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O professor de latim

«Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet?» («Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Até quando teremos nós de suportar o teu escárnio?») Lembrei-me hoje, por via de uma daquelas figurinhas que nos cabem na administração paroquial ou continental da coisa pública, do velho professor de latim e do seu Cícero. Abria muito os braços, e mais ainda as mãos, e recitava de cor parágrafos completos da agastada e furiosa Oratio in Catilinam. Com tal ênfase que fechava sempre a última frase num violento ataque de tosse. A seguir acendia um cigarro Porto, produzia sucessivos anéis de fumo, e calava-se durante dois ou três minutos enquanto nos recompúnhamos dos efeitos da onda de choque verbal e do mais puro terror. Pensando no prazer que daria responder-lhe na mesma moeda.

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    Apontamentos, Etc., Olhares

    Manual para manetas

    Parece o esboço de um sketch perdido dos Monty Python. Mas não é. Ao folhear um recém-traduzido livro de Peter Sloterdijk, deparei com uma estranha referência bibliográfica. Em 1915 foi publicado na Alemanha um manual para manetas (esqueçamos a contradição nos termos), que foi preciso reeditar no prazo de um mês, dado o aumento da procura determinado pelo crescimento exponencial dos mutilados de guerra. Na segunda edição da obra, constatava o seu autor, Eberhard Von Künzberg, com um mal disfarçado alvoroço, que a afluência de novos manetas chegados da frente viera dar «um novo impulso aos antigos manetas». «Como é favorável a situação do mutilado de guerra! Graças à sua pensão está para sempre ao abrigo da necessidade.» Digamos, passe o caráter sinistro da comparação, que se pode antever no atual aumento do número de pobres e no alijar das responsabilidades do Estado o imparável incremento, a médio prazo, das instituições de caridade capazes de assegurarem um prato de sopa certo e seguro. Há um ano, o paralelismo pareceria um absurdo ou uma brincadeira de mau gosto. Agora ficamos a pensar se não corresponde a uma premonição.

      Apontamentos, Etc., Olhares

      Partida

      A. Rimbaud

      Um dia antes de morrer, já semi-inconsciente, Rimbaud ditou à irmã Isabelle uma carta urgente, destinada a uma certa companhia de navegação: «Estou inteiramente paralisado e por isso desejo embarcar de imediato. Tenham por bem informar-me da hora a que poderei entrar a bordo.» A volúpia da partida, da viagem sem fim, ao dispor de todos os perigos. Para sempre.

        Etc.

        Olhar e resistência

        Vivemos escravos do olhar. O que não é mau, pois o olhar é um mestre esquivo, que muda muitas vezes de rosto, dá ordens inesperadas, e por isso admite um quinhão de independência a quem escraviza. Permite-nos ver e rever as mesmas coisas de maneira diversa, passando por elas como passamos pelas cidades invisíveis do Calvino italiano, sempre abertas a trajetórias novas, a roteiros que projetamos e percorremos à nossa própria custa, sem nos preocuparmos em demasia com os mapas, as polícias, os muros, os sinais de trânsito. Rei dos sentidos, como insistiam os poetas barrocos, o olhar é o último reduto da resistência e da liberdade.

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          Pesadelo regionalista

          Vira do Minho

          Talvez por vergonha ou esquecimento, já quase ninguém fala do tema, mas numa destas noites ele deu corpo a um horrível pesadelo noturno que me fez acordar sobressaltado, com suores frios e os piores presságios. Nele o referendo de 8 de novembro de 1998 tinha afinal aprovado o plano de regionalização do país que ia multiplicar os cargos, as prebendas, as parcerias público-privadas, os processos do Tribunal de Contas, as Madeiras e os Audi pretos. E agora tínhamos um défice das contas públicas vinte vezes pior e quarenta vezes mais difícil de resolver do que o da Grécia. Quando percebi de que lado estava a realidade senti um imenso alívio. Por instantes achei até que tinha despertado na Noruega.

            Apontamentos, Devaneios, Etc.

            O rapaz da maçã

            Steve Jobs

            Steve Paul Jobs (1955-2011). Para o bem (e para o mal, como sempre), deixou uma marca profunda, com toda a certeza duradoura, nas nossas vidas partilhadas. «Ser o homem mais rico do cemitério não me interessa», disse certa vez, «ir para a cama à noite a pensar ‘hoje fizemos algo de maravilhoso’ é que é importante para mim.» Foram poucos aqueles que puderam gabar-se de o terem feito tantas vezes antes de gastarem o seu crédito de vida.

              Apontamentos, Etc.

