Ao ver na AppleTV uma excelente série que percorre oitenta anos da história da Coreia, e ao procurar aferir da veracidade das inúmeras referências históricas, dou de caras com um facto poderoso que ignorava e com uma mentira que tomava por verdade, ainda que manchada por algum exagero do qual já suspeitava. Em Pachinko, de Soo Hugh, estreada em 2022 e falada em coreano, japonês e inglês, uma saga familiar baseada no romance homónimo da escritora coreana-americana Min Jin Lee, encontra-se um cenário que reporta a relação complexa e traumática da Coreia com o Japão ao longo do século XX. O facto que ignorava tem a ver com a dimensão do domínio japonês sobre a península, exercido entre 1910 e 1945, ter sido traduzida na redução à escravatura, ou pelo menos à servidão, da quase totalidade da população local, com, níveis de repressão e de crueldade sem comparação à escala europeia.
Esta semana, o centenário do nascimento de José Saramago deu lugar a um vendaval de artigos e comentários. Para além daqueles produzidos por quem o leu e, gostando ou não de o fazer, tem em conta a sua condição de autor único e dedicado ao seu labor, destacam-se os extremos. Refiro-me às pessoas para as quais qualquer coisa que tenha a ver com o autor ribatejano é inequivocamente positiva e sagrada, e às que do lado oposto, muitas vezes sem o lerem com atenção ou conhecerem a sua biografia, fazem juízos de valor negativos e absolutos sobre a sua escrita e escolhas. Não sou, nunca fui, e sempre o declarei, grande apreciador da sua obra, que no campo da ficção li praticamente na íntegra, mas respeito muito o seu trabalho criador e também, naturalmente, quem o aprecia, distanciando-me apenas por questões de gosto e sensibilidade.
Tem corrido nos jornais e nas redes sociais uma controvérsia, mais uma, que envolve declarações do conhecido jornalista e responsável por romances de sucesso popular José Rodrigues dos Santos (JRS). Não irei repetir factos e argumentos que a integram e que podem ser facilmente encontrados por quem os desejar conhecer. Direi apenas que ela começou com o que JRS disse durante uma entrevista de promoção do seu último livro na RTP1, e depois repetiu num «esclarecimento», a propósito do caráter supostamente humanitário do gaseamento dos judeus nos campos de concentração e de extermínio nazis. Também não irei preocupar-me com o préstimo literário do autor – questionado por tantos, entre os quais me conto, mas também apreciado por muitos outros –, o que me levaria a um argumento bem diverso daquele que escolhi para esta crónica. Aquilo em que vou insistir, a partir deste exemplo, é no perigo que representa a manifestação da ignorância, em regra acompanhada pela manipulação da ignorância dos outros, por parte de pessoas que detêm um lugar de reconhecimento público.
Em Novos Ritos, Novos Mitos, saído em 1965, o crítico e filósofo Gillo Dorfles declara a ficção científica, entre as diversas formas de arte para as massas, como aquela que soube englobar um maior número de «constantes de época» e torná-las evidentes. Não sei se, meio século depois, podemos continuar a dizer isto de uma forma tão absoluta, mas parece hoje ainda mais claro, com a voga das grandes sagas para o cinema ou para a televisão, que existe uma dimensão em histórias e personagens de ficção científica, como parte de uma fantasia épica, que entraram nas nossas vidas e dão sentido a um certo lado do nosso imaginário partilhado. Tão saturado de realidade, tão esvaziado de propostas mobilizadoras, e por isso tão carente de um universo paralelo no qual possamos projetar a eterna luta entre o bem e o mal. É isso que faz com que, por exemplo, tantas pessoas estejam a tomar quase como uma perda pessoal a morte inesperada de Carrie Fisher, desde 1977 a Princesa Leia Organa da saga A Guerra das Estrelas. Por cuja libertação das mãos das forças imperiais comandadas por Darth Vader, Luke Skywalker e o capitão Han Solo tanto tiveram de lutar logo no primeiro episódio. Afinal, tratava-se de alguém indispensável para ajudar a restaurar a liberdade e a justiça na galáxia e esta é uma missão que muitos de nós considera essencial no mundo de verdade.
Nessa época era muito magro, naturalmente tímido e vagamente taciturno, e só lhe apetecia ver filmes franceses a preto e branco. De preferência com sequências filmadas em manhãs de inverno (chuvosas) e actores de estatura mediana que usassem camisolas de gola alta.
