Arquivo de Categorias: Memória

Do estado a que isto chegou

GAC

Fui dos que trautearam, cantarolaram, tamborilaram, os álbuns do GAC (Grupo de Acção Cultural). Em 1975-1976, na época da primitiva edição dos dois primeiros álbuns, com José Mário Branco a adestrar os arranjos – e já como GAC-Vozes na Luta –, a sua música manteve-se como uma excepção de elevada qualidade no que respeitava às harmonias, à escolha das vozes e dos músicos, ao trabalho de estúdio, sobretudo se comparada com uma «canção de intervenção» que quase sempre privilegiava a «mensagem» e a redução jdanovista do gosto do público destinatário ao menor denominador comum. Foi popular, sim, mas sem se tornar populista ou armar-se em popularucha. Os dois últimos álbuns perderam alguma da frescura inicial, mas guardaram ainda boa parte do cuidado com o feitio e com a intenção militante. A reedição em CD da discografia do grupo, que acaba de acontecer, vem comprovar essa originalidade e essa pujança. Significativo também é que as letras – laboriosamente panfletárias e inequivocamente anticapitalistas – pouco envelheceram. O que é um bom indicador do estado a que isto chegou. E de que a cantiga ainda pode ser uma arma.

    Atualidade, Memória, Música

    Um livro a anotar

    Espanhóis no Gulag
    Agustín Llona, Francisco Llopis e Juan Bote. Um marinheiro, um piloto
    e um professor dos ‘niños de la guerra’.
    Os três acabaram na Sibéria.

    Comemorar a liberdade – não apenas a nossa, mas «a liberdade» como fundamento da existência colectiva e da igualdade – é também redimir o passado daqueles que a viram negada. É contornar a conspiração colectiva do silêncio. Um fragmento da crónica semanal de Antonio Muñoz Molina.

    Gracias a la mediación de William Chislett acabo de descubrir un yacimiento de memoria del que no tenía ninguna noticia, que se ha abierto delante de mí como un país entero hecho de negrura: sabemos bastante de las vidas de los republicanos españoles en los campos de concentración alemanes, pero yo no tenía ni idea sobre los que acabaron en los campos soviéticos. Chislett, buscador de libros sin sosiego, me ha dado noticia de un trabajo de investigación doctoral de Luiza Iordache, Republicanos españoles en el Gulag (1939-1956), publicado hace dos años por el Institut de Ciències Politiques i Socials de Barcelona. La historia despierta más angustia al comprender el poco caso que se les ha hecho a los testigos y la rapidez con la que uno por uno se estarán extinguiendo. Jóvenes aviadores republicanos que a principios de abril de 1939 estaban terminando sus cursos de pilotos en la URSS y ya no pudieron salir del país; marineros de buques mercantes que habían llevado armas y suministros a la España republicana y se quedaron atrapados en el puerto de Odessa al final de la guerra; niños en edad escolar enviados a la URSS, extraviados en la guerra y la miseria, condenados a trabajos forzados en los campos más crueles de más allá del Círculo Polar Ártico; militantes comunistas que al llegar a lo que habían imaginado como un gran paraíso se encontraron en el interior de una cárcel. Querer marcharse de la URSS ya era de antemano un delito: entre los documentos pavorosos que ha rescatado Luiza Iordache están las pruebas de la saña inquisitorial con que los dirigentes del Partido Comunista Español en Moscú persiguieron a los compatriotas o ex camaradas que se atrevieron a manifestar alguna forma de disidencia. El libro de Iordache está lleno de listas de nombres que yo no había escuchado nunca, de libros de memorias publicados o inéditos de los que yo no tenía noticia. Una vez que el hilo se corta ya no hay manera de repararlo. Algunas formas extremas de olvido no serían posibles sin una especie de conspiración colectiva.

    Luiza Iordache. Republicanos españoles en el Gulag (1939-1956). Institut de Ciències Politiques i Socials. Barcelona, 2007. 142 páginas.

      História, Memória

      A vida não faz pausa

      O cravo

      Relembro os «velhos republicanos» da época em que ainda havia «velhos republicanos». Apareciam frágeis mas aprumados, com os seus dignos cabelos brancos, as medalhas limpas a Solarine e as coroas de flores, e lá rumavam a cada 5 de Outubro até ao lugar onde descansavam os antigos companheiros. Sabíamos todos que eram os sobreviventes de um tempo que se esfumara no tempo. Evocavam um dia distante, perdido algures nas névoas de uma memória em declive, ao qual apenas nos ligavam os laços simbólicos oferecidos pelos manuais escolares ou as colunas de efemérides. Mas nada mais. O «herói da Rotunda» era já uma fotografia desbotada, José Relvas e os seus apenas um grupo de cavalheiros ligeiramente descompostos habitando um filme de cinema mudo.

      Os portugueses com menos de 50 anos olham agora da mesma forma quase sempre desatenta as imagens a preto e branco da multidão no Largo do Carmo, a tensão no rosto do capitão Maia, a tropa na rua com cravo vermelho na boca da G3. Não pode deixar de ser assim pois aquele foi um tempo, outro tempo, ao qual muitos dos portugueses de agora chegaram apenas pelas evocações televisivas, pelos insípidos livros escolares, os discursos hirtos num Parlamento florido, a narrativa nostálgica de aulas repetitivas. Algumas vezes pela inteligência, mas jamais pela experiência. É assim porque as Revoluções com maiúscula só são Revoluções com maiúscula por não poderem viver-se todos os dias. Para os filhos e os netos de Abril tudo começou a 26 com o conta-quilómetros a zeros, e por isso para poucos deles há um «Sempre!». É assim e não há que ter pena. Há que olhar para o que está para vir e o resto é memória a guardar. Quente para alguns – sou um deles, resistente e militar em Abril se querem saber –, mas para cada vez menos porque a vida não faz pausa.

      Publicado também no Vias de Facto

        Atualidade, História, Memória

        A rezar, a cantar e a dançar

        Monsanto

        Entrei casualmente numa página do Observatório do Algarve, já com alguns meses, que contém uma notícia intitulada «Alte revê-se na “Aldeia Mais Portuguesa de Portugal”». Não sei de que forma a pessoa que falou sobre o documentário ali anunciado abordou o concurso organizado em 1938 pelo Secretariado da Propaganda Nacional do Estado Novo. Admito que o possa ter feito de uma forma correcta e contextualizada. Mas sabendo como grande parte das autarquias trata o seu passado, desconfio sempre de certas evocações locais. Demasiadas vezes, a demanda identitária, a «procura das raízes» que os seus responsáveis tentam levar a cabo, traduz-se na recuperação acrítica e anacrónica de eventos, figuras ou práticas desse passado. Apresentados como fragmentos puros da tradição, ou vectores patrimoniais, mais não são muitas das vezes, embora sob nova roupagem, do que uma forma de revivalismo ou de recuperação de valores que seria suposto a mudança histórica ter deixado para trás.

        Não se trata aqui de negar uma parte da História – todo o passado merece ser olhado e compreendido – mas, no caso da «Aldeia Mais Portuguesa de Portugal», tem-se de facto assistido, tantos anos depois, ao branqueamento de um episódio marcante na reprodução dos ideais cívicos do Estado Novo. Foi António Ferro, o director do SPN, quem, referindo-se já em 1940 a Monsanto, a aldeia vencedora do concurso – e que por isso arrebatou um simbólico Galo de Prata –, falará da sua «imