O título desta crónica parafraseia o
de um livro do historiador Tony Judt sobre três intelectuais franceses – Léon
Blum, Albert Camus e Raymond Aron – com personalidades singulares e percursos muito
diversos, mas que coincidiram no sentido exigente da sua responsabilidade perante
o mundo. Encararam-na num duplo sentido. Por um lado, sob a perspetiva de quem o
observa de maneira informada, razoavelmente liberta dos filtros impostos pelas ideologias,
dos modismos e dos lugares-comuns. Por outro, agindo, escrevendo e falando em
função das suas próprias conclusões, obtidas através da reflexão e da crítica, e
assumindo-as de uma forma pública, ainda que tal os tenha colocado por vezes contra
a maioria dos que pertenciam ao seu campo político.
Evocam-se neste Abril cinquenta anos
sobre a «Crise Académica de 1969» em Coimbra. Os seus acontecimentos podem ser hoje
encarados de três formas diferentes: duas mais voltadas para a celebração, uma
terceira ocupada com a compreensão histórica. A primeira contém o testemunho
dos que a viveram, retomando com orgulho e nostalgia uma parte memorável das
suas vidas e o contributo maior dado à luta pela democracia. A segunda, a ser
vista com alguns cuidados, é ocupada com perspetivas parciais ou equívocas, por
vezes associadas à manipulação utilitária e institucional da memória. A
terceira forma é preenchida por olhares retrospetivos e compreensivos sobre o
acontecimento e a sua época.
Perceber a «Crise» requer, em primeiro lugar, conhecer o seu contexto, e não apenas os factos que em Abril de 1969 a projetaram. Desde logo, observando a mudança sociológica do ambiente universitário, onde crescia a presença da classe média e das mulheres. Depois a expansão da cidade, com um timbre cada vez mais cosmopolita e urbano. Crucial foi também a influência política da «abertura marcelista», notória entre 1969 e 1971 (e logo de seguida infletida), com maior flexibilidade da censura e uma moderação provisória nos processos da repressão. Importante também foi a presença de uma cultura política de oposição ao regime, em crescimento desde as eleições de 1958, e de uma diversificação das suas correntes, com uma grande influência política e vivencial do marxismo e do existencialismo. Indispensável a entrada no meio universitário da atitude hedonista, libertária e inconformista dos anos 60, associada em boa parte à nova cultura juvenil de matriz anglo-saxónica. Para além da importância da vida estudantil pautada por uma cultura de debate, informada e crítica, que em Coimbra incorporava a atividade dos organismos da AAC e envolvia a sociabilidade dos cafés e das repúblicas, enquanto a cultura da «sociedade académica tradicional» tendia a desaparecer.
Durante cerca de três décadas dei aulas sobre a dimensão cultural, política e vivencial do romantismo oitocentista. Começavam invariavelmente por procurar diluir a conceção do romantismo tardio, ou ultrarromantismo, que transformava o conceito numa expressão doentia – sob a forma de sentimento aparentemente dócil e contemplativo, mas traduzida em gestos por vezes bárbaros – da posse de alguém por outro alguém. Em regra, de uma mulher por um homem, embora pudesse ocorrer o contrário, ou pudesse também acontecer algo de menos convencional.
Começo por contar um episódio ocorrido comigo que já referi em público algumas vezes. Tendo há algum tempo sido convidado para participar num ciclo de conferências-debate sobre o movimento estudantil, fiz aquela que me competiu sobre a «crise de 69», o importante momento do combate da juventude universitária contra o autoritarismo do regime e das autoridades universitárias que aconteceu em Coimbra e do qual se evoca agora o cinquentenário. No final da sessão, num daqueles momentos em que os conferencistas contactam o público, fui abordado por um senhor que me disse o seguinte: «olhe, gostei imenso de o ouvir, mas tenho a dizer-lhe uma coisa: tudo o que disse é mentira, pois eu estive lá e sei que não foi assim.» É claro que tivemos de esclarecer o imbróglio. Fomos beber um café e antes de nos separarmos já essa pessoa me dera razão: «afinal estive lá, mas não vi certas coisas e não fiz algumas ligações».
Uma das maiores conquistas da era da
comunicação poderá alimentar a sua destruição. Quando, a partir dos meados do
século XIX, livros e jornais passaram a ter como alvo um público alargado,
alimentado pelo progresso da alfabetização e pelo desenvolvimento do ensino
médio, nasceu a «opinião pública», associada à expansão e à partilha da informação
e do conhecimento. Com todo o potencial democrático possibilitado pelo facto de
mais pessoas poderem conhecer, opinar, debater e agir no plano político a
partir de uma ideia mais completa do mundo que pisavam. Por isso, no processo
de centralização administrativa dos Estados iniciado no mesmo período
histórico, o controlo e a manipulação da informação foram ganhando importância.