Jamais possuiu corpo físico, dado ter preenchido a sua inusitada vida como herói dos romances de Maurice Lablanc (1864-1941). Mas Arsène Lupin, fora-da-lei com lugar cativo nos camarotes da Opéra, na Wagons-Lits ou nos melhores hotéis de Paris, Londres e Veneza, teve uma existência intensa. Elegante e sedutor, adepto do vegetarianismo (e no princípio do século passado!), dos banhos turcos e dos pijamas em seda, amigo de Diaghilev, Poincaré e Caruso, evidenciou sempre um sentido de humor que associava sem peso ou medida ao lado pueril que tem sempre o desafio. A inteligência, a destreza e a coragem, essas usava-as para perturbar a ordem da distribuição da propriedade, espoliando os ricos para ajudar aqueles que considerava «perseguidos e inocentes». Tem, por isso, um lugar reservado no estranho panteão dos anarquistas aristocráticos. E também por isso conquistou vida própria.
Do conto «Só para fumadores», retirado da coletânea A Palavra do Mudo, publicada em 1965 pelo peruano Julio Ramón Ribeyro (Ed. Ahab), eis três parágrafos por onde perpassa um certo preconceito e um velho estereótipo, construídos a propósito da Alemanha e dos alemães, que as presentes circunstâncias partilhadas pelos europeus têm ajudado a recuperar.
Os vaivéns da vida continuaram a levar-me de país em país, mas sobretudo de marca de cigarro em marca de cigarro. Amesterdão e os Muratti com uma fina boquilha dourada; Antuérpia e os Belga de maço vermelho com um círculo amarelo; Londres, onde tentei fumar cachimbo mas depois desisti porque me pareceu demasiado complicado e porque me dei conta de que não era nem o Sherlock Holmes, nem um marinheiro, nem inglês… Finalmente Munique, onde, apesar de não ter concluído o meu doutoramento em Filologia Românica, me especializei como perito em cigarros teutónicos que, dizendo-o cruamente, me pareceram medíocres e sem estilo. Mas se menciono Munique não é pela qualidade do seu tabaco, e sim porque cometi um erro de julgamento que me deixou numa situação de carência desesperada, comparável aos piores momentos do meu ciclo parisiense. (mais…)
Uma amostra de Olivier Rolin, retirada do primeiro capítulo do recente Baku, editado pela Sextante. O Azerbaijão – país sensivelmente com a mesma área e número de habitantes deste, como ele à beira-mar plantado – agora ao vivo e a furta-cores. Viagem, devaneio, jogo, evocação, num romance-reportagem que o não é bem. Um belo livro, aviso já.
Na Rua Rasulzadeh, uma rua pedonal, acaricia – oh, apenas com o olhar – pequenos traseiros bamboleantes e longos cabelos negros varrendo ombros morenos. Se todos os países do Islão fossem como este, onde as raparigas andam sem véu e de saia curta, onde servem vinho e vodka em qualquer tasca, estaria disposto a tornar-me muçulmano, pensa ele. Enfim, não está na ordem do dia. Vira à esquerda na Abdulkarim Elizadeh, cujos passeios empedrados a preto e branco lhe recordam Lisboa. À direita, um belo edifício de estilo hanseático, testemunho da época em que Baku era a capital mundial e cosmopolita do petróleo, exibe numa fachada um letreiro pintado e já quase sumido, que deve datar de antes da Revolução. Recordação bem longínqua da sua infância, quando Paris era uma cidade pintada. Tal como surge nos quadros impressionistas, ou nas fotografias de Atget ou de Marville. (…) (mais…)
Quando, em outubro de 1960, Vassili Grossman enviou o manuscrito de Vida e Destino para o chefe de redação da revista Znamia, este passou-o de imediato para as mãos do KGB. Ainda que se vivesse então a época do «degelo» kruscheviano e da crítica pública dos crimes brutais e genocidas de Estaline, as consequências não demoraram a fazer-se sentir: o apartamento do escritor judeu ucraniano foi revistado, as cópias, os rascunhos e até as fitas de tinta das máquinas de escrever foram de imediato apreendidos. Grossman viveu a perda do seu romance, resultado de dez anos de intenso trabalho, como uma catástrofe pessoal, irreversível. Morreria três anos mais tarde na obscuridade, sem conseguir recuperar do desgosto e do desânimo. No imenso panorama da sociedade soviética que é este romance, comparado muitas vezes à obra maior de Tolstoi, o escritor retrata de forma realista, mas inegavelmente distante do cânone estético e político oficial, a vida durante a Segunda Guerra Mundial, com particular ênfase na ofensiva alemã, e na defesa e contraofensiva soviéticas, que culminaram com a libertação de Estalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis. Episódios que o autor, aliás, diretamente viveu como correspondente de guerra ao serviço do Exército Vermelho, para o qual se havia voluntariado como soldado raso.
