Talvez não tenha sido suficientemente lembrado por estes dias o precedente ocorrido, em termos de apoios internacionais, durante a Guerra Civil espanhola de 1936-1939. Fica um relato muito sintético, talvez útil para quem insiste em defender uma não-intervenção externa que em determinados conflitos inclina os pratos da balança para um dos lados e apenas favorece o mais forte.
Escrevo ainda sobre a guerra na Ucrânia, tema que tenho reiteradamente abordado nas últimas semanas. Não se trata de um epílogo, pois num futuro mais ou menos próximo muito haverá ainda a observar sobre as razões, as formas e as consequências deste episódio que marcará o nosso tempo, mas de uma sinopse onde se destacam algumas linhas de análise.
Parece impossível, mas a invasão, que segundo a cândida previsão de um general comentador televisivo iria ir durar «três dias, cinco no máximo», completou três meses no passado dia 24. Na verdade, começara oito anos antes, em fevereiro de 2014, quando forças locais pró-russas, apoiadas por armamento e militares vindos de Moscovo, tomaram a península da Crimeia e parte do território do Donbass, internacionalmente reconhecidos como território ucraniano. Todavia, foi apenas nestes meses que o conflito se expandiu além daquelas regiões, com consequências que acompanham o cenário de destruição de um país e de intimidação de um povo, alargando os seus efeitos a toda a Europa e ao resto do mundo. A situação oferece-nos três lições e três alertas.
Vi ontem o documentário «Sita: a vida e o tempo de Sita Valles», da realizadora Margarida Cardoso, que parte da história de uma das vítimas mais conhecidas do 27 de Maio de 1977 em Angola para falar de toda uma geração, aqui destruída e calada à força, ou que em Portugal seguiu a sua vida. É assunto, sobre o qual procurarei escrever adiante algo de mais substantivo, que me toca profundamente, não apenas por um mero interesse de origem intelectual, mas sobretudo porque convivi, aqui e também em Angola, sobretudo entre 1971 e 1977, com muita daquela gente e muitos daqueles ideais lançados no terreno. E também porque me morreram amigos que não esqueço no 27 de Maio angolano.
Nesta segunda-feira, 9 de maio, como acontece desde 2020, a cidade ucraniana de Lugansk, capital de uma das autoproclamadas repúblicas de maioria russa estabelecidas desde 2014 em território ucraniano por Vladimir Putin, voltará por um dia a chamar-se Vorochilovgrad, designação que já manteve entre 1935 e 1958 e depois entre 1970 e 1990. A designação homenageia o antigo marechal Kliment Vorochilov (1881-1969), nascido na Ucrânia e uma das mais sinistras e mortíferas figuras da história da União Soviética. Tendo sido desde cedo membro do Partido Bolchevique, quadro do Exército Vermelho e um dos poucos amigos próximos de Estaline, integrando o seu persistente núcleo duro de operacionais brutais, dos quais, além de Trotsky e de outros bolcheviques, o próprio Lenine manteve sempre distância.
Ao chamar-lhe «fábrica de cristãos-novos», António José Saraiva desenvolveu, em Inquisição e Cristãos-Novos – publicado em 1969, mas saído em edição portuguesa apenas em 1985 – uma explicação sobre o que julgou ser uma das mais notórias e funestas consequências da Inquisição portuguesa. Considerou aí que a máquina trituradora por esta montada, ao «descobrir» judeus conversos em toda a parte, perseguindo e condenando por mais de dois séculos muitas pessoas que de modo algum o eram, não só ampliou muito o número dos perseguidos e sentenciados, como, por esta via, disseminou entre a população «cristã-velha» o medo e o ódio ao judeu, enraizando um sentimento antissemita preservado mesmo após o fim da instituição.
Embora apenas visíveis porque são hiperativos e se dispõem em lugares comunicacionais estratégicos, hoje em larga medida em sites da Internet e nas redes sociais, os setores minoritários para os a quais os culpados da invasão da Ucrânia são sobretudo os ucranianos – que se deixam levar pelas «malditas» democracias ocidentais – estão a tratar quem não aceita a sua versão recorrendo, para além de um bom número de falsidades ou de completas invenções, projetadas sobre a ignorância ou crença que ela sempre alimenta, a toda a sorte de designações e insultos destinados a desacreditar quem não pensa exatamente como eles ou quem os confronta com uma realidade que negam, não entendem ou distorcem.
