Arquivo de Categorias: Memória

Do passado que passou

praxe

Há uns meses fui desafiado pela Plataforma Anti Praxe Académica, de Coimbra, a escrever um texto para editar no seu P.A.P.A.zine. Saiu aquilo que abaixo se transcreve. Sei que não é fruta da época – já passou a Latada e ainda não chegou a Queima, datas-magnas da vida estudantil para grande número de universitários – mas talvez por isso mesmo, porque seja tempo de menos adrenalina movida a superbock, seja também a altura de o divulgar aqui. Didactismo e panfletarismo qb, que há gostos para tudo.

Para a maioria dos estudantes que nas décadas de 1960-1970 frequentaram a Universidade de Coimbra – nas outras o problema nem se punha –, a praxe académica não tinha grande peso. Simplesmente porque estava a desaparecer. Antes do «luto académico», decretado em 1969 para responder à repressão dos estudantes, já a maioria destes pouco se preocupava com esse tipo de prática simbólica. O desenvolvimento do associativismo estudantil e o alastrar de uma concepção tendencialmente democrática e igualitária da sociedade, a recusa de um certo «espírito de rebanho» que as autoridades apreciavam, iam transformando a praxe, como rotina de base corporativa e elitista, em algo de suficientemente anacrónico para ser ignorado por um número crescente de alunos. Até mesmo o uso do traje académico vivia uma fase de claro recuo, embora alguns ainda dele se servissem casualmente. Ao fechamento da batina, imposto pela decisão colectiva do «luto», seguiu-se por isso, em poucos meses, o seu quase completo desaparecimento.

O que aconteceu nessa altura foi assim a confirmação de uma transformação de facto: não se fez desaparecer a praxe do dia-a-dia estudantil, pois aí ela já quase não existia, mas acabou-se com a festa académica tradicional e com a ostentação pública da imagem elitista do aluno universitário. Esta mudança serviu para unir os estudantes contra o governo da altura, aproximando-os do cidadão comum e mostrando que consideravam existirem situações muito mais importantes do que a ocasional exibição do destaque social e da capacidade para consumir álcool. A presença de um número cada vez maior de mulheres na academia acentuaria aliás a metamorfose, limitando o «prestígio» da boémia masculina e da «autoridade da moca» na qual se fundava parte da velha ordem estudantil. Os estudantes não se viram assim «privados da praxe», como li há meses num artigo de jornal: a larga maioria deles descartou-a porque já não a sentia como sua, servindo-se do que dela restava apenas para a sua luta anti-regime e anti-sistema. Por isso durante mais de dez anos, e com a Revolução de Abril pelo meio, ninguém mais pensou no assunto. Ele simplesmente parecia morto e enterrado. (mais…)

    Apontamentos, Coimbra, Memória, Olhares

    Indignar-se

    Stéphane Hessel

    Custa pouco mais do que um maço de cigarros o livro de Stéphane Hessel, best-seller em França, que chegou agora às nossas livrarias. Indignai-vos! é a declaração de um imperativo, escrita por alguém que tem suficiente autoridade moral para o fazer: aos 93, herói da Resistência francesa, sobrevivente dos campos de concentração nazis e um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor continua lúcido e tão atento aos motivos para a indignação do nosso tempo quanto aos dos anos durante os quais, em vez de se calar, de pactuar, de desistir, arriscou a vida por causas imprescindíveis.

    Alguns destes motivos são colocados pela necessidade de resistência à barragem de informação que se tem esforçado por fazer-nos acreditar não existirem alternativas ao mundo no qual vivemos: «Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos das medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada?» Tal é possível, conclui, «apenas porque o poder do capital nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado.» E continua: «Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.»

    A fantasia segundo a qual não é possível actuar contra esta situação de desigualdade tem no entanto os seus agentes, responsáveis directos pelo disseminar de uma convicção de que as coisas «são como são» e de que o que há a fazer é cada um tentar arranjar maneira de passar à frente dos outros. O antigo resistente propõe então «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos.» Por isso, mesmo no coração das democracias – onde não é preciso atirar pedras ou pegar em armas para fruir do direito à palavra – indignar-se é preciso. Desde logo contra esta ditadura da inevitabilidade, responsável pela disseminação sedativa do princípio da desigualdade «natural». Foi isto que, ao aproximar-se do final da vida, Hessel sentiu que ainda era importante dizer. «A todos aqueles e aquelas que irão fazer o século XXI.»