              Na ponta da língua

              língua

              Quase a consumarem-se cinco semanas (e meia) passadas sobre a adoção por este blogue do último Acordo Ortográfico da portuguesa língua. Agora por mim usado também na escrita praticada lá fora. Hesitei um pedaço antes de me decidir, condicionado por algumas dúvidas e atavismos. Forcei-me de certo modo a fazê-lo, empurrado em parte por determinados deveres. A verdade é essa e na altura tudo ficou explicado. O que posso dizer agora, após este tempo de ginástica e aprendizagem, é que me custou muito menos dar o salto do que inicialmente supunha. De facto (sim, com c), até me tem dado algum prazer renovar a escrita e perceber, e sentir, e fruir, o modo como a distância entre ela e a fala se encurtou e tornou até mais natural. Só me custa ainda, e provavelmente continuará a custar um tanto, escrever com minúscula o nome dos meses e das estações do ano. Coisa pouca, afinal. Menos que apanhar uma vacina.

                Apontamentos, Etc., Oficina

                Cascais’71

                Cascais 71

                Em novembro de 1971, o primeiro Festival de Jazz de Cascais («Newport na Europa») reuniu num programa excecional a nata da cena jazística mundial. Se for apreciador do género, para o confirmar basta que leia com atenção todas as linhas do cartaz acima reproduzido. No qual faltam aliás nomes também presentes mas que começavam apenas a carreira e por isso não eram destacados, como o contrabaixista Charlie Haden, a acompanhar então Ornette Coleman, e o pianista (na época apenas elétrico) Keith Jarrett, que tocava com um bastante irascível Miles Davis. Estive por lá, sim, comendo o pó de cimento de um pavilhão ainda em obras e bebendo cervejas estupidamente chocas. Mas, acima de tudo, encaixando momentos de beleza e exaltação cujos ecos continuam, garanto, a reverberar.

                Obrigado à A.S. por se ter lembrado de me avivar a memória quando deu de caras com isto.

                  Etc., Memória, Música

                  Ação! (para o bem e para o mal)

                  Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que envolveu a sua aprovação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 1 de janeiro de 2012 me é exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado. Noutra direção, poderia dizer que era para me revelar um sujeito moderno e desperto para os constantes upgrades do real. Mas isto apenas não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há meio século. Acrescento por isso duas outras razões.

                  A primeira prende-se com a consciência muito aguda que tenho da volatilidade das línguas, em particular daquela que é a minha. Passei cerca de quinze anos a ler textos manuscritos e impressos dos séculos XVI, XVII e XVIII, deparando-me com um nível de metamorfose e indecisão tão grande que muitas vezes cheguei a encontrar num só livro publicado a mesma palavra grafada de três diferentes maneiras. A partir dessa altura nunca mais fui o mesmo na aferição de critérios demasiados fixos, ou fixistas, para a definição de regras destinadas a domar um «babelismo» impeditivo da comunicação entre falantes de divergentes geografias, ambientes e gerações. Já o segundo motivo é de ordem puramente prática: como estou numa altura do calendário pessoal na qual é bastante fácil o cérebro experimentar alguma dificuldade em carburar com a mesma agilidade relativa do passado, é sempre bom ginasticá-lo, refrescar-lhe o tónus, combatendo os automatismos antigos e adotando outros novos. Para mim são razões de sobra para passar à ação.

                    Atualidade, Etc., Novidades, Olhares

                    Repórteres de guerra

                    Como a própria guerra, o jornalismo que faz dela objeto não se limita aos episódios mais sangrentos da frente, à observação dos destroços ou aos meios da ação política que, invertendo o conhecido aforismo de Clausewitz, fazem a guerra por outros meios. Em regra, as reportagens mais interessantes produzidas em teatro de conflito não são as que descrevem os combates, os avanços e os recuos dos exércitos ou das milícias, mas antes as que retratam em primeiro plano os seus atores e figurantes, soldados e civis, perpetradores e agentes, vítimas e espetadores. No atual conflito líbio, são por isso exemplares e particularmente impressivas as reportagens que Paulo Moura tem escrito para o Público e Juan Miguel Muñoz para o El País. Sendo diferentes os cenários que cada um deles escolhe – Moura, mais na retaguarda, insiste na dimensão humana de quem viu as rotinas voltadas do avesso, Muñoz, perto da frente, sublinha a ansiedade, o medo e a esperança dos que se preparam para combater – ambos oferecem testemunhos de uma verdade antiga, relatada já por William Russell, que nas campanhas da Crimeia estabeleceu o género trabalhando para o Times. Revelam como é em situação de conflito armado que a solidariedade entre os que partilham um destino é levada ao extremo e que a perceção da transitoriedade dos hábitos e das convicções, da sua importância relativa, se revela mais perfeita, mais percetível, passando tudo o resto para um distante segundo plano.

