Arquivo de Categorias: Memória

O chalet de Judt

Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências. (mais…)

    História, Memória, Olhares

    O riso de Václav Hável

    Václav HávelNo início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.

    Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.

      Atualidade, Biografias, História, Memória

      Contra a supressão dos feriados

      Abaixo-assinado da responsabilidade de um conjunto de historiadores.

      A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.

      Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. (mais…)

        Atualidade, História, Memória, Opinião

        Num filme neorealista

        Enzo Staiola (Bruno) e Lamberto Maggiorani (Antonio)
        em «Ladrões de Bicicletas», de Vittorio de Sica (1948)

        Na minha escola primária, nós, as crianças – apenas rapazes –, dividíamo-nos em quatro grupos que se distinguiam pelos pés. Um, pequeno mas muito expressivo, chegava à escola descalço, mesmo de inverno, usando sacos de sisal para se proteger da chuva e do frio da manhã, e todos os colegas sabiam que aqueles eram os filhos dos pobres, sobrevivendo no limiar da miséria e da caridade. No extremo oposto, outro grupo, igualmente pequeno, usava sapatos de sola de cabedal, sempre a reluzirem e com aspeto de novos: era o dos que vinham de famílias com mais posses e melhores ligações, ou que se faziam passar por tal. No meio, um segundo conjunto de alunos usava calçado velho, de baixa qualidade, por vezes tamancos de madeira. Compunham-no os filhos da gente humilde mas aprumada, que fazia, sabiam Deus e o Diabo como, por se manter à tona, no rebordo da «pobreza honrada». E havia ainda um terceiro, ao qual eu pertencia, naquela escola talvez o maior de todos eles, que era composto pelos mais novos membros de uma classe média que via na poupança a única forma de encarar um futuro sempre imprevisível. Usávamos sapatos apresentáveis aos domingos e dias santos de guarda, que as nossas mães engraxavam com atenção e carinho, reservando para outros dias o calçado mais usado, reforçado com «protetores», pequenas peças de ferro ou de chumbo que serviam para prolongar a vida das solas e das capas dos saltos. Ontem, pela primeira vez em muitos anos, encontrei na vitrina de uma velha loja «protetores» à venda. Fiquei na dúvida sobre se seriam um vestígio arqueológico recuperado ou um sinal dos tempos. Ou se sempre ali estiveram e só agora, condicionado pela realidade, eu reparei neles.

          Apontamentos, Cinema, Memória

          O fim da grande máquina

          Percebi hoje como carrego comigo qualquer coisa de excessivamente antigo ao receber, através da crónica mensal que Pedro Mexia escreve para a revista Ler, a informação de que a empresa Godrej & Boyce, de Bombaim, última fabricante em atividade de máquinas de escrever, resolveu «descontinuar» o produto. Apesar de já terem passado duas décadas e meia, ainda recordo o tormento que foi passar a limpo na minha Olivetti portátil azul, para entregar na manhã seguinte, as duzentas e tal folhas da tese de mestrado – ou melhor, do seu equivalente – sobre as práticas ostentatórias do poder absoluto no tempo do rei João V. Particularmente daqueles momentos, ao chegar ao fim da página, em que verificava não caberem já as notas de rodapé e tinha de começar tudo de novo. Antes disso, muito antes, na poderosa Underwood do meu avô (ou seria uma Royal?), a escrita «a limpo» em teclado HCESAR dos primeiros textos públicos destinados ao pequeno jornal local. E antes ainda, no mesmo engenho, o preenchimento, por encomenda do meu pai que mantinha um biscate suplementar como correspondente bancário, dos avisos destinados aos clientes devedores nos quais se comunicava a proximidade do vencimento dos títulos de crédito enviados pelo sacador. É estranho mas até dessa tarefa monótona sinto, agora que desapareceu para sempre a possibilidade de a repetir, uma certa falta. Daquele barulho tac-tac tac-tac, sim, e do caráter tátil da ação. Mas, mais ainda, do aroma único, para mim aroma a infância, do óleo que lubrificava a engrenagem e do rolo da fita que sujava os dedos e marcava o papel a vermelho e a negro.