    Stéphane Hessel, Indignai-vos! Objectiva. Prefácio de Mário Soares. Trad. Paula Centeno. 52 págs.

      Atualidade, Democracia, Memória, Olhares

      As musas também morrem

      Freewheelin'

      Aos 67, Suze Rotolo morreu ontem em Nova Iorque. Copio e colo a partir do Irish Times: «A long-haired 19-year-old strolling down a snow-covered Greenwich Village street on the arm of a 21-year-old folk singer whose words and music would shortly be affecting the world view of a generation.» A namoradinha de Dylan que o acompanha na capa do segundo álbum The Freewheelin’Bob Dylan, de 1963. O de Blowin’ in the Wind e de A Hard Rain’s a-Gonna Fall. Era Suze uma simples figurante, uma groupie ou coisa assim? Longe disso: «During their time together, Rotolo became much more than a passive muse. Thoroughly familiar with the left-wing Greenwich Village scene and already active in the civil rights movement, she acted as a cultural guide to Dylan. He had arrived in New York a few months earlier from rural Minnesota with a head full of Jack Kerouac, Woody Guthrie and Robert Johnson. She introduced him to the work of Paul Cezanne and Wassily Kandinsky, Bertolt Brecht and Antonin Artaud, Paul Verlaine and Arthur Rimbaud. Together they went to see Picasso’s Guernica and François Truffaut’s Shoot the Pianist. After she told him the story of a 14-year-old African American boy who had been brutally murdered in Mississippi in 1955, he wrote The Ballad of Emmett Till, one of his early broadsides against injustice.» As musas afinal também morrem.

        Apontamentos, Memória, Música

        Camus fotográfico

        Camus_avant

        Tanto quanto a obra escrita, a projecção visual da presença física de Albert Camus incorporou sempre o contraste entre o lado diurno, solar, e um outro, mais reservado e taciturno. As muitas fotografias que dele ficaram, o rastro que sobrou das suas aparições públicas, constantes apesar de um desejo reiterado de privacidade, mostram também essa dupla face, que transparece ainda no modo como os outros – os que o admiraram, muitos, e os que o odiaram, muitos também – se foram relacionando com os dois rostos.

        Nos anos 40, o escritor surgia refulgente, a good looking guy com êxito entre as mulheres, uma versão melhorada de Humphrey Bogart como se lhe refere o biógrafo David Sherman, cuja silhueta sóbria funcionava como protótipo do intelectual combatente. Não muda: sobretudo impecável, fato de bom corte, camisa clara, gravata, os cabelos puxados para trás, por vezes um cigarro Gauloise. Em A Queda, Clamance, o protagonista, declara o charme como «a forma de obter uma resposta sem ter colocado nenhuma questão clara», insistindo no modo como a exibição da harmonia, do «autodomínio sem esforço», fazia com que as pessoas que o olhavam «confessassem, por vezes, que tal as ajudava a viver». É este lado, solar mas tranquilo, que Camus evoca em O Verão: «Quando morava em Argel, suportava o inverno pois sabia que numa noite, numa certa noite pura e fria de Fevereiro, as amendoeiras do vale dos Cônsules se cobririam de flores». A tranquilidade manifesta nas fotografias não é porém esforço de poseur, como ocorreria com muitos dos da geração que nele decalcou atitudes, mas antes traço de uma personalidade capaz de fazer coincidir a disposição reflexiva com a energia activa e militante, vista pelo escritor como resultado da sua origem mediterrânica.

        Já a reverberação de um semblante sombrio, muitas vezes desolado, começará a acentuar-se após a publicação, em 1951, de O Homem Revoltado, determinante para a ruptura com Sartre e com intelectuais de uma esquerda que jamais deixou de ver como sua. Muitos, especialmente os próximos do PCF, cortaram relações com ele e passaram a hostilizá-lo sem rodeios por não lhe perdoarem a concepção ética do acto de rebelião, contrária à subordinação do indivíduo ao colectivo. O isolamento – apesar do êxito público de algumas peças, apesar do reconhecimento trazido em 1957 pela atribuição do Nobel – surge acentuado, visível, nas fotografias de uma época que não mais lhe devolveu a energia e a esperança dos anos que haviam ficado para trás. Em Albert Camus – Solitaire et Solidaire, uma belíssima fotobiografia preparada com comovente carinho pela filha Catherine e editada em 2009, esta conta um episódio ocorrido nos últimos anos. Um dia, adolescente, encontrou o pai sentado num sofá de casa com o rosto fechado, aparentando desalento, e perguntou-lhe: «Papá, estás triste?». Camus respondeu: «Não estou triste, Catherine, estou apenas só.» As fotografias dos anos finais mostram-nos repetidamente este lado marcado pelo desconsolo. E todavia, olhado em perspectiva, o álbum da sua vida não revela um escritor recolhido, fechado na sua biblioteca, mas antes um homem em movimento que caminha e avança, razoavelmente seguro do percurso que escolheu.

        Publicado na revista LER de Fevereiro de 2011.

          Heterodoxias, Memória

          Nadia

          Annie Girardot

          Depois de 1960, com a Nadia de Rocco e os seus irmãos, Annie Girardot interpretou sempre um só papel: o seu. Filme após filme, aqueles que a seguiram mudos e atenciosos pelas salas escuras habituaram-se a vê-la em qualquer género da arte, do drama à comédia, sempre com aquele rosto de pessoa comum que dispensava o glamour, aquela voz de fumadora inveterada em registo de metralhadora, electrizante, que a tornavam única. Por isso – e não é pouco – vão sentir tanto a sua falta.

          A partir de uma evocação aparecida no Libération.

            Apontamentos, Cinema, Memória

            E não se deitaram no chão

            Anatomia de um instante, de Javier Cercas, é uma narrativa pormenorizada das circunstâncias que envolveram o 23 de Fevereiro de 1981, quando as Cortes espanholas foram assaltadas por duzentos membros da Guardia Civil comandados pelo tenente-coronel Tejero Molina. A operação foi parte de uma tentativa de golpe lançada pelos militares franquistas contra um regime democrático que dava ainda os primeiros passos. A momentânea vitória dos sublevados acabaria por ser contrariada em boa parte pela intervenção do rei, mas durante longas horas, uma noite inteira e ainda parte da manhã seguinte, governo, deputados e jornalistas presentes à hora do assalto foram conservados como reféns pelos assaltantes. A parte mais dramática e imprevisível foi a inicial, quando os militares irromperam pela sala e foi dada uma ordem no sentido de todos se deitarem de imediato no chão. A ordem foi acompanhada por um tiroteio desgovernado que não feriu ninguém mas bastou para atemorizar os presentes e dar ao país e ao mundo – a televisão transmitiu as imagens em directo – a ideia de que não se tratava propriamente de uma brincadeira.

            No livro de Cercas, como no momento do golpe, destacam-se três homens cuja bravura se explica em poucas palavras. Foram os únicos dos presentes que não se atiraram para o chão e encararam os golpistas, sabendo qualquer deles, naquele preciso momento, que se apenas três dos que se encontravam dentro da sala fossem fuzilados seriam precisamente eles. Relembro os nomes: Adolfo Suárez, primeiro-ministro demissionário, um antigo franquista bon-vivant que atraiçoara os seus tornando-se figura-chave da transição para a democracia; o general Manuel Gutiérrez Mellado, que durante a Guerra Civil se batera contra os republicanos mas agora apoiava Suárez na qualidade de ministro da Defesa, transformando-se para a extrema-direita no exemplo máximo de traição; e Santiago Carrillo, o então secretário-geral dos comunistas, que pelo simples facto de personificar a principal e «demoníaca»  força de oposição a Franco era o deputado mais odiado pelos amotinados de arma engatilhada. Suárez deixou-se ficar sentado, como que impassível e, sugere Cercas, a «posar para a História»; Gutierrez Mellado, de setenta anos e o mais velho dos três, resistiu fisicamente e de pé à ordem dos assaltantes, só se sentando quando lhe apeteceu; Santiago Carrillo, o velho e experimentado combatente antifranquista, manteve-se sentado a saborear calmamente o seu cigarro.

            Claro que este post é só um engodo para a leitura deste livro intenso, encaixado num género híbrido, entre a história, o jornalismo e o romance.

            Rui Bebiano

            Javier Cercas, Anatomia de um instante. Trad. de João Pedro George. Dom Quixote. 458 págs.
              História, Leituras, Memória

              Adeus Maria

              Maria

              As filas, «bichas» num português de outras eras, nunca foram o meu forte. De cada vez que me meto numa um pouco mais comprida e visivelmente demorada, rapidamente avalio se se justifica a espera e não será preferível trocá-la por uma actividade mais autónoma. Nessas alturas desisto sem ponta de remorso e vou-me embora. Mas não foi isso que aconteceu naquele final de tarde de um Verão dos idos de 75, ali nas imediações das bilheteiras do Cine-Atlântico (ou teria sido no Cine-Miramar?) de Luanda. Munido de toda a paciência deste mundo e do outro, deixei-me ficar bem mais de duas horas na bicha, ou «fila» em português do século vinte e um, que dava a volta ao quarteirão. O objectivo assumido: comprar um bilhete para ver O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci. Mais do que muitas famílias, libertas da censura pelas liberdades de Abril, seguiam pacientes em formatura, visivelmente interessadas em conhecer a dimensão estética da lubrificação na fantasia sodomita protagonizada por Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider). A Maria morreu hoje de cancro e só consigo recordar-me de como estava esplêndida, na pele de uma mulher jovem e desconhecida, naquela noite luandina.

                Apontamentos, Cinema, Memória

                Entre sombras e silêncios

                Em crónica saída na revista New Statesman, o escritor ucraniano Andrei Kurkov descreveu Sussurros, de Orlando Figes, como «uma fascinante enciclopédia das relações humanas», considerando-o, a par do Arquipélago Gulag, de Soljenitsine, e dos Contos de Kolima, de Varlam Chalamov, como «um dos maiores monumentos literários do povo soviético». Não se trata de uma desnecessária hipérbole, pois esta é, de facto, uma obra soberba e claramente inovadora. Convém à partida desvanecer um eventual equívoco: este não é mais um dos muitos estudos históricos descritivos e estatísticos sobre Estaline, o estalinismo e as suas vítimas proporcionado pela abertura dos arquivos que se seguiu à Glasnost. Mergulhando nas sombras, surge antes como uma abordagem da vida diária das pessoas comuns e da forma como esta foi condicionada pela engenharia social do «homem novo». (mais…)

                  História, Memória, Olhares

                  Alívio

                  Billy the Kid

                  Prevaleceu o bom senso. Ao contrário do que chegou a ser anunciado, o Estado do Novo México não vai perdoar a Henry McCarty, ou melhor, a William H. Bonney, ou melhor ainda, a William Antrim, Jr., aliás Billy the Kid, 118 anos depois da sua morte às mãos do xerife Pat Garrett, os crimes cometidos, segundo palavras do governador Bill Richardson, «a saquear, a devastar e a matar os merecedores e os inocentes de igual forma». Salvaguarda-se assim uma parte do património americano que muitos milhões de pessoas foram partilhando. Pois faria lá sentido algum que agora, à revelia de tantos rapazes que vibraram com os seus assaltos, que se entusiasmaram com os duelos de carabina e revólver ganhos pelo herói-bandido com cara de bebé, se passasse um atestado de ignóbil inocência ao famigerado Kid?

                    Devaneios, História, Memória, Olhares

                    Limpeza de pele

                    Mark Twain underwater

                    – We blowed out a cylinder-head.
                    – Good gracious! anybody hurt?
                    – No’m. Killed a nigger.
                    – Well, it’s lucky; because sometimes people do get hurt.

                    O Público noticiava há dias que a New South Books, uma editora do Alabama, vai reeditar As Aventuras de Huckelberry Finn, de 1884, expurgadas das 219 referências à palavra nigger que aparecem no romance. Também a palavra injun será substituída. A primeira, que se refere pejorativamente ao preto, ao negro, à «pessoa de cor», como insistem em dizer os racistas brancos mais embaraçados, será substituída por slave. Já injun, epíteto ofensivo aplicado aos native americans, será trocada por indian. Uma vez mais, justifica-se o gesto rasurador – que não é novo, pois até a Bíblia foi submetida já a alguns liftings recentes –, com a consideração dos termos originais como sendo ofensivos ou politicamente impróprios. Na ignorância, completa ou propositada, de Mark Twain se ter servido daquelas palavras para reforçar o lugar social injusto de algumas das personagens. O escritor foi, aliás, um apoiante empenhado da abolição da escravatura e do alargamento dos direitos civis dos negros americanos (tal como foi também, já agora, um partidário da extensão às mulheres do direito de voto). Foi ainda grande amigo ao longo da vida de John Lewis, um negro que serviu de inspiração para o personagem Jim, central no romance em causa.

                    Muitos anos antes de Martin Luther King ou Malcom X terem sequer nascido, já Twain se empenhava num combate, na sua época particularmente difícil e solitário, que muitos anos mais tarde faria com que alguns sectores racistas afiançassem ter ele uma quantidade importante de «sangue negro». Ou «afro-americano», como em sentido inverso, e de forma completamente anacrónica em relação aos conceitos e às palavras usados no tempo do escritor, existe quem prefira dizer. Vale sempre a pena, diante de tais afirmações de reiterada ignorância, imprecisão ou mera estupidez, insistir no perigo que comporta este tipo de escolha supostamente purificadora. Em nome da omissão de palavras ou de conceitos julgados depreciativos, ou na tentativa de contrariar uma absurda «censura preventiva» – que tem levado, por exemplo, à retirada de algumas bibliotecas públicas americanas de livros, clássicos muitos deles, contendo termos julgados «impróprios» –, alteram-se obras literárias e apagam-se pedaços de uma realidade historicamente vivida ou imaginada em contextos muito diversos e que só podem ser compreendidos nas suas circunstâncias. Com tais gestos dilui-se também o rastro de etapas dos processos de emancipação das sociedades e das próprias palavras. Voltando-se o feitiço contra o feiticeiro, se é que não convirá referir este profissional como «técnico de práticas mágicas», «agente de subculturas locais» ou coisa que o valha.

                      Democracia, Memória, Olhares

                      Bananas

                      Banana

                      Günther Schabowski, um ex-membro do Politburo do partido do poder na antiga República Democrática Alemã que trabalhou como chefe de redacção do Neues Deutschland, o diário oficial, contou há alguns anos a uma jornalista que numa reunião plenária efectuada em 1989, no preciso momento em que uma crise económica sem precedentes, a revolta popular e o rápido crescimento da fuga de cidadãos para o ocidente abalavam definitivamente o regime, aquele órgão se recusou a debater a situação. Limitou-se na altura a abordar os preparativos para as comemorações oficiais dos quarenta anos da chegada dos comunistas ao poder. Só numa conversa de corredor um alto responsável se terá referido vagamente aos protestos, sugerindo uma solução para acabar de vez com o descontentamento dos cidadãos cujo rumor parecia não chegar à vida ultraprotegida da nomenklatura leste-alemã: «Podemos dar-lhes bananas!» A ideia parece absurda, e naquele contexto era-o particularmente, mas tinha a ver com a forma como, para muitos cidadãos da antiga Europa do «socialismo realmente existente», o consumo de bananas, um fruto raro e caríssimo, se encontrava ligado a uma certa ideia de abundância e de felicidade, ingenuamente associada ao consumo de certos bens no lado ocidental. Contam-se episódios tragicómicos, como o daquele cidadão acabado de cruzar o recém-aberto Muro, que após ter uma na mão – na noite da Queda as bananas esgotaram em Berlim-Oeste – comeu rapidamente a casca deitando fora o «caroço».

                      Ainda que não a tal escala, também do lado de cá da velha Cortina o consumo de bananas foi sinal de bem-estar e de prazer. Ainda pelas décadas de 1950-1960 era um produto raro nas regiões da Europa mais distantes dos portos e das principais vias de comunicação terrestre, funcionando o seu consumo, em muitos lados, como sinal de distinção social. Foi também factor de configuração de uma certa ideia de exotismo, da qual é exemplo o seu lugar na composição do arranjo floral-frutístico que se tornou parte destacada da imagem exuberante e tropical de Carmen Miranda, nos anos trinta e quarenta a portuguesa mais brasileira do Brasil. A definição de «república das bananas», parodiada em 1971 por Woody Allen, não se distancia muito dessa projecção icónica: uma área politicamente periférica na qual o poder arbitrário de um qualquer ditador latino-americano assentava na protecção de grandes empresas americanas, como a United Fruit Company ou a Standard Fruit, cuja riqueza se baseava na exportação do produto para regiões nas quais era vendido a preços elevados sem qualquer benefício para as populações dos países produtores. Mas não pode dizer-se que esta seja uma tradição com grande futuro. E não é pelo facto do seu consumo se ter democratizado. Em artigo saído num número recente da New Yorker, Mike Peed alerta para uma realidade preocupante: um conjunto de factores de natureza climatológica e genética está a provocar uma rápida redução da produção de bananas – ainda assim o 4º produto alimentar mais produzido em todo o mundo –, ao mesmo tempo que introduz transformações radicais na definição biológica das suas diferentes variedades, com alterações de textura, formato e sabor. Pode assim acontecer que, num tempo não muito distante, a banana, ou pelo menos a banana como a conhecemos hoje, venha a transformar-se numa espécie de dinossauro, ou de dodó, das plantas herbáceas. Reconvertida na recordação mitificada de um mundo que já não existe.

                        Apontamentos, Atualidade, Memória

                        Real social (e se de repente) (ok, um bocado nostálgico)

                        [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=V0UcQDUR-fU[/youtube]

                        All the leaves are brown / and the sky is grey / I’ve been for a walk / on a winter’s day
                        // I’d be safe and warm / if I was in L.A / California Dreamin’ / on such a winter’s day

                        Então foi assim. Seguia de manhã a via-sacra das compras da época, absorto em pensamentos um tanto doentios que metiam os efeitos da crise e a consciência de estar a ser sugado por uma espiral muito negra. Provavelmente nem disfarçava a tristeza. Uns metros adiante, uma mulher que nunca tinha visto revolvia estantes de CD à procura de qualquer coisa. Cara fechada, metida na sua vida, talvez com pensamentos não menos sombrios. De repente, a instalação sonora da loja, activada por um qualquer fantasma revivalista e com problemas de visão, começou a bradar «California Dreamin’», o hino sixtie de esperança e evasão. Então eu e a desconhecida como que acordámos. Cada um de nós reparou que o outro tinha despertado. Por momentos um vento antigo girou pelo ar. Olhámo-nos sem uma palavra, como cúmplices. Sorrimos levemente e fomos às nossas queridas vidas de cinquentões. Durou tudo 2’ 41’’. Ou talvez menos.

                          Apontamentos, Devaneios, Memória

                          Sussurros

                          estalinismo real

                          Ainda vou só a meio das 690 páginas de texto – com mais 50 de notas – mas já estou em condições de dizer que Susssuros. A Vida Privada na Rússia de Estaline, do historiador britânico Orlando Figes, é um dos meus grandes livros de 2010. Acabado de publicar pela Alhêteia e resultado de um projecto de investigação em larga escala maioritariamente apoiado no testemunho oral de sobreviventes e dos seus descendentes, não se trata de «mais um» livro sobre Estaline e o regime soviético. Analisa principalmente, com grande detalhe, «a maneira como o estalinismo se instalou na mente e nas emoções das pessoas, afectando-lhes os valores e as relações». Fala mais de integração, de aceitação, do que de luta, perseguição e resistência. E é também um excelente manual para se perceber a forma como o ascetismo «romântico» e o colectivismo bolcheviques, construídos durante os anos da luta contra o czarismo e da guerra civil que se seguiu a 1917, se transformaram em rígida norma de vida aplicada ao conjunto da sociedade. Funcionando também como um paradigma que ecoou, ao longo do século XX e à escala planetária, na gestão de outras experiências e na organização interna de praticamente todos os partidos e movimentos de matriz marxista-leninista. Não se trata de um estudo de natureza analítica, mas sim de um repositório de experiências pessoais que se lê com a mesma voracidade, a mesma tensão, a mesma dor e o mesmo prazer com os quais habitualmente acompanhamos um grande épico.

                            História, Memória

                            Maremoto

                            Franco e Millán-Astray

                            Na crónica de hoje da Babelia, Antonio Muñoz Molina evoca as excursões provincianas a Madrid que sempre reservavam um dia para visitar o Escorial e o Vale dos Caídos. Lembra que fez essa peregrinação quando tinha 14 anos, ido do sul andaluz na companhia dos avós, comentando que, à excepção dos franquistas exaltados, então as pessoas já só cumpriam o ritual «porque era o que todos faziam quando iam a Madrid, e porque uma parte da vida consistia misteriosamente em cansar-se calcorreando espaços monumentais que pertenciam ao vago mundo do histórico». Muitos portugueses de passagem por terras de Castela faziam o mesmo – não sei se ainda o fazem – e, sim, eu fui também um deles. Mantenho na memória a percepção que tive daqueles espaços e as impressões que troquei, porque já tinha idade para isso, com outros romeiros portugueses, partilhando a convicção de que aquela monstruosidade arquitectónica separava com clareza a brutalidade asfixiante da monarquia filipina e do franquismo da mesquinhez sórdida do salazarismo, sem rasgo para erguer um santuário ao seu próprio destino. Por isso os nossos vizinhos podem perpetuar naquelas horríveis proclamações em pedra, pedagogicamente, a memória de um passado de ódio e de força bruta do qual a democracia os libertou. E por isso elas devem ser preservadas. No que nos diz respeito, quase nada temos para convencer as gerações mais recentes de que o «salazarismo real» existiu e que podemos tocá-lo com as mãos para garantir que existiu mesmo. Se não contarmos, claro, com as paredes de reboco da Capelinha das Aparições ou do Portugal dos Pequenitos, já que até as prisões do regime permanecem esquecidas e maltratadas. É bem mais difícil garantir que o demónio passou por aqui se dele não pudermos exibir a pata cascuda ou os pontiagudos cornos.

                              Apontamentos, História, Memória, Olhares

                              Da «pequena forma de dizer não»

                              Starostin

                              Os jornais desportivos já quase não falam dos quatro irmãos Starostin. Afinal Nikolai, o mais velho dos quatro, morreu há já década e meia, aos 96, encerrando definitivamente um ciclo de glória, perseguição e resgate que durou quase meio século. Em conjunto com Aleksandr, Andrey e Pyotr, constituíra, na década de 1930, o núcleo motor da equipa de futebol do Spartak de Moscovo. Os «irmãos Starostin» foram por esses anos terríveis – os do pior período das purgas estalinistas e das grandes fomes – os mais populares jogadores da União Soviética, responsáveis pelo futebol tecnicista, ao «estilo europeu», do Spartak de Moscovo. Os seus êxitos rapidamente incomodaram o regime, que apoiava as outras duas grandes equipas da capital, o CSKA, clube do exército, e o Dynamo, do NKVD/KGB, ambos partidários de um jogo mais atlético, mas não o Spartak. Os Starostin acabaram por ser acusados de «vedetismo» e, a dada altura, indiciados por integrarem uma pseudo-conspiração destinada a assassinar José Estaline.

                              A enorme popularidade de que dispunham salvou-os do pelotão de fuzilamento – a acusação foi convertida numa outra, menos grave – mas não de passarem dez anos em campos do Gulag, onde «terminaram a carreira» jogando futebol em equipas de prisioneiros. Alguns testemunhos referem que para a sua desgraça não terá contribuído pouco uma derrota humilhante um dia imposta pelo Spartak ao Dynamo, numa altura em que neste actuava um jovem de fugaz carreira desportiva de nome Lavrenti Beria, nem mais nem menos do que o futuro «comissário dos assuntos internos», o chefe da polícia politica. Nikolai e os irmãos, bem como outros responsáveis, jogadores e adeptos do Spartak envolvidos na mesma purga, apenas foram definitivamente reabilitados, alguns deles a título póstumo, na época de Kruchtchev. Toda a história, muito útil para perceber uma «pequena forma de dizer não» conservada como instrumento de resistência na era de Estaline, é-nos contada em Spartak Moscow. A History of the People’s Team in the Workers’ State, de Robert Edelman. A Cornell University Press publicou-o em 2009.

                                História, Memória

                                Górecki

                                Acaba de morrer na sua cidade natal de Katowice o polaco Henryk Górecki (1933-2010). Um dos compositores contemporâneos – navegando ao longo da vida entre o minimalismo e um certo neo-romantismo – que me são claramente mais queridos. Relembro-o aqui no quase popular andamento «Lento e Largo Tranquillisimo» da Sinfonia No. 3. A «Sinfonia das Canções Tristes» concebida como uma homenagem sentida às vítimas do Holocausto.

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                                  Memória, Música

                                  Momento M

                                  Aconteceu há 21 anos. Eram 18 horas e 53 minutos de 9 de Novembro de 1989. Enquanto manifestações populares colossais exigiam nas ruas de Berlim-Leste, de Leipzig e de outras cidades o fim dos limites impostos ao trânsito dos cidadãos para fora da antiga República Democrática Alemã, um membro do governo de Egon Krenz, o efémero e medíocre sucessor de Erich Honecker, precipitou-se ao ser pressionado pelos jornalistas e deu como aprovado, «com efeitos imediatos», um documento ainda em preparação que autorizava formalmente a passagem de pessoas comuns entre os dois lados do Muro. O processo que se seguiu foi rápido, imparável e felizmente irreversível. Nessa altura Frau Angela Merkel não passava de uma funcionária semi-obscura que trabalhava como química numa instituição científica leste-alemã.

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                                    História, Memória