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Millôr Fernandes (1924-2012)

Millôr

Vi o milionário saltar da limusina, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: «Passa tudo e não chia!»

Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: «Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor – você faz o que pode para conseguir o que precisa. Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?»

Apotegma XVIII (de «Apotegmas do Vil Metal»)

Millôr Online

    Apontamentos, Memória, Olhares

    Duas ou três coisas que eu sei sobre manifes

    Fotografia: Patrícia de Melo Moreira/AFP

    Depois de uma época na qual fui ativista profissional, a certa altura quase deixei de participar em manifestações de rua. As razões podem reduzir-se a três, sendo as duas iniciais com toda a certeza partilhadas. A primeira teve a ver com o recuo das causas durante os anos 80 e a forma como, falhas de imaginação e de um norte, as correntes que contestavam a ascensão neoliberal se limitavam a repetir até à náusea, receitas, motivações, bandeiras e palavras de ordem que tinham sido necessárias nos anos de resistência ao regime e durante o processo revolucionário mas já não se aplicavam a uma realidade em rápida mudança. A segunda razão ligou-se à apropriação das datas simbólicas por uma burocracia partidária, ou mesmo sindical, que procurou usar os movimentos de massas como ferramenta de estratégias sectárias, rejeitando uma corrente dinâmica, unitária e participada que pudesse exprimir-se também na rua. Banalizou-se assim o protesto, cada vez mais ritualizado, controlado, organizado para «marcar posição» e não para arquitetar futuros. A terceira razão, mais recente, não tem motivação política: justamente quando as circunstâncias mudaram e as manifestações de rua passaram a ter de novo um papel decisivo na mobilização cívica, algumas limitações de ordem física impedem-me de estar presente como queria e deveria. Por isso sou agora mais um apoiante do direito à manifestação do que um manifestante, o que, no entanto, não reduz o meu direito à crítica ou minimiza a minha condição de «homem da luta». (mais…)

      Atualidade, Memória, Olhares, Opinião

      1962 e agora

      Os cinquenta anos virados sobre o eclodir, em Portugal, da Crise Académica de 1962, têm dado lugar a um conjunto de iniciativas públicas. Iniciativas importantes por três motivos. Primeiro motivo: porque têm reunido muitos homens e muitas mulheres, antigos ativistas ou participantes, que sem excesso de nostalgia nos têm ajudado a perceber como a sua ação, naquela época, foi muito importante para fazer crescer as fileiras da resistência à ditadura salazarista. Segundo motivo: porque têm agregado a intervenção, ao nível da informação e da interpretação dos acontecimentos, de historiadores, jornalistas e outras pessoas com um papel essencial na transformação daquilo que são as experiências e as recordações de alguns em património coletivo ao dispor de todos. Terceiro motivo: porque no contexto atual têm servido para mostrar como, muitas das vezes, a energia de uma minoria pode exprimir e servir de motor à participação cidadã do coletivo, revelando que a resignação de nada serve e que a coragem pode ser um fator de mudança.

      Mas já não justifica grande atenção a tentativa, levada a cabo em alguns jornais, de pôr em paralelo o associativismo universitário da época e o atual. As diferenças históricas são óbvias e todos as reconhecem: o mundo e o movimento estudantil deram muitas voltas ao longo destas cinco décadas, tanto em Portugal como em toda a parte. O que é incompreensível é tentar estabelecer semelhanças entre os principais ativistas de 1962 – em regra pessoas culturalmente muito preparadas, com um forte sentido cívico e reconhecidas no terreno – e os seus sucessores «no cargo», jovens geralmente pouco aptos do ponto de vista cultural, que da intervenção estudantil possuem uma dimensão corporativa, e que «representam» colegas em regra incapazes de lhes identificarem os rostos. Falamos, de facto, da água e do vinho. Claro que ninguém pretende encontrar cópias, hoje, do que foram os ativistas de ontem. Os de 1962, os de 1969-74, ou os dos anos 90. Mas hoje, hoje mesmo, continuam a percorrer as universidades estudantes inteligentes, cultos e generosos, com uma perceção dinâmica do papel que podem ter na mudança do país e não apenas na das suas vidas. Só que não estão, geralmente, nas direções associativas, organizando-se ou agindo à margem destas. Esta é a realidade e comparações absurdas iludem os leitores.