Em alguns casos através do controlo do sistema educativo e da propaganda do
Estado, noutros, mais graves e aplicados nas ditaduras do século seguinte, mediante
fortes mecanismos de censura e de repressão das vozes mais livres. Em qualquer
caso, livros e jornais continuaram a ser um espaço privilegiado para a
construção do saber, da liberdade e da cidadania.
O presentismo é uma categoria de análise do tempo, criada pelo historiador francês François Hartog, segundo a qual passado e presente desaparecem como referentes da experiência humana, seja esta pessoal ou coletiva, dado passarem a valer apenas pela forma como são compreendidos no momento. Nestas condições, o próprio futuro desvincula-se de toda a construção utópica, sendo visto como mais do mesmo e deixando de suscitar esperança nos indivíduos e nas comunidades. Resta única e exclusivamente o presente como instância de orientação no tempo: tudo é apresentado como se passado e futuro fossem realidades incertas, que não têm lições a dar-nos, nem projetam a nossa vida para horizontes de progresso. Para os presentistas, vivemos um eterno presente e só este é real.
A história dos últimos anos da
oposição ao Estado Novo não pode ser feita sem ter em conta o movimento
estudantil e, dentro deste, sem mencionar os acontecimentos que tiveram lugar
em Coimbra durante a «crise académica» vivida entre Abril e Julho de 1969. A perfazer
agora meio século, esta configurou um momento crítico da vida portuguesa
daquela época, marcando para sempre o país, a cidade, a sua universidade e quem
a viveu. Tendo sucedido numa fase de relativa abertura do regime – em plena
«primavera marcelista», um tempo de esperanças rapidamente goradas –,
representou, para toda uma geração de universitários, uma parte inesquecível
das suas biografias pessoais e uma escola de política e de democracia. Ao mesmo
tempo, ajudou a sacudir um sistema político decrépito que cinco anos depois
iria ruir com estrondo.
Durante o Estado Novo, o passado de Portugal ensinado na primária – nas antigas terceira e quarta classes – era muitíssimo simplificado, embora contivesse uma pesada carga de ideologia. Os conteúdos eram apenas de natureza heróica, épica ou sagrada, e na forma tudo era limitado aos factos mais básicos, dispostos numa cronologia linear que seguia ano após ano a mera ordem das dinastias e dos reis. Terminava em 1910, naturalmente, e depois dava um salto até 1926 e à emergência de Salazar. A Primeira República desaparecia assim, apresentada, tal como os anos que se haviam seguido à Revolução de 1820, como a era «do gato e do rato». Uma permanente e insana balbúrdia que era preciso apagar.
O recente episódio mediático ocorrido com a viagem de António Costa a Angola, quando uma evidente falha dos serviços de protocolo fez com que a indumentária mais informal do primeiro-ministro usada à chegada a Luanda se transformasse, na imprensa e nas redes sociais, em arma de arremesso contra si e o seu governo, conduziu-me até ao passado. Ao encontro de uma das vertentes dos preconceitos atávicos contra esquerda expressos por setores conservadores. Ao mesmo tempo, revisitei fantasmas a habitar ainda velhos armários.