Aconteceu já em vários outros momentos nos quais o Partido Comunista Português tomou posições que nos planos interno ou internacional foram ética e politicamente retrógradas ou objetivamente antidemocráticas, acabando a defender escolhas conservadoras ou mesmo regimes despóticos e assassinos. No meu tempo de vida, desde a defesa da invasão da Checoslováquia pelos tanques russos em 1968 que isto acontece periodicamente, levando ao afastamento de muitas pessoas que num dado momento reconheceram o lado justo, necessário e até heroico do partido. Desta vez é a posição face à agressão lançada contra a Ucrânia e o seu povo que tem levado um bom número de cidadãos – muitos deles pessoas que no passado até votaram no partido e simpatizaram com algumas das suas posições – a considerar que «foram ultrapassados todos os limites».
A história vive um tempo de grandes ambiguidades. Se é verdade que nunca foi tão pública – omnipresente no discurso político, no cinema e na literatura, até na publicidade –, ao mesmo tempo é banalizada, factualizada ou manipulada a uma escala nunca vista. A banalização reduz tudo a ela, chegando ao ridículo de usar como referente «histórico» episódios da vida pessoal ou momentos de um jogo de futebol. A factualização remete para uma observação do passado limitada aos factos mais sonoros, sem trabalho de contextualização e de análise crítica. Já a manipulação respeita ao modo como as referências ao passado servem sobretudo para legitimar interesses do presente.
Nas últimas décadas, algo de análogo impacto apenas terá ocorrido com a queda do Muro de Berlim e o ataque às Torres Gémeas. A invasão da Ucrânia pela Rússia é um daqueles raros episódios que de imediato se percebe sinalizarem uma viragem histórica. É fácil entendê-lo quando é já evidente o seu efeito no equilíbrio global geoestratégico, na política energética, na aproximação entre governos há pouco desavindos e principalmente na vida e no bem-estar de largos milhões de seres humanos. Não custa perceber que a União Europeia, a NATO, e também a Rússia, além da exangue Ucrânia, jamais serão o que foram até serem disparados os primeiros mísseis russos sobre Kiev na madrugada de 24 de fevereiro de 2022.
Sei de há muito, da história – tenho várias prateleiras da biblioteca preenchidas com livros que cruzam esse terrível género – e também da vida, que infelizmente existe um fascismo «de esquerda». Tristemente representado por aqueles que, em nome de grandes ideais formalmente igualitários, vividos sempre na fé e como abstrações, desqualificam o humano e não se importam de impor o sofrimento e a dor a quem se atravessar no caminho da «verdade» em que militam. Desde logo infligidos aos que se desviem uma vírgula da sua tão passageira quanto segura certeza, ou que consideram demasiado sentimentais por rejeitarem o determinismo histórico e que pessoas vivas sejam transformadas em peões ou estatísticas.
A frase «a morte de uma pessoa é uma tragédia, a de milhões, uma estatística» tem sido identificada como da autoria de Estaline. Não existe prova documental de ter sido de facto este quem a pronunciou ou escreveu: poderá tê-lo sido ou não, seja nessa exata forma ou de um modo aproximado. Em todo o caso, a possibilidade dessa autoria e a contínua associação da expressão ao seu nome são profundamente coerentes com o comportamento violento e implacável que praticamente toda a historiografia hoje reconhece como próprio da personalidade do ditador georgiano e compatível com as escolhas políticas que tomou enquanto supremo dirigente máximo da antiga União Soviética. Está também em absoluta consonância com a aterradora pegada, setenta anos após a sua morte ainda não varrida, por ele deixada nos territórios que governou e no mundo em geral, onde conta ainda com admiradores.
Ocupado, enquanto historiador, com um tempo próximo do que tenho de vida – dos anos cinquenta ao presente – deparo habitualmente com sinais de um conflito. Os historiadores sabem que não existe descrição fechada ou interpretação unívoca do passado, pois circunstâncias, subjetividades e meios determinam olhares inevitavelmente divergentes; mas sabem também que os factos do passado não podem ser apagados ou modificados. Não pode, por exemplo, afirmar-se que John Kennedy continua vivo, ou dizer-se que o Holocausto é uma fantasia criada por judeus, ou considerar-se que o genocídio arménio nunca aconteceu, quando existem provas de que assim não é. Todavia, existe quem não hesite em inventar ou em falsificar o passado, sobretudo aquele mais próximo, e por este motivo mais perturbante, para que ele possa corresponder às suas expectativas e interesses.