                      Apontamentos, Atualidade, Etc., Olhares

                      Outras musas

                      Vespa

                      Falava sobre a presença das musas. Pensava levianamente que para aquele público de estudantes seria como falar da morte, do riso ou do gin tónico, realidades sensíveis que qualquer um reconhece culturalmente pelo reflexo, sem a necessidade de grandes explicações. Referia-me pois às nove hiperativas e instáveis filhas de Zeus e de Mnemósina, capazes, por mais de dois mil anos a trabalhar em full-time, de soprarem ao ouvido do comum dos mortais o génio necessário ao ato de criar. Mas falava também daquelas outras, figurações imaginadas do homem querido ou da mulher amada, capazes de inquietarem todo aquele – mesmo o descrente ou o lobo solitário – que espera alguém capaz de sussurrar-lhe ao ouvido, no momento certo, a fórmula para suplantar a mediocridade. A surpresa ficou a dever-se a naquele instante nem uma só de entre as cinquenta boas almas presentes ter sido capaz de esboçar a fisionomia ou de descrever uma só das habilidades de Euterpe, Clio ou Terpsícore. Ou sequer de as inventar, como lhes sugeri.

                      Não concluí no entanto que as esguias figuras que cruzam o mito e a vida pudessem ter abandonado os bosques, as fontes e as bordas dos riachos onde costumam ocultar-se, retornando, fartas das nossas hesitações, ao velho Olimpo ou à pacatez dos textos clássicos, deixando-nos desolados nas mãos da apatia e da ignorância. O que tem acontecido é apenas uma metamorfose, capaz de libertá-las do fortuito das suas circunstâncias, do aspeto demasiado helénico ou próximo dos frescos arrebatados de Veronese, de uma sexualidade pouco equívoca. Tornadas outras, como mutantes, circulam agora táteis no meio de nós, servindo-se de smartphones ou ipads, vestindo roupa colorida, usando lentes de contacto, atravessando as ruas de capacete em vespas prateadas, trabalhando em edifícios climatizados. Tão próximas da imaginação quanto da vida de todos os dias. Reformulando as fábulas, trocando as máscaras, confundindo os papéis, oferecendo os corpos, partilhando vontades. Fartaram-se dos enredos desgastados e procuram outros mais convincentes. Para as vermos basta acreditarmos nelas.

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                        Cortar na silly season

                        silly season

                        Está tudo tão difícil de engolir, tão apertado nas costuras, tão sério nas consequências, tão sombrio nas previsões, que por mais que se revolvam suplementos de verão, jornais nacionais e regionais, magazines televisivos ou radiofónicos, blogues para todas as estações, dificilmente encontramos agora as habituais chamadas de atenção para as trivialidades garridas e um tanto obscenas da silly season. Os tons pastel dominam este ano as paisagens de Verão e esse não é propriamente um sinal positivo.

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                          Vanitas vanitatum, et omnia vanitas*

                          o académico

                          Eleito por 17 votos contra outros 7 dos auto-proclamados «imortais», o escritor franco-libanês Amin Maalouf acaba de ocupar na Académie Française, fundada em 1635 por Luís XIII, o cadeirão deixado vago em Outubro de 2009 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Dois homens com obra extensa e admirável que não havia necessidade de colocar precocemente num expositor de museu. Ao qual jamais pertenceram, por vontade da vetusta Academia ou dos próprios, figuras como Sartre, Beauvoir, Camus, De Maistre, Balzac, Descartes, Diderot, Flaubert, Molière, Rousseau, Proust, Verne, Gautier ou Zola. Mas se Maalouf se sente bem na sua fauteil, quem somos nós, seus atentos e carinhosos leitores, para lhe criticar o pequeno prazer?
                          ___
                          * Não, não é esta a divisa da Académie Française.

                            Etc.

                            Aeroplano

                            aeroplano

                            É quinta à tarde e leio pontos dos meus alunos que falam de Goebbels, dos Beatles e do Super-Homem. Mantenho um Mahler vibrante nos headphones. Fumo cigarros fortes e baratos, de patente cubana, enrolados sabe deus onde, chegados de Bruges. Bebo um licor bielorusso muito doce, de nome impronunciável. O sol roça as copas das árvores e um pequeno aeroplano passa no horizonte.

                              Devaneios, Etc.