        História, Memória, Olhares

        Vinhos & enchidos

        «Dar de comer a um milhão de portugueses.»

        A palavra «provinciano» aplica-se a duas condições diferentes, embora muitas vezes complementares. Uma distingue «aquele que é da província» ou «que vem da província», tendo nascido e vivido uma parte ou a totalidade da sua existência muito longe das grandes cidades e do ruído das autoestradas. E isso somos muitos. A outra, pejorativa, integra a tacanhez de quem apenas habita o lado plácido, repetitivo e intensamente conservador do mundo, ou a de quem, mesmo cruzando as avenidas e os ritmos das cidades, se afasta dos caminhos por onde flui e se desdobra o múltiplo que carateriza a vida moderna. Provinciano é pois aquele que ignora, por imposição do meio, ou então deliberadamente, aquilo a que Baudelaire chamava «o transitório, o fugitivo, o contingente», fixando-se antes no que acredita ser eterno, imutável e apenas visível em pequena escala. Esta aceção mais integral foi ferida na sua dignidade com a interferência dos meios de comunicação de massa – primeiro a rádio, depois a televisão, por fim a Internet – generalizados durante a segunda metade do último século. A condição do provinciano deixou então, para muitos, de ser uma inevitabilidade, passando a definir-se ainda mais como uma escolha, uma opção pelo padrão de vida que rejeita a novidade, as atividades mundanas e, em consequência, a diferença.

        A notícia lida nos jornais sobre o projeto de uma marca de vinhos a comercializar a partir de Santa Comba Dão, o concelho natal do antigo ditador, sob a designação de «Memória de Salazar» – estando desde já prometido um esforço de marketing equivalente a aplicar a uma marca de enchidos –, enquadra-se nesta dimensão do provinciano. É um bom exemplo, talvez extremo, do que podemos ler ou ouvir todos os dias seguindo grande parte dos jornais ou das emissoras de rádio localistas e regionalistas: o culto da «figura grada» da terra, transformada em símbolo que supostamente a eleva diante das outras. É normalmente alguém que por aquelas partes passeou um pouco de poder e em consequência algum dinheiro. O doutor, o comendador, o industrial, o benemérito que, para o espaço da aldeia, da vila, da pequena cidade, da pequena mente, substitui sem hesitação o escritor, o poeta, o artista, a figura da ciência ou da cidadania, preenchendo preferencialmente as placas toponímicas e as colunas das folhas locais. Este projeto santa-combense, a materializar-se, será, de facto, mais um ato de provincianismo do que de revanchismo salazarista. Não destaca a grandeza de uma figura local ou as qualidades de um concelho, mas a pequenez de quem propõe uma iniciativa tão desastrada. E é como tal que deve ser rejeitado. Ou boicotado. Santa Comba Dão não pode exibir, sob o pretexto de apoiar um produto local, a celebração da repressão e do ódio aos quais, enquanto houver memória, permanece associada a figura do seu natural. Será mau, desde logo, para a própria terra e para os seus.