            Apontamentos, Memória, Olhares

            O soldado britânico de Auschwitz

            É recorrente o testemunho, transmitido por aqueles que sobreviveram ao Holocausto e puderam contar a experiência do horror, segundo o qual passada a Guerra quase ninguém aceitava escutá-los. Primo Levi transportou toda a restante vida esse fardo e, quando encontrou finalmente quem o quis ouvir, não se cansou de lembrá-lo. Este A Última Testemunha de Auschwitz, um relato de Denis Avey (n. 1919), antigo soldado do exército britânico que se bateu contra os alemães no Egito e na Líbia – e depois de capturado viveu o pesadelo do trabalho escravo nas instalações da IS Farben em Buna-Monowitz, anexas ao campo de Auschwitz-Birkenau –, é ilustrativo dessa realidade. Para além da dor legada pelo que viu e viveu, carregou quase até ao fim com a contrariedade de não encontrar quem aceitasse perder algum tempo com aquilo que tinha para contar. De tal forma que só depois dos noventa, e com a ajuda de Rob Broomby, um jornalista da BBC que soube da sua história, teve condições para falar do que presenciara e daquilo que os outros mereciam e deviam conhecer.

            E, no entanto, a sua experiência foi provavelmente única. Não apenas pelo relato circunstanciado, a partir da perspetiva do militar não graduado, das dificuldades reais do combate nas campanhas do Norte de África contra as tropas de Rommel. Não apenas por nos fornecer um retrato muito menos benévolo do que aquela doado pela tradição cinematográfica das condições reais nas quais viveram acantonados os militares aliados capturados pela Wermacht. Mas, para além disso, por nos oferecer a experiência absolutamente singular de alguém que, pela sua própria iniciativa e risco, decidiu trocar de identidade com um prisioneiro judeu destinado ao extermínio. O objetivo foi vivenciar de forma direta, para poder passar para fora uma informação que muitos resistiam ainda a aceitar como válida, as condições sub-humanas em que vegetavam, a caminho da morte certa, os prisioneiros sinalizados com a estrela de David. O relato intenso das noites de pesadelo que passou deitado nos catres dos mortos-vivos, seus fugazes companheiros de martírio, preenchem algumas das páginas mais perturbantes que sobre esse inferno na Terra alguém foi capaz de escrever.

            Denis Avey (com Rob Broomby), A Última Testemunha de Auschwitz. Trad. de Ana Glória Lucas. Clube do Autor. 320 págs. Publicado na revista LER de Novembro de 2011.

              História, Memória

              O peso da memória

              Não sou antifadista. Aliás, o Vasquinho da Anatomia, d’A Canção de Lisboa, era-o – «Morra o fado!», chegou a gritar do fundo da alma – e acabou por ser chamado à razão, passando, por via da redentora mudança proporcionada pelo estudo e pela moderação, da condição de degenerado à de doutor. Como aconteceu com o estrangeirado moço Luís, n’O Feitiço do Império, de António Lopes Ribeiro, no momento em que trocou os prazeres tóxicos da jazz-band e a namorada americana Fay Gordon, que fumava e detestava Portugal, pela «canção nacional» e o amor de Mariazinha, esse símbolo casto, modesto e compassivo da «portugalidade» no feminino. Mas que tanto fado me reconduz ao passado, lá isso, perdoem a franqueza, reconduz. Admito que estejamos a precisar de qualquer coisa que nos sacuda a autoestima, mas não exageremos. «Viva o fado!», muito bem, levanto também o meu copo, mas não façamos dele o hóquei em patins que nos falta. O fado não merece que lhe façam isso.

              [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cNuKs-jnRUk[/youtube]
                Apontamentos, Atualidade, Memória

                Papéis Roubados #10

                Henri Cartier-Bresson - «Roma» (1957)

                Logo no início de O Chalet da Memória, acabado de sair nas Edições 70, Tony Judt evoca as formas e os ritmos da austeridade vivida na Inglaterra do imediato pós-Segunda Grande Guerra. Aqui fica, no original em inglês, o capítulo «Austerity», mencionado no post anterior – que procura situar historicamente a defesa de uma certa frugalidade não consumista defendida por Judt – e publicado num número da New York Review of Books saído em Maio de 2010. A atualidade do tema, e logo o seu interesse, parecem evidentes.

                My wife earnestly instructs Chinese restaurants to deliver in cardboard cartons. My children are depressingly knowledgeable about climate change. Ours is an environmental family: by their standards, I am a prelapsarian relic from the age of ecological innocence. But who traipses through the apartment switching off lights and checking for leaking faucets? Who favors make-do-and-mend in an era of instant replacement? Who recycles leftovers and carefully preserves old wrapping paper? My sons nudge their friends: Dad grew up in poverty. Not at all, I correct them: I grew up in austerity.

                After the war everything was in short supply. Churchill had mortgaged Great Britain and bankrupted the Treasury in order to defeat Hitler. Clothes were rationed until 1949, cheap and simple “utility furniture” until 1952, food until 1954. The rules were briefly suspended for the coronation of Elizabeth, in June 1953: everyone was allowed one extra pound of sugar and four ounces of margarine. But this exercise in supererogatory generosity served only to underscore the dreary regime of daily life.

                To a child, rationing was part of the natural order. Indeed, long after the practice ceased, my mother convinced me that “sweets” (candy) were still restricted. When I protested that school friends appeared to have unlimited access to the stuff, she explained disapprovingly that their parents must be on the black market. Her story was all the more credible because the legacy of war was ever-present. London was pockmarked with bomb sites: where once there had been houses, streets, railway yards, or warehouses there were now large roped-off areas of dirt, usually with a dip in the middle where the bomb had fallen. By the early 1950s unexploded ordnance had been mostly cleared and bomb sites—though off-limits—were no longer dangerous. But these impromptu play spaces were irresistible for small boys. (mais…)

                  Memória, Recortes

                  How I Learned to Stop Worrying

                  Peter Sellers

                  Um grupo de técnicos de uma unidade industrial de Amarillo, Texas, dependente da National Nuclear Security Administration, acaba de concluir o desmantelamento daquele que o governo norte-americano afirma ter sido o último exemplar da B-53. O objeto não era de todo inofensivo, uma vez que continuava a ser considerado a bomba termonuclear mais poderosa do mundo, seiscentas vezes mais potente do que a lançada sobre Hiroxima em 1945. Esta arma assustadora fora um produto demencial da fase mais quente da Guerra Fria, e tinha sido concluído de forma acelerada, no início dos anos sessenta, na altura da Crise dos Mísseis de Cuba. A B-53, carinhosamente apelidada de Big Dog pelos militares que a haviam concebido com o objetivo de exterminar parte da humanidade, destinara-se a ser lançada de bombardeiros estratégicos de longo alcance B-52. Era capaz de rebentar com bunkers e de enviar ondas de energia através do solo semelhantes às dos sismos, fazendo desaparecer grupos de cidades ou países inteiros, e desimpedindo de vez o uso dos botões vermelhos da Casa Branca e do Kremlin. Despoletando então a batalha final, o dia antes do «day after», o fim dos tempos, esse Armagedão que, com forte sentido de realismo, Stanley Kubrick desenhou em 1964 na sequência derradeira do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (em Portugal Dr. Estranho Amor ou: Como Aprender A Deixar De Me Preocupar E A Amar A Bomba). No entanto, este gesto simbólico da administração americana não parece suscitar agora qualquer sentimento de alegria, alívio ou segurança, surgindo nas notícias como uma simples curiosidade. Na realidade, todos sabemos que a indústria da guerra foi entretanto inventando outros meios menos espetaculares, menos definitivos, mas mais insidiosos e eficazes de gestão do medo e do poder. Por isso este objeto estrondoso pode muito bem ser abatido sem danos de maior para a atual ordem do mundo.

                    Apontamentos, Cinema, Memória, Olhares

                    Memórias de um leitor #3

                    Os Três Mosqueteiros

                    Editado pela Bertrand em capa dura, eis o primeiro livro da colecção Histórias que me passou pelas mãos. Tinha a particularidade de conter o texto original de Dumas, mas também uma versão simplificada vertida em «quadradinhos». A coragem de D’Artagnan, o jovem gascão aventureiro e um pouco fanfarrão, era realçada pela sua oposição a figuras tão decididamente pérfidas como o antipático Cardeal Richelieu e a venenosa Milady. Um exemplo para qualquer rapaz de província desejoso de trespassar a vida a certeiros golpes de espada.

                      Apontamentos, Memória, Séries

                      Morenas de Angola

                      Riquita 1971
                      clique na imagem para seguir a história

                      Outros (e outras) poderão ter vivido semelhante experiência noutros lugares, quem sabe se até à porta de casa, mas nunca me cruzei com tantas mulheres tão perturbadoramente belas como naquele ano em Angola. Bonitas sem limite, de todas as cores, de todos os aromas, com corpos esplêndidos e um porte único. Capazes de «faire tourner la tête» e de deixar um sujeito parado na contramão atrapalhando o trânsito. Nos anos derradeiros do regime velho, aliás, certas beldades afro-portuguesas eram como um emblema usado para proclamar a dimensão planetária da pátria, disputando a glória e os favores públicos aos jogadores de futebol, aos fadistas, às estrelas do teatro revisteiro, aos ídolos do nacional-cançonetismo destacados na rádio, tv e disco (não havia ainda cassete pirata). Jornais e magazines de atualidades, os editados nas colónias mas também os da metrópole, transmutavam a mulher africana, e mais anda aquela cuja compleição resultava de uma mistura genética incutida pela mestiçagem, fosse ela negra assimilada, mulata, cafuza ou branca com sabor tropical, em ícone de um Portugal tórrido e multirracial, vestindo maillot, que começava na foz do Minho e seguia por aí afora, manejando as ancas num desfile que só deveria terminar nas praias de Timor.

                      Os concursos de misses eram, na época, momentos centrais desse esforço de transformação de forças da natureza em emanações morfológicas da identidade pátria que o regime inventara. Algumas fizeram até carreira na metrópole, onde, apesar do clima menos propício ao desabrochar dos corpos, as possibilidades profissionais eram maiores e mais aliciantes. Ainda assim, muitos viam já nesses concursos, para além de instantes de uma cultura predominantemente masculina que reconduzia a mulher ao papel de suave e subalterno adorno, a intervenção censurável da propaganda do regime na construção de um ideal de perfeição que tapava a realidade mais escura, nada bonita, nada dengosa, da situação da mulher sob o Estado Novo e o jugo do colonialismo. Custa por isso ver como, logo após as independências, os certames destinados a designar as misses isto-ou-aquilo se mantiveram como ocasiões de entretenimento das massas e de encenação da grandeza putativa – ditosa pátria que tais filhas gera! – de novos regimes mais ou menos despóticos. A recente aparição de Leila Lopes, a angolana consagrada Miss Universo 2011 em São Paulo, e sobretudo o estardalhaço feito em seu redor pelos propagandistas de Luanda, representam mais um momento dessa transformação da beleza feminina numa encenação buffa, e neocolonial, de um orgulho degradado.

                        Atualidade, Memória, Olhares

                        Edith 63

                        Edith

                        De repente, ao acaso de um post do Facebook, sobrevém uma das minhas reminiscências mais antigas e ao mesmo tempo mais cintilantes e imperecíveis. Associada a um sentimento de pena verdadeira pela perda de alguém que jamais conhecera. Na tarde do dia 10 de outubro de 1963, seguia por uma estrada secundária do norte geográfico no banco de trás do Carocha familiar quando o locutor de serviço da Emissora Nacional interrompeu a emissão para anunciar a morte de Edith Piaf. Passou de seguida «Non, je ne regrette rien» e eu, sem idade sequer para ter um passado e poder recusar o quer que seja, defrontei mudo a emoção instantânea, profunda e completa que consigo agora rememorar.

                          Apontamentos, Memória, Olhares

                          O romance (e a realidade) do retorno

                          De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.

                          Dulce Maria CardosoA autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.

                          O RetornoE agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».

                          Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.

                            História, Memória, Olhares

                            Tintim no Congo e a dentada na maçã

                            Tintim no Congo

                            Discordo em absoluto da tentativa de proibição a decorrer na Bélgica de Tintim no Congo, o segundo livro de banda desenhada de Hergé. O motivo invocado é a perspetiva, próxima dos estereótipos eurocêntricos e racistas da África e dos seus naturais não-caucasianos, que em 1931, quando o álbum foi editado pela primeira vez, dominava a maior parte do hemisfério norte. Sob este aspeto, o livro incomoda, sem dúvida, mas não menos que milhares de outros, fáceis de encontrar em bibliotecas e livrarias, contendo representações e ideias que podemos abominar mas não devemos apagar, pois fazem parte do património coletivo e servem até para mostrar, por oposição, aquilo que consideramos detestável e merece, muitas vezes, ser conhecido para ser lido criticamente. Neste caso, aliás, o próprio Hergé (1907-1983) veio a reconhecer que na altura da criação da aventura congolesa do jovem repórter belga, tal como acontecera com o também polémico Tintim no País dos Sovietes, vivia num ambiente no qual o preconceito e a recusa da diferença eram a norma: «Era 1930. Conhecia desse país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com esses critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica». (mais…)

                              Democracia, Memória

                              Cascais’71

                              Cascais 71

                              Em novembro de 1971, o primeiro Festival de Jazz de Cascais («Newport na Europa») reuniu num programa excecional a nata da cena jazística mundial. Se for apreciador do género, para o confirmar basta que leia com atenção todas as linhas do cartaz acima reproduzido. No qual faltam aliás nomes também presentes mas que começavam apenas a carreira e por isso não eram destacados, como o contrabaixista Charlie Haden, a acompanhar então Ornette Coleman, e o pianista (na época apenas elétrico) Keith Jarrett, que tocava com um bastante irascível Miles Davis. Estive por lá, sim, comendo o pó de cimento de um pavilhão ainda em obras e bebendo cervejas estupidamente chocas. Mas, acima de tudo, encaixando momentos de beleza e exaltação cujos ecos continuam, garanto, a reverberar.

