, fazendo do Agosto sempre um tempo de descanso e respiração. As circunstâncias ajudavam, pois também ninguém ia exigir de mim, ou de nós, que durante esse mês investíssemos em algo que nos impedia de fruir esse pulmão.

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                O peso do anacronismo

                Quem tenha alguma formação histórica, ou pelo menos uma sensibilidade ou uma dose de saber que a possam incorporar, sente sempre um profundo incómodo quando se confronta com formas de anacronismo. Esclarece o Houaiss ser este um «erro de cronologia que geralmente consiste em atribuir a uma época ou a uma personagem ideias ou sentimentos que são de outra época». Pode também corresponder, seguindo a mesma fonte, «a uma atitude ou facto que não está de acordo com a época» de quem o exibe. Detém, pois, um âmbito bastante alargado, e se o primeiro sentido é mais fácil de detetar e de corrigir, uma vez que contém uma dimensão de índole essencialmente factual, já o segundo, porque se situa no domínio dos comportamentos individuais, é bem mais difícil de perceber ou de procurar mostrar a quem o pratica que na verdade está errado ou deslocado.

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                  Triste cliché

                  O uso do cliché, também conhecido como chavão, lugar-comum ou estereótipo, corresponde ao uso de fórmulas constantemente repetidas, normalmente retiradas de modelos popularizados pelo que foi um modismo, agora constantemente retomado. Traduz geralmente falta de imaginação ou de capacidade para produzir um discurso próprio e com capacidade de sedução do interlocutor mais exigente. Na criação literária, é um dos piores defeitos, inimigo da originalidade e da atração pelo ritmo e pela dimensão ágil do discurso. Usa-se muito, sob a forma de jargão, no discurso académico mais conservador, levando à produção de textos que podem deter valor como resultado de investigação, mas que como narrativa estão mortos à nascença, assumindo uma forma expectável, quando não litúrgica. São feios e aborrecidos. Já na linguagem política, sob a forma de opinião ou de frase programática, são um sinal de efetivo conservadorismo formal, de ausência de horizontes fora do dogma e de enfraquecimento do «nervo» dinâmico, ainda que envolvam ideias formalmente progressistas. São de uma insipidez imensa, e por isso se tornam irrelevantes à nascença.

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                    A Fronda dos adeptos

                    Quem não dá a menor importância ao futebol provavelmente não terá percebido o que aconteceu nos últimos dias no mundo peculiar que ele agrega. Goste-se ou não deste desporto – sou dos que gostam, e muito, apesar de lhe reconhecer bastantes aspetos condenáveis e de detestar a «clubite» – ele moveu e move largas centenas de milhões de pessoas, homens e mulheres de todo o mundo, de todas as crenças, de diferentes convicções, em grande parte motivadas por uma componente de prazer e de paixão que sempre o associa ao que de melhor essas pessoas vivenciam e esperam. Já uma vez dei este exemplo, para mim inesquecível: alguém que acompanhei até ao fim da vida e que, no último dia, me pediu um cigarro e que lhe dissesse qual o resultado do jogo de domingo do seu clube do coração.

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                      Palavras da indiferença

                      Um certa frase anda a ouvir-se muito por aí, em regra para marcar um fim de conversa. É uma daquelas que não passa de modismo, mas que quando emerge, como acontece com todos os modismos, ecoa uma tensão existente. «É o que é!» constitui a expressão acabada do conformismo, da predisposição, hoje dominante, para considerar, ou aceitar, que existem – na vida pessoal, como em todas as sociedades – forças às quais não é possível resistir, não valendo a pena sequer tentá-lo. Como o «there is no alternative», o conhecido TINA, divulgado nos idos de 80 por Margaret Thatcher, que dessa forma conclamava os cidadãos a conformar-se, aceitando como inevitáveis e impossíveis de alterar as dinâmicas de servidão impostas pelo neoliberalismo. «É o que é!», ainda que pronunciada sem pensar, é, de facto, uma aberração, que pretende banalizar a mansidão e a indiferença. Porque, eis outra frase de sentido análogo, «o que tem de ser, tem muita força».

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                        Bella Ciao, Marco Paulo e a memória

                        Pensei que se tratasse de brincadeira quando alguém me disse que Marco Paulo tinha gravado uma versão do ‘Bella Ciao’. Temi, naturalmente, o pior. Não por ter sido o cantor a fazê-lo – dentro do género, até será dos mais profissionais dos «artistas» -, mas porque, com forte grau de probabilidade, dado o estilo totalmente despolitizado dos temas que canta, este iria desvirtuar o sentido de uma canção de profundo significado na história e na memória cultural do antimilitarismo e do antifascismo. Na minha própria memória pessoal, como na de várias gerações de outros homens e mulheres que participaram na resistência à ditadura, ela é recordada em associação com momentos nos quais funcionou como instrumento de incentivo ou de encorajamento.

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                          Alusão e cultura geral

                          Como sabe quem escreve com regularidade textos que contêm uma dimensão literária – sobretudo se estes forem de opinião ou de ficção, seja no romance ou na poesia –, uma das técnicas a que recorre muitas vezes é a alusão. Falo do recurso estilístico pelo qual se faz referência direta ou indireta a uma pessoa, a uma situação, a um livro, uma peça musical ou um filme, contendo uma carga simbólica ou representativa que se pressupõe seja do conhecimento do leitor e por este percebida. Faço isto muitas vezes e posso dar como exemplo uma linha de comentário publicado há pouco a acompanhar uma fotografia de ocasião. Quando nela escrevi «finalmente sábado» estava, como muitos e muitas notaram, a aludir a Finalmente Domingo (Vivement dimanche), o título do último filme de François Truffaut, estreado em 1983. E também ao próprio filme.

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                            Banalidades necessárias

                            Mais uns quantas banalidades. Banalidades necessárias, porém, dado corresponderem a evidências que, justamente por o serem, com frequência acabam esquecidas. O uso da expressão «isso já se sabe», tantas vezes escutada sempre que alguém procura lembrar ao cidadão comum alguns princípios, verdades e lógicas que convirá não esquecer, corresponde sempre a uma combinação de arrogância e de descaso. De arrogância quando exprime uma rejeição do senso comum, sempre indispensável à vida coletiva, embora tantas vezes esquecido. E de descaso quando traduz o encerramento de quem a expressa na sua pequena bolha. A dos que «já sabem» e preferem não tocar no assunto porque isso os aproxima de uma vulgaridade que abominam.

                            Isto vem a propósito de uma experiência constantemente partilhada no contacto com os outros, em particular com quem assume posições públicas, seja a que escala for. A experiência de quem prega a justiça, a ética e a coerência, mas apenas em abstrato, jamais as aplicando à sua própria vida, à relação empática com os outros, ou à apreciação do comportamento objetivo do seu grupo ou da sua família política. Encontra-se por todo o lado, bem sei, mas na direita, estruturalmente assente na defesa do individualismo, da ordem e da desigualdade, acaba por ser uma contradição «natural». Nela bem menos chocante, afinal, do que quando ocorre entre pessoas situadas no espectro da esquerda, que é, ou deverá ser, tendencialmente solidária, igualitária e justa.

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                              Dois postais de bom ano | 1º Postal

                              No último dia de 2013 publicava aqui um postal, a acompanhar os habituais votos de bom-ano, onde se misturavam em dose desequilibrada a esperança e o desânimo. Nessa altura, estávamos no pico da atuação do governo PSD/CDS. Aquele, convém não esquecer, que então respondeu à crise global do capitalismo e dos mercados reduzindo dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores – em particular os da função pública e os aposentados -, diminuindo-lhes ou retirando-lhe direitos com décadas de conquista, cortando feriados, forçando muitos milhares de jovens com formação elevada a sair de Portugal, submetendo-se a todos os ditames dos agentes do neoliberalismo que regiam os destinos da União Europeia, colocando o país de mão-estendida perante os outros. Ao mesmo tempo que prometia um crescimento económico assente principalmente na redução do consumo e na exploração do trabalho.

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                                Nem sacerdote, nem anjo

                                Como historiador profissional que ao mesmo tempo tem uma intervenção pública regular enquanto cidadão e não separa com um cordão electrificado as duas qualidades, de tempos a tempos encontro sempre alguém que, ao discordar de uma opinião que possa ter expresso, justifica essa discordância associando, a razões ou desacordos inteiramente legítimos, uma frase que integra um juízo de valor inaceitável: «parece impossível um historiador escrever isto». Não porque eventualmente tenha expresso algo de errado ou de impreciso do ponto de vista do conhecimento do passado, mas porque a pessoa que emite esse juízo chama à colação uma certa ideia de historiador que o desqualifica se ousar sujar as mãos na realidade do mundo em que vive. Como se fosse um sacerdote, um etéreo oficiante do passado, que teria o dever de se desvincular inteiramente do presente, ainda que muitas das opiniões que neste campo emita o possam ser na sua qualidade de cidadão, não de profissional do «métier».

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                                  A ignorância é atrevida e perigosa

                                  Tem corrido nos jornais e nas redes sociais uma controvérsia, mais uma, que envolve declarações do conhecido jornalista e responsável por romances de sucesso popular José Rodrigues dos Santos (JRS). Não irei repetir factos e argumentos que a integram e que podem ser facilmente encontrados por quem os desejar conhecer. Direi apenas que ela começou com o que JRS disse durante uma entrevista de promoção do seu último livro na RTP1, e depois repetiu num «esclarecimento», a propósito do caráter supostamente humanitário do gaseamento dos judeus nos campos de concentração e de extermínio nazis. Também não irei preocupar-me com o préstimo literário do autor – questionado por tantos, entre os quais me conto, mas também apreciado por muitos outros –, o que me levaria a um argumento bem diverso daquele que escolhi para esta crónica. Aquilo em que vou insistir, a partir deste exemplo, é no perigo que representa a manifestação da ignorância, em regra acompanhada pela manipulação da ignorância dos outros, por parte de pessoas que detêm um lugar de reconhecimento público. 

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                                    Pio IX e a Imaculada Conceição

                                    Foi em 8 de dezembro de 1854 – há 166 anos, e não «há sete séculos», como hoje pude ler, embora na altura tenham sido invocadas referências bíblicas e dos primeiros textos da Patrística como justificativas para a decisão – que na bula Ineffabilis Deus o papa Pio IX proclamou o dogma da Imaculada Conceição. Basicamente, este dogma considera a concepção da Virgem Maria, «cheia de Graça», como ocorrida sem a mácula do pecado original, na qualidade de um sinal da intervenção da providência divina e de precaução para preparar, através de uma linhagem que fosse pura, a vinda de Cristo.

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