Estabelece-se ali, e terá sido com toda a certeza essa a razão principal da desgraça do romance e do seu criador, uma incómoda analogia entre os processos de controlo político usados pelos sistemas totalitários nazi e soviético, sobressaindo o antissemitismo estrutural que, com diferentes cambiantes, de facto partilhavam. No centro da trama, a vida atribulada de uma família de «classe média», seja lá o que isso pudesse ter significado na era estalinista, dramaticamente dispersa entre a Alemanha e a Sibéria pelas circunstâncias da guerra e das suas sequelas. Após o poeta Lipkine, o físico Sakharov e o escritor Voïnovitch terem conseguido fazer sair da União Soviética um microfilme feito a partir de dois manuscritos entretanto recuperados, o texto será impresso em russo em 1980, numa pequena tiragem da responsabilidade de um editor suíço, antes de começar a ser traduzido em numerosas línguas. Em 1988, no auge da perestroika, foi finalmente editado em Moscovo. No entanto, na Rússia, e ao contrário do que tem acontecido mais a ocidente, o reconhecimento público da dimensão desta obra imensa e de leitura imersiva, bem como o do percurso pessoal e intelectual do próprio Grossman, gradualmente distanciado do regime soviético, têm sido claramente exíguos. Como, citado pela revista francesa Books, escreveu o encenador Lev Dodine no semanário Itogui, tal não pode deixar de acontecer numa sociedade que «emprega o essencial da sua energia a renegar o próprio passado».
Vassili Grossman, Vida e Destino. Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra. Dom Quixote. 856 págs.
Assistir a uma projeção de Habemus Papam, de Nanni Moretti, colocou-me em confronto com algumas leituras do filme que fui recolhendo antes de o ver. Diluiu-se de todo a apresentação do argumento como concebido num registo de genuína comédia, que foi o dos primeiros trabalhos para o cinema do realizador italiano. Além disso, tornou-se clara a estreiteza do ponto de vista dos que, procurando essencialmente ver aquilo que querem, encontraram na obra «uma ácida crítica à crise da Igreja no mundo de hoje». Para já não falar dos setores católicos mais conservadores que decidiram atacar o filme pelo motivo luminar de que, como dizia o bispo Salvatore Izzo sem se dar ao trabalho de o visionar, «no Papa não se toca».
O filme é fundamentalmente uma intensa figuração dramática do dilema de um homem, eleito papa de maneira fortuita (um admirável Michel Piccoli, diga-se), que recebeu a nomeação que lhe deveria afetar para sempre a vida pessoal com uma explosão intensa e inesperada de pânico, sofrimento e dor interior, levando-o a ensaiar uma fuga pela vida real – aquela que o leva a deambular por ruas e bares de Roma – e a decidir-se enfim por uma rejeição visceral do cargo ao qual o haviam destinado. E é também uma abordagem comovente da solidão – a daquele homem, mas igualmente a dos cardeais que o escolheram – confrontada com a formalização do lugar social que supostamente deteriam como responsáveis e funcionários maiores do corpo eclesial e da «comunidade dos fiéis».
Quanto ao argumento que invoca a dimensão abertamente crítica deste filme em relação ao pequeno e complexo mundo da Cúria romana, ela parece-me de todo ausente. A verdade é aqui a oposta, pois a exposição do lado hesitante, infantil e mesquinho, porque humano, dos dignitários romanos, apenas os humaniza. Justamente o contrário daquilo que aconteceria com uma representação dos salões, antecâmaras e corredores do Vaticano enquanto lugares soturnos e de mera intriga palaciana, essa sim a leitura dominante, que poderia ser olhada como uma censura dos processos de gestão interna da Igreja Católica Apostólica Romana. Ora não é isso que Moretti faz neste filme.