                              Obrigado à A.S. por se ter lembrado de me avivar a memória quando deu de caras com isto.

                                Etc., Memória, Música

                                Syd (e os outros Floyd)

                                Syd Barrett

                                Tentando contrariar um injusto apagamento. A propósito da recente edição remasterizada da discografia dos Pink Floyd, revistas e suplementos alinham sínteses do trajeto de uma das bandas da música popular anglo-saxónica que mais venderam (e vendem), e que maior capacidade tiveram de conservar uma admiração que atravessa gerações. É fácil hoje encontrar homens de sessenta anos, trintões desgastados ou putos de doze que gostam dos Floyd, conhecem de memória uns quantos temas, e um dia tiveram, contra a vontade das mães, um poster deles numa parede do quarto. Em particular entre os que recordam a fase inaugurada com Dark Side of The Moon (1973), mais melódica e com maior impacto comercial, que é também a menos interessante. Os artigos da imprensa têm pois alinhado fotografias de Waters, Gilmour, Mason e Wright, não se esquecendo de evocar a dimensão dos megaconcertos e de contabilizar a magnitude das vendas. Só que tem sido praticamente ignorado o rico período criativo de 1964 a 1968, claramente menos previsível e dominado pela presença inovadora do guitarrista, vocalista e compositor Syd Barrett.

                                Foram dele, de facto, os dois primeiros álbuns dos Floyd (The Piper At The Gates of Dawn e A Saucerful of Secrets), e foi ainda debaixo da influência psicadélica e ácida da sua música que foram compostos, já em 1969, os seguintes More e Ummagumma. Todavia, no ano anterior, enquanto a banda se tornava cada vez mais popular, a vida de estrada, o consumo de LSD e a propensão para a depressão tinham transtornado rapidamente o comportamento de Barrett, cada vez mais estranho e incapaz de comunicar com os companheiros e com o público que se juntava para os ouvir. Os restantes membros da banda decidiram então não levar mais Syd consigo para os concertos, substituindo-o por David Gilmour, principal responsável pela sonoridade açucarada de lead guitar que os Pink Floyd adotaram a partir dessa altura e que para as multidões se tornou aquela que reconhecem. Quanto a Syd, ainda editará em 1970 dois interessantes álbuns a solo (The Madcap Laughs e Barrett), afundando-se depois, apesar de pontualmente recordado por alguns dos sobreviventes da época, numa vida de apagamento, reclusão e doença. Morreu em Julho de 2006. Poucas semanas antes fora visto a deambular sozinho pelas ruas próximas da sua casa em Cambridge.

                                [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=LNbcbh2JH_I[/youtube]
                                  Apontamentos, Biografias, Memória, Música

                                  Marcas geracionais

                                  Essa do «disco que marca uma geração» tem que se lhe diga. Como o próprio conceito de geração, que pode ser útil quando se olha o tempo de uma certa distância mas tem o inconveniente de fabricar generalizações, diluindo experiências singulares, caminhos que foram ínvios, vozes que fizeram o seu percurso em ziguezague. As referências que identificam a geração são, pois, flutuantes e de significado muito relativo, tendo só valor de referência. E muitas vezes a referência de uma geração representa algo de muito diferente para a seguinte. Um bom exemplo disto foi dado agora pela  evocação planetária, de forte teor nostálgico, do concerto ao vivo que resultou do reencontro de Paul Simon e Art Garfunkel no Central Park de Nova Iorque, ocorrido em 19 setembro de 1981. Lembro-me bem, muito bem mesmo, desse concerto, que vi pela televisão como tantos milhões de pessoas, para além das 500.000 que o viveram no local, e do enorme enfado que na altura me provocou. Nessa tarde a anoitecer, ouvindo versões um tanto espaventosas e já com um brilho algo artificial das canções sentimentais ou rebeldes que amara quinze anos antes – como «Mrs. Robinson», «America», «The Sounds of Silence» ou «50 Ways To Leave Your Lover» – percebi que a página de Simon and Garfunkel tinha sido voltada e que estava agora perante dois simpáticos vestígios dos bons velhos sixties. Que era melhor continuar a olhar à volta em vez de ficar paralisado a imaginar-me «Still Crazy After All These Years».

                                  S & G quinze anos antes, em 1966, quando interpretavam «I am a Rock» com outra energia:

                                  [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ealhxti03pk[/youtube]
                                    Apontamentos, Memória, Música, Olhares