Entre 1971 e 1977, ano em que dela me afastei por razões de ordem moral – as divergências políticas chegariam mais tarde –, mantive uma militância ativa na esquerda à esquerda do PCP. Na época, os setores conservadores gostavam de associar uma atitude social própria de parte dos que se afastavam da velha ordem a determinadas formas do estar e do parecer. Estas traduzir-se-iam em escolhas relacionadas com o estilo de vida, a etiqueta, o vestuário ou a higiene, que tais setores apontavam na tentativa de denegrir os que delas participavam e os ideais que partilhavam. Ao mesmo tempo, um certo senso comum, apoiado numa ética elitista que chegava à classe média e tinha em boa medida uma raiz geracional, exibida principalmente pelos mais velhos, desqualificava muitos deles como pessoas sem maneiras, que vestiam de forma descuidada e não gostavam especialmente de tomar banho. (mais…)
1. É natural que uma efeméride como a que acaba de envolver os cinquenta anos decorridos sobre o movimento de Maio de 1968 em França suscite leituras contraditórias. Se elas já o eram na época, se assim se foram mantendo ao longo de décadas, não existe razão alguma para que não continue a ser assim. Como sempre, essas leituras são frequentes vezes influenciadas, a meu ver negativamente, por dimensões de sectarismo, de wishful thinking, de nostalgia e de escasso conhecimento, não só do que realmente aconteceu – e não interessa aqui se alguns dos comentadores «estiveram lá» ou não -, como dos debates sobre a interpretação do episódio que nestes cinquenta anos têm acontecido. (mais…)
1. Se tivesse nascido três ou quatro anos mais cedo, provavelmente teria sido «companheiro de jornada» ou mesmo militante do PCP. Esse era o destino mais plausível para um jovem que tomasse consciência da realidade de um país socialmente desigual, amordaçado, fechado e envolvido numa guerra injusta, e possuísse vontade sincera e a coragem suficiente para correr riscos ao ajudar a transformá-lo. O Partido Comunista representou, até ao final da década de 1960, praticamente a única possibilidade de conceber um país-outro, de pertencer a um coletivo que se opusesse de facto ao regime, e era, para quem conhecesse a sua luta, um exemplo admirável de tenacidade e heroísmo.
Mas não foi assim: despertei para a política aos 15, a idade que tinha na primavera de 1968. Por esses dias, em lugares como Paris e Praga, surgiam hipóteses, que, embora por vezes ingénuas, emergiam, sobretudo junto de muitos ativistas mais jovens, como alternativas aos males do capitalismo, mas também ao modelo autoritário e esgotado do «socialismo real» e aos partidos que nele viam um bom exemplo. O «Maio de 68» e a «Primavera de Praga», brutalmente esmagada em Agosto com a entrada dos tanques soviéticos, representou para muitos dos da minha geração um corte com uma possibilidade que deixava de os mobilizar. Foi contra os efeitos desta clivagem que em 1970 Álvaro Cunhal escreveu O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, o seu texto menos sustentado e mais injusto. Muitos continuaram a respeitar o PCP, a sua história, a sua luta, não se tornaram «anticomunistas», mas passaram a estar mais atentos à forma como as suas escolhas e leituras foram tendo dificuldade em lidar com alguns aspetos da rápida mudança do mundo e das formas de nele viver, por aquela época sentida também em Portugal. (mais…)
Em Maio de 68 explicado àqueles que o não viveram, o documentarista Patrick Rotman afirmou ser este «um objeto histórico encerrado, que devemos olhar e analisar como tal». Muito pelo contrário, é possível e mesmo indispensável encarar o «Maio francês» como um dos momentos que conferem sentido aos últimos cinquenta anos da história mundial, permanecendo aberto a interpretações e a efeitos que lhe atribuem uma dimensão singular e permitem considerá-lo, pelo menos por enquanto, como memorável.
O ano de 1968 foi o mais turbulento do pós-guerra, carregado de acontecimentos inesperados, violentos, exaltantes ou trágicos: a ofensiva do Tet no Vietname, o auge do movimento pacifista contra o apoio dos EUA a Saigão, a explosão por todo o lado da contestação estudantil, a afirmação do Movimento de Libertação das Mulheres e do fenómeno da contracultura, a Primavera de Praga, as barricadas de Paris, o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, os protestos de Chicago contra o racismo, a invasão da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, o massacre de 200 estudantes na cidade do México. Neste contexto, o que ocorreu em França poderia ser um episódio sonoro, é certo, mas curto e de limitado impacto; já o não será, todavia, se o olharmos como sinal de um tempo e prenúncio de algumas transformações. (mais…)
Em 1968 o mundo inteiro aparentava mover-se mais depressa, ainda mais depressa. Tudo parecia estar a acontecer em Paris, em Praga, em Berlim, nos Estados Unidos, Brasil e México, envolvendo a União Soviética, Cuba, a China, o Vietname, na verdade o mundo inteiro. Combates de rua com a polícia antimotim, guerrilhas urbanas e rurais, surgimento e auge da contracultura, revoluções sucessivas nas artes, no romance, na filosofia, no cinema, na música, acompanhando a rápida expansão da indústria cultural. (mais…)