1. Como qualquer pessoa razoavelmente atenta e avisada previa com bastante segurança, a guerra, sob a forma de invasão, prevista por uas quantas almas para começar esta semana entre a Rússia e a Ucrânia, de facto não teve lugar. E, mesmo considerando, para quem tenha fé, que o futuro só a Deus pertence, muito dificilmente ocorrerá nos tempos mais próximos. Tratou-se de um jogo de pressões e chantagens que, obviamente continuará, na qual cada uma das partes procura assegurar posições num processo de equilíbrio instável. Pelo menos enquanto prosseguirem as disputas territoriais e os conflitos de influência entre Moscovo e Washington, com a União Europeia de permeio. Misturar o desejo de alimentar o sensacionalismo com o visionamento dos filmes de ação não é grande munição para produzir análises criteriosas de política internacional.
Na vida de todos os dias, seja a pessoal ou a coletiva, nunca é boa solução encarar os erros e os maus momentos como se não tivessem acontecido, silenciando-os ou escondendo-os no fundo da consciência, de onde se presume não mais saírem. Na verdade, como mostrou a psicanálise, isto jamais acontece, pois acabam sempre por voltar, por vezes da pior maneira. A história vive um idêntico problema, com omissões e apagamentos que, tarde ou cedo, ressurgirão sob outra forma. A frase imperfeita de Hegel sobre a ocorrência de factos históricos «pelo menos duas vezes» foi esclarecida por Marx, que lhe juntou «a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa».
Um breve apontamento de domingo. As palavras que constam do título possuem a mesma raíz: Jacob, o nome do terceiro patriarca da Bíblia, filho de Isaac e neto de Abraão, cujo percurso terreno é contado no livro do Génesis. Todavia, a relação destas três palavras com esse nome materializou-se em circunstâncias históricas bem diversas.
Os jacobitas eram os adeptos de um movimento político que visava a restauração monárquica da dinastia Stuart nos reinos de Inglaterra e Escócia. A nomenclatura é uma derivação de «Iocubus, versão latina do nome do rei James II, deposto em 1688 pela Revolução Gloriosa que concedeu o trono a Guilherme II de Orange. Por sua vez, os jacobeus foram, entre os finais do século XVII e a primeira metade do seguinte, os membros de uma seita, organizada entre católicos religiosos e leigos, que pretendia regenerar, através de exemplos de intensa espiritualidade, a vida religiosa e moral do país. A expressão aludia à «escada de Jacob» mencionada no Génesis, dado os seus primeiros cultores costumarem reunir-se na escadaria do mosteiro de Varatojo.
Tenho desde há anos, como colaborador do Plano Nacional de Leitura, agora destinado a leitores de todas as idades, avaliado parte considerável dos livros publicados em Portugal no campo da história, ou que com esta confluem. Este trabalho tem-me dado uma boa panorâmica da edição neste domínio, seja de autores nacionais ou em tradução. Todavia, o aspeto positivo que representa a elevada quantidade dos títulos é contrariado pela baixa qualidade de uma parte significativa deles, principalmente da responsabilidade de portugueses. Esta é particularmente manifesta entre os que não são academicamente validados ou escritos por historiadores profissionais – o que também não é sempre atestado de qualidade –, dependendo apenas de um acordo entre autor e editor. Vejo três grandes problemas.
Todos/as temos passado e só quem tenha problemas sérios de memória ou seja mesmo completamente tonto o pode rejeitar de forma absoluta. Somos sempre, e somos bastante, também aquilo que fomos. Além disso a nostalgia – conceito sobre qual tenho trabalhado profissionalmente nos últimos tempos – não é apenas uma tristeza causada pelo distanciamento de algo que vivemos, nomeadamente na nossa juventude, nem sequer um mero estado melancólico causado pela ausência de algo que somos capazes de identificar. Na verdade, pode também ser uma forma positiva de uso do passado, servindo este uso, ou parte dele, para alimentar e dinamizar a nossa própria vida, seja ela a pessoal ou a coletiva. O conceito de «melancolia de esquerda», divulgado pelo historiador Enzo Traverso, aponta nesta última direção, sublinhando o papel politicamente positivo de determinados aspetos ou episódios vividos ou herdados.
Os territórios da imaginação que permitem conceber outras regiões funcionam como paragens de autoestrada, como não-lugares que pontuam os trajetos sem lhes imporem constrangimentos. O simples deambular pode então, sobretudo dentro de sociedades nas quais as autoridades se esforçam por privilegiar a imobilidade, funcionar como momento instaurador de um processo de alforria perante a prisão representada pelo pequeno mundo. Percorrer pontos no mapa, somá-los como elementos de um património individual, possibilita, nestas condições, a produção de uma cartografia do desenraizamento. Ainda que frequentemente ficcionada, presume-se que, desdobrando-se a todo o momento, esta encontra-se em condições de libertar o sujeito das inibições visuais que o prendem ao rincão do qual originalmente provém. As modalidades que, na viragem para a década de 1970, o fenómeno estava a assumir em Portugal, foram numerosas.