          Apontamentos, História, Memória

          Preston, Garzón e o Holocausto espanhol

          O historiador britânico Paul Preston considera que durante a Guerra Civil de Espanha perto de 200.000 homens e mulheres foram assassinados longe das áreas de batalha, executados extrajudicialmente ou na sequência de processos sumários. Morreram em consequência do golpe militar contra a Segunda República levado a cabo em julho de 1936. Pelo mesmo motivo, pelo menos 300.000 homens perderam a vida nas frentes de combate. Além disso, um número desconhecido de homens, mulheres e crianças foi vítima dos bombardeamentos e dos penosos êxodos que se seguiram aos avanços das forças de Franco diretamente apoiadas pela Alemanha e pela Itália e com a conivência de Salazar. No conjunto da Espanha, depois da vitória definitiva dos rebeldes nos finais de março de 1939, cerca de 200.000 republicanos foram por sua vez liminarmente executados. Muitos mais, aliás, morreram de fome e de doenças nas prisões e nos campos de concentração onde foram acantonados e mantidos em condições infra-humanas. Outros ainda sucumbiram ao regimento brutal dos batalhões de trabalho. A mais de meio milhão de refugiados não lhes restou então outra saída se não o exílio, perecendo muitos nos campos de internamento franceses. Vários milhares foram também enviados para os campos de extermínio nazis. Toda esta lista de mortes e horrores constitui aquilo a que Preston, num livro publicado em Espanha há perto de um ano, chamou o «Holocausto espanhol». (mais…)

            História, Memória

            Uma Brasileira em Coimbra

            A Brasileira

            Em A Ideia de Europa, saído em 2006, escrevia o crítico, filósofo e ensaísta George Steiner (a citação é longa mas vale a pena, embora só depois dela este post verdadeiramente arranque):

            A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».

            O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apon­tamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chá­vena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xa­drez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia. É o clube dos espirituosos e a posta-restante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de libe­ralismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi assassinado num café. Num café de Gene­bra, Lenine escreveu o seu tratado sobre empiriocriti­cismo e jogou xadrez com Trotsky. (mais…)

              Coimbra, Memória, Olhares

              Partida, exílio e torna-viagem

              Utopie

              Sendo Portugal um país de emigração, a literatura memorialista que se lhe refere é exígua e no geral pouco interessante. O que parece estranho é que esta característica se aplica também à evocação do passado pela emigração política, maioritariamente vivida por pessoas em condições de disporem do engenho e dos meios para passarem à escrita os seus relatos e explicações. Como condicionante desta limitação estará, sem dúvida, o facto de muitos dos emigrados políticos terem feito boa parte do seu trajeto debaixo de algum enquadramento político e partidário, o que os terá inibido, muitas vezes, de falarem de uma vida condicionada pelas exigências da militância e que por isso em parte não lhes pertenceu. Ora o que distingue os autores dos testemunhos que esta Pátria Utópica comporta é que eles escaparam, pelo menos em parte, a essa circunstância, tendo seguido uma via de relativa independência pessoal. Em resultado, todos seguiram percursos irregulares e heterodoxos, que os libertaram para escolhas bastante autónomas, embora desiguais. (mais…)

                Biografias, História, Memória

                Eles eram Cinco

                Passam 70 anos sobre a saída do primeiro livrinho da série Os Cinco, da autora britânica de literatura infanto-juvenil Enid Blyton. Para sucessivas gerações, entre elas a minha, terão sido os volumes desta série os primeiros livros «a sério», de texto corrido, a serem lidos. Ou melhor, devorados. Desde logo os livros em si, contendo enredos repletos de cenários misteriosos, embora todos eles a uma segura  distância de casa, e de aventuras «crepitantes», que apesar de tudo encheriam de tédio os fãs, já um pouco mais velhos, de Sandokan. Mas devoradas também eram as refeições que se seguiam à leitura: depois de tanto passarem à frente dos pequenos olhos descrições absorventes de lanches e de piqueniques repletos de sanduíches de carnes frias com mostarda ou manteiga de amendoim, de cremosos gelados de baunilha, de compotas de laranja ou frutos silvestres, de deliciosos biscoitos de manteiga e grandes jarras de limonada (ou de garrafas térmicas com um tépido e reconfortante chá), ficava-se inevitavelmente com uma fome dos diabos.

                Em 1942, com Os Cinco na Ilha do Tesouro, começaram pois a chegar à leitura  sucessivas vagas de crianças fascinadas com as incríveis peripécias de Júlio (Jules), Ana (Anne), David (Dick), do cão Tim (Timmy), e, esta ficou para o fim pois foi sempre a minha personagem favorita, da Zé (Georgina), que pensava e se movia pelos outros todos. «Chamam-lhe ‘Zé’? – perguntou a Ana, surpreendida. – É nome de rapaz. – Tens razão – disse a tia. – Mas a Zé detesta ser rapariga e chamamos-lhe Zé, como se fosse um rapaz.» Linhas perturbadoras para quem saiba o que, na época do Estado Novo, significava designar alguém, depreciativamente, como uma «maria-rapaz». A sequela do Clube dos Sete já a apanhei noutra fase, mas ainda deu para perceber que a excitação, e na aparência o empenho da autora, já não pareciam bem os mesmos. Vivi por isso esta nova leitura como uma decepção. É, no entanto, provável que quem tenha chegado então a Enid Blyton considere este julgamento um perfeito disparate. E que tenha razão. A minha Blyton, porém, é a dos septuagenários Cinco. A quem agora até se procura dar a beber o elixir da eterna juventude.

                  Apontamentos, Memória

                  O Segundo Século Vinte (1) | Pára-arranca

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                  O Segundo Século Vinte é um ciclo de debates e apresentações relacionado com temas da história recente de Portugal. A iniciativa, uma organização do Centro de Documentação 25 de Abril e do Teatro Académico de Gil Vicente, é de periodicidade bimensal e começa já nesta quinta-feira, dia 23 de fevereiro, pelas 18 horas. Será em Coimbra, no TAGV. Nesta sessão, «Pára-arranca. História e amnésia no movimento estudantil», falar-se-á das experiências, dos esquecimentos e dos recomeços que explicam mas também condicionam a intervenção cívica e reivindicativa dos estudantes. Participarão os investigadores Guya Accornero e Miguel Cardina, sendo a moderação de Rui Bebiano. Pode ver e copiar aqui o cartaz do ciclo.

                    Atualidade, Memória, Novidades

                    O fulgor da liberdade


                    © 2012 SkullHeart

                    É sempre possível encontrar esperança no desespero. Romper a partir da desventura o caminho para a sorte que se deseja. Em «La République du Silence», um artigo publicado em setembro de 1944 na resistente Les Lettres Françaises, Sartre escrevia: «Jamais fomos tão livres como debaixo da ocupação alemã». Para logo de seguida alegar em defesa dessa estranha ideia: «Perdemos todos os direitos, a começar pelo de falar; insultam-nos a cada dia e temos de conter-nos; deportam-nos em massa como trabalhadores, como judeus, como presos políticos; por todo o lado, nos muros, nos jornais, no ecrã, deparamos com a imagem imunda que os opressores querem que tenhamos de nós mesmos: mas é precisamente por isso que somos livres.» É quando se alcança o limite da humilhação e da desumanidade que se percebe como só das nossas mãos, libertas pela necessidade e pela opressão de toda a hipótese do medo, pode renascer o fulgor da liberdade.

                      Apontamentos, Memória, Olhares

                      Truffaut e nós

                      F. Truffaut
                      François Truffaut e o seu alter ego Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud)

                      A entrada na adolescência de François Truffaut foi semelhante à do pequeno Antoine Doinel de Os 400 Golpes: sem um núcleo familiar estável, viu-se entregue a si próprio no mundo perturbado e hostil dos anos da Paris da Ocupação alemã e da Libertação, passando rapidamente da condição de bom aluno para a de um miúdo ansioso, fingido, ladrão e mentiroso. Expulso da escola aos 14 anos, segue a partir daí um destino de autodidata, refugiando-se por sua conta e risco na literatura e no cinema, e percorrendo um trajeto no qual o romanesco e o íntimo permaneceram unidos e como constantes. Foi este mundo intimamente penoso, de uma realidade imaginada a partir da consciência singular do narrador ou do personagem que não pretende ser exemplo de nada ou para alguém, que Truffaut foi construindo, com raras exceções, o seu modo próprio de filmar e de se aproximar dos espetadores encerrados na sala escura para lhe verem as artimanhas.

                      Ao longo das décadas de 1960-1970 foram muitos – eu fui um deles, para que conste, apesar de já só ter podido ver os seus primeiros filmes em sessões de reprise num velho cinema de cadeiras desconjuntadas e a cheirar exageradamente a encerado – os que foram projetando as certezas e as dúvidas sobre o seu próprio amadurecimento através do crescimento atormentado e problemático do inconstante Doinel (desde o citado filme, estreado em 1959, até Amor em Fuga, de 1979, passando por Antoine e Colette, de 1962, Beijos Roubados, de 1968, e Domicílio Conjugal, de 1970). Ou aqueles, homens principalmente, que foram perscrutando no ecrã pela mão do eterno menino parisiense as suas próprias fantasias (Jules e Jim, 1962; O Homem que Gostava das Mulheres, 1977; A Mulher do Lado, 1981). Truffaut nasceu em 6 de fevereiro de 1932 e se não lhe tivesse acontecido o pior em 1984 faria hoje 80 anos. Ter-nos-ia dado muito jeito que por cá se tivesse podido manter.

                        Artes, Cinema, Memória, Olhares

                        Mário Dionísio em Coimbra

                        Mário Dionísio

                        Essa quase sempre desgraçada fonte contemporânea do saber condensado que é a versão em português da Wikipédia, identifica Mário Dionísio (1916-1993), muito abreviadamente, como «um escritor e um pintor português do Século XX». Refere ainda em duas tristonhas linhas a sua atividade enquanto professor, crítico, polemista e tradutor. Mas sem descer a pormenores. Sem mencionar a força e a originalidade de um trajeto. E assim, por facilitismo e omissão, reduz a vida, a intervenção e a obra de um português de exceção – atento, sempre, tanto à inovação quanto à dimensão social da literatura, da arte e da política – a um apontamento baço no qual é fácil não reparar ou que num instante se esquece. Nada de mais imerecido em relação a um homem que tantos de nós, ou dos que nos antecederam, olham ou olharam como exemplo do escritor independente, do companheiro de muitas lutas ou do mestre de explicações do mundo. Pois se até o Pacheco, o insuspeito Luiz sempre adverso a louvores, escreveu em 1969 no Notícia de Luanda que «o homem, Mário Dionísio, a obra e sua repercussão (…), dão para muita conversa»!

                        É já neste dia 2 de Fevereiro, quinta-feira, que pelas 17H30 é inaugurada na Biblioteca Municipal de Coimbra a exposição «Mário Dionísio – Vida e Obra», organizada pela Casa da Achada/Centro Mário Dionísio e pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Intervirão nesta sessão António Pedro Pita e Eduarda Dionísio. A exposição irá manter-se até ao dia 15 de Março. A iniciativa conta com o apoio da BMC, do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX e das Ideias Concertadas.

                          Artes, Coimbra, Memória, Novidades

                          Guimarães 2012

                          Foi fácil encontrar a melhor maneira de abrir este parágrafo. Começa assim: Eu gosto muito de Guimarães, já quase lá vivi, e as memórias que guardei são em geral boas ou muito boas. Também por lá passei fome quando andei clandestino, mas isso foi há tanto tempo que agora parece lenda ou episódio de romance. Gosto de alguns dos seus naturais e de os ouvir abrir as vogais, acho bonita uma boa parte da cidade e em Janeiro costuma fazer por ali um friozinho matinal que gela os pés e desperta a alma. Não partilho, não só por isso mas também por isso, da maledicência congénita de quem da empresa da Capital Europeia da Cultura apenas declara ou espera o pior. Como não aceito o bairrismo incontinente de quem descobre agora uma energia esquecida de propósito para poder ser revelada. Qualquer um sabe que a grande parte daquilo que está feito ou do que vai acontecer não saiu de um tesouro esquecido nas fundações de um velho edifício. É esforço comum, aberto quando ainda todos ingenuamente nos julgávamos escandinavos. O que não representará um mal, antes pelo contrário, se, no fim de tudo, quando os holofotes se apagarem, quando as ruas forem limpas e as secretárias esvaziadas, sobrar obra feita e pessoas e coletivos e a cidade e o seu termo ficarem a mexer. O que significará a ler, escrever, pintar, dançar, tocar. A expor, fazer teatro, ver cinema, debater este mundo e criar o outro. A fazer o sete, ou trinta por uma linha, sem precisar de um valente empurrão. Mas por enquanto ainda estamos de esperanças. Oxalá então tudo corra pelo melhor. Cá estaremos para aplaudir ou pedir contas.

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                            De fazer corar qualquer trotskista

                            Tudo aconteceu no século passado, mas mora  ainda na memória de quem viveu para contá-lo. Nós, os maoistas, éramos bem mais do que se diz, embora bem menos do que pensávamos, e tínhamos um programa: libertar o país do fascismo, derrotar o colonialismo, destruir as bases da opressão capitalista, e, no fim, começar a construir uma sociedade mais feliz e igualitária, sem malfeitores ou parasitas. O inimigo principal era pois a burguesia, o colonial-fascismo e a PIDE. A seguir, vinham os reformistas, que identificávamos, algo exageradamente, com uma mescla de social-democratas, republicanos caquéticos, pequeno-burgueses hesitantes e comunistas pró-Moscovo. Na base da escala, e para honrar a origem estalinista que partilhávamos (com o querido camarada Lavrentiy Beria nos corações), estavam os trotskistas. A sua presença era no entanto reduzida a estereótipos sobre os exageros das preocupações teóricas e a mania congénita do fraccionismo, como aquele que dizia que onde existiam dois trotskistas o debate conduzia inevitavelmente ao surgimento de três tendências. Pura ilusão a nossa, que não olhávamos – por motivos de natureza conspirativa, obviamente – para os nossos próprios pés sectários. A um antigo camarada que há dias se referia com admiração ao mapa do maoismo em Portugal que o Miguel Cardina publicou no seu recente livro e o Ípsilon desta semana integra, com pequenos erros, apenas na edição para tablets (ver aqui), só me ocorreu dizer: «É de fazer corar de vergonha qualquer trotskista!»

                              Apontamentos, História, Memória

                              Nostalgia e utopia

                              Nostalgia

                              A Priberam acaba de divulgar os dados anuais de acesso ao seu dicionário de português online. A palavra mais procurada em 2011 foi «nostalgia», seguida por «amor», que tinha conseguido o primeiro lugar em 2010, mas cujas buscas foram diminuindo ao longo do último ano. Existe uma leitura simples, linear, desta tendência, que remete sem grandes hesitações para um interesse pelo passado observado, no atual contexto de recuo dos direitos sociais e das expetativas individuais, como uma «idade do ouro» tão quimérica quanto desejável. Mas podemos ir mais longe na observação do conceito. Recordei então um artigo escrito em 2007 e que tem um pouco a ver com isto tudo. Sendo um texto mais académico, encontra-se num registo diverso daquele adotado neste blogue. Transcrevo, por isso, apenas o primeiro parágrafo, remetendo depois para um link externo que leva ao artigo completo. Dada a altura em que foi concluído, não segue as normas do último acordo ortográfico.

                              A experiência contemporânea encerra uma sobrecarga da memória e um interesse pelo passado que adoptam a nostalgia como ferramenta da utopia. Percorremos os jornais e as colecções multimédia que oferecem, observamos a publicidade que apela a reminiscências identitárias, constatamos a atenção da crítica e a crescente popularidade dos filmes, romances, documentários e concursos que se cruzam com o fio da história. Reconhecemos também o revivalismo e as dinâmicas de celebração que integram a política cultural dos governos e das autarquias, ou se revelam em iniciativas públicas de diversas instituições. Ao mesmo tempo que o ensino da história recua nos currículos escolares e se reduz a banalidades, um interesse crescente pelo passado e pela sua carga simbólica emerge e expande-se aos nossos olhos, como via escolhida para a imaginação de uma vida-outra. [O artigo completo em formato pdf está aqui.]

                                História, Memória, Olhares