Completa-se este mês meio século sobre a revolta de Maio de 68 em França. Sensivelmente pela mesma altura, no próximo ano decorrerá o cinquentenário da crise académica de 69 vivida em Coimbra. São temas dos quais, como professor de história contemporânea, costumo falar em aulas e seminários, e por isso estou habituado à confusão recorrente – compreensível entre quem pouco ouviu falar dos dois momentos, ou deles retém apenas vagas e imprecisas ideias –, estabelecida entre um tal «Maio de 69» e uma certa «Crise de 68». De uma coisa tenho a certeza: esta confusão alimenta-se da ideia de que uma (a crise) e o outro (o movimento) se encontram estreitamente interligados. Tenho más notícias para quem partilha desse mito ou se ocupa a alimentá-lo: não é de todo verdadeiro que essa ligação tenha acontecido. Existe um equívoco a propósito da influência imediata do Maio de 68 em Portugal. (mais…)
A ideia da criação do Dia Internacional das Mulheres surgiu na viragem do século XIX para o seguinte, no contexto das suas lutas por melhores condições de vida e trabalho, e pelo direito ao voto. Em agosto de 1910, durante a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas que decorreu em Copenhague, Clara Zetkin propôs a instituição de uma celebração anual das lutas pelos direitos das trabalhadoras. Em 1921, numa reunião que teve lugar em Moscovo, a data de 8 de Março foi finalmente fixada por iniciativa da revolucionária bolchevique Alexandra Kollontai. Em 1975 a ONU adotou a mesma data, hoje celebrada em quase todo o mundo. Porém, mesmo entre os que hoje reconhecem a sua importância existem algumas atitudes equívocas. Destaco aqui três:
A primeira, a mais visível, consiste em transformar a data principalmente numa ocasião para o comércio, colocando muitos homens, na qualidade de consumidores, a despender dinheiro para oferecer prendas que representam muitas vezes a figuração simbólica da própria subalternidade das «homenageadas». Nada contra a oferta de flores, de roupa ou de tratamentos de beleza, obviamente, mas esta pode ser feita em qualquer altura e nada tem a ver com a luta pública das mulheres pelos seus direitos, antes configurando, como meras «homenagens às senhoras», uma essencialização do «eterno feminino», conferindo à «mulher» um papel passivo e ornamental que perpetua os fatores de discriminação e desigualdade. (mais…)
Reencontrei há dias uma piada antifranquista, criada nos anos que se seguiram ao final da Guerra Civil de Espanha, que exprime uma espécie de humor trágico, mas ao mesmo tempo possuidor de uma forte carga de esperança, protagonizado pelos derrotados que acreditam ter a razão histórica do seu lado, por oposição aos que foram os vencedores de ocasião: «Perdemos as grandes batalhas, mas ficámos com as melhores canções». Esta imagem pode ser replicada sempre que abordamos as perspetivas da história que não consideram o caráter temporário de todos os equilíbrios políticos, entendendo, de uma forma completamente redutora e ingénua, o seu próprio presente como eterno. (mais…)
Ocultar ou desfigurar o passado para moldar o presente é uma velha prática que dispõe hoje de novas armas. Henrique IV de França ordenou no Édito de Nantes que os episódios das Guerras de Religião opondo católicos e protestantes fossem «apagados e adormecidos como coisa não acontecida», assim procurando rasurar um passado incómodo. O relato da Guerra Civil divulgado na Espanha de Franco impunha a representação de um confronto entre «bons espanhóis» e «perversos republicanos», separando os que mereciam a glória dos que deveriam ser esquecidos. O Kremlin faz agora por apagar a feroz repressão do tempo de Estaline, convertendo este em herói de um destino imperial da Rússia que Putin deseja recuperar. O trabalho de moldagem do passado pode até nem requerer essa intervenção direta do Estado: nas democracias contemporâneas as estratégias são mais insidiosas, sendo muitas vezes os próprios meios de comunicação social privados a disseminar formas parciais ou enganadoras de passado. (mais…)
Uma destas noites sonhei que voltara ao passado, mas que o fizera de um modo calculista. Fora lá roubar, para usar nestes dias sombrios de inverno, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude necessariamente insensata ou a energia desmedida, que recordo sem grande nostalgia e para as quais, à medida que as fui perdendo, fui achando alternativas. Também não fui lá buscar as memórias, mesmo as melhores, pois sei que elas têm sempre a forma de fábulas que embelezamos. Afinal, nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que em escalas e por motivos diversos. Naquele «sonho adormecido» – usando o termo cunhado pelo filósofo Ernst Bloch – fui recuperar outra coisa, que permanece perpétua, transcendendo o curto tempo de vida que sempre nos cabe. Falo da absoluta crença na possibilidade de construir um mundo melhor, e também da vontade de transformar a realidade, sabendo que nelas se misturam, em partes desiguais, a imaginação da utopia e a imersão nessa dose de realidade que sempre a confronta.(mais…)