Não estando por esse motivo impedido de compreender o enredo, talvez o leitor comum não tenha uma perceção completa do imenso trabalho da urdidura dos factos – e da verosimilhança das falas às quais recorrem os personagens – que antecedeu a escrita de O Epigrama de Estaline, o romance de Robert Littell, saído em 2009, que a Civilização acaba de editar. Mas quem conheça de perto a história da União Soviética nas primeiras quatro décadas da sua existência não pode deixar de sentir-se impressionado com o conhecimento que o autor demonstra desse tempo, desse universo humano e até do modo de falar (e, diria, de pensar) das personagens, espelhos de pessoas com uma existência comprovada, que são os narradores deste romance. Falo dos poetas Osip Mandelstam e Anna Akhmatova, de Nadezhda, a mulher de Osip, de Zinaida, amante ocasional, de um vacilante Boris Pasternak, de Nikolai Vlasik, guarda-costas pessoal de Estaline, e de Fikrit Shotman, um antigo campeão de levantamento de pesos. E, acima de todos eles, como um espetro omnipresente, do bigode desse «alpinista do Kremlin» que Mandesltam parodiou num poema clandestino, o epigrama mencionado no título, assim assinando o seu destino de prisão, tortura, desterro e morte. Littell é, de facto, um profundo conhecedor da realidade e do passado da Rússia, e só isso lhe permitiu, apesar de nascido em Brooklyn, transformar este romance num quase-documento sobre a coação e o medo, e também a presença da traição, que comprovadamente percorreram a terra soviética nesses anos trinta espoliados e enegrecidos pelo Grande Terror. Triturando, inevitavelmente, Osip. Afinal o que seria de esperar do destino de quem, em pleno ano de 37, escreveu: «Se as pessoas não falarem comigo, / (…)Se me tratarem como a um animal, / Se me atirarem o comer pró chão –, / A dor não amordaço, não me calo (…)». Sim, este é um excelente e inquietante romance.
O desígnio comunista, o ideal que se aplica a projectar um mundo mais justo, menos desigual e por isso presumivelmente melhor, convive com um espectro que lhe ensombra as noites e lhe atrapalha as rotas. A compleição colossal deste fantasma compreende três partes que funcionam em conjunto. A primeira integra o corpus teórico que definiu a teoria da luta de classes e a adaptou à tomada e à conservação do poder pelos autoproclamados mandatários da «classe revolucionária». A segunda parte comporta a experiência catastrófica, bestial e vencida do «socialismo real». A terceira inclui a organização e a prática dos partidos e organizações que juram lutar pelo comunismo sem serem capazes de ajustar as contas com a experiência histórica que o perverteu. Enquanto esta massa não for compreendida e desmembrada, dificilmente o ideal comunista recuperará a sua capacidade para conquistar milhões de partidários e de simpatizantes e para gerar futuros desejáveis e plausíveis de justiça e de liberdade. A percepção deste problema – e desta necessidade também – é uma boa chave para a leitura de O Homem Que Gostava de Cães, o último livro do escritor cubano Leonardo Padura. (mais…)
O serviço público dos correios fez-me chegar esta semana três livros que encaixam, cada um à sua maneira, no grupo das obras que podem interromper o opressivo discurso realista a propósito do que merece verdadeiramente a nossa atenção. Qualquer um deles nos ajuda a identificar no trânsito de outros tempos, recorrendo a vozes e a lugares distantes, formas de mágoa, de desilusão mas também de alguma esperança. Estados de espírito não contabilizáveis em termos de utilidade, que nos aproximam muito mais do humano do que os malabarismos especulativos para justificar a crise do sistema e as incomodativas arengas que asseguram nada podermos fazer para a derrotar, salvo esperar, tal como acontecia com as pragas medievais, que faça as suas vítimas e passe o mais rápido possível. Fecho pois a porta da rua, ligo o candeeiro, acendo um cigarro e mergulho nos papéis.
O primeiro livro é A Tomb for Boris Davidovich, do jugoslavo Danilo Kiš. Sim, jugoslavo, pois morreu em 1989 e, como descendente de sérvios, croatas, montenegrinos, húngaros e judeus, não fora Tito e os seus partizans e teria uma vida muito diferente. Kiš publicou em 1976 este conjunto de sete contos – convocado por Harold Bloom para The Western Canon – que são biografias ficcionadas de pessoas que existiram, confrontadas a dada altura do seu passado com a degenerescência do regime socialista e a impiedade do seu sinistro aparelho repressivo. A particularidade destes contos reside numa característica dos protagonistas: todos eles se distinguiram das pessoas comuns por terem acreditado um dia no ideal comunista e no mundo novo que este parecia poder produzir sob condições «reais». Porém, todos também viveram para testar a brutalidade de um sistema capaz de engolir muitos dos que confiaram nos seus fundamentos, que lhe dedicaram parte das suas vidas e que o ajudaram a erguer. Com todas estas histórias se aprende, no entanto, que a injustiça coabita sempre com a confiança no que trará o dia seguinte.
O segundo é Café Europa. Life after communism, da croata Slavenka Drakulić, lançado em 1996. Ao contrário do que pode ser encontrado no também seu Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor(já aqui comentado), neste livro fala-se do universo renovado, cravado de vícios antigos mas também de grandes expectativas e de enormes logros, que resultou das transformações ocorridas no leste europeu nos anos que se seguiram imediatamente à Queda do Muro e ao colapso do comunismo institucional. Fala-se principalmente do vácuo deixado pela derrocada do poder socialista nos sistemas de crenças e nas expectativas da generalidade das pessoas, comuns e incomuns. Forçadas todas elas, de um momento para o outro, a esquecerem a ficcionalização da utopia com a qual tinham convivido ao longo de décadas, e obrigadas a trocá-la pela convivência difícil com o deserto do real. Detecta-se todavia um halo de confiança, traduzido numa certa convicção de que a integração na casa europeia comum abriria um caminho novo para a felicidade possível. Como se sabe, a história parece estar a correr mal, mas os sinais de esperança tendem sempre a persistir.
O terceiro livro, a única novidade, é The Memory Chalet, de Tony Judt, a cuja voz regresso uma outra vez. Este sim, é mesmo o derradeiro livro do historiador, escrito já num estado de enorme debilidade motivada pela doença que o foi diminuindo e acabou por levar. O anterior Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos foi redigido, aliás, já nesta situação. No entanto o processo utilizado foi aqui prodigiosamente único. Noite fora, totalmente imobilizado na cama, Judt passou a empregar o tempo com evocações e devaneios, através dos quais a sua prodigiosa memória foi ocupando, divisão a divisão, o «chalé suíço», como lhe chamou, no qual este livro se foi transformando. De manhã ditava as suas evocações, algumas delas publicadas ainda na New York Review of Books.Trata-se pois de um conjunto de 25 «ensaios ditados», provavelmente um género novo, através dos quais Judt nos foi falando da juventude em Londres, do ano de 1968 e dos grandes projectos da sua geração («uma geração revolucionária que falhou a revolução»), de viagens através da Europa e da América, de cheiros, de sabores, de comboios, chegadas e partidas. E sobretudo de pessoas no tempo, presas sempre, umas às outras, através desse «fio da História» que nunca desistiu de perseguir.
Diana Rigg faz hoje 72 anos. Nunca foi uma star, nove em cada dez, das que entravam em banheiras cheias de espuma para anunciarem o sabonete Lux, mas a partir de certa altura foi Emma Peel, a companheira pró-activa e multitarefas do agente John Steed na série de televisão The Avengers, Os Vingadores, rodada entre 1961 e 1969. Steed era um agente do MI6 com aspecto de inglês «típico»: chapéu de coco, fraque sem ruga, um inseparável guarda-chuva muito bem enrolado e a omnipresente dose de fleuma. Já Mrs. Peel destoava da tradicional ajudante, sedutora, um tanto tola e absolutamente secundária na trama das outras séries. Pelo contrário, o trabalho pesado – socos, cabeçadas, fugas impossíveis, activação de engenhos explosivos e uns quantos tiros bem aplicados – ficava sempre por conta da agente em roupa futurista de cabedal negro, dotada de vastos conhecimentos de karaté e praticante de elevado nível de boxe tailandês. Aqui residia, aliás, o ineditismo da série, a sua marca caracteristicamente sixtie e vagamente feminista (Barbarella, a série de BD e o filme de culto, foram contemporâneos dos Vingadores). Talvez por isto a série de televisão se tenha tornado rapidamente popular. Diana Rigg foi também uma fugaz «Bond girl» e a madrasta má numa versão da Branca de Neve, mas será para sempre a intrépida – e por isso singularmente sexy – Mrs. Peel.
Como não evocar por estes dias de lava, fumo e cinza o vulcão Sneffels, instalado na península de Snæfellsnes, a 120 quilómetros de Reiquejavique, cuja cratera, majestosa e temível, nos foi revelada por Júlio Verne como «boca do mundo», a única passagem possível para as profundezas abissais do planeta? Por ela desceram, na Viagem ao Centro da Terra, o jovem e ingénuo Axel, o geólogo Dr. Otto Lidenbrock, seu mentor, e Hans, o atlético caçador islandês, iniciando um périplo de cinco mil quilómetros de espantos, perigos e maravilhas, pela terra oca e o oceano interior, até retornaram à luz do Sol. Expelidos do outro lado do mundo, na companhia de gazes sulfurosos e magma, pela abertura incandescente do Stromboli.
Nota – O bloguista é um fingidor. Não, este post não me foi ditado só por uma brusca evocação das leituras dos onze ou doze anos. Foi ainda Vila-Matas quem me fez voltar ao Sneffels e a duas grandes tardes de inverno passadas na companhia de Verne.
Algures em Espanha, talvez pelos inícios dos anos 50, duas crianças saúdam um Franco imaterial. No cartaz pode ler-se «Franco. Caudilho de Deus e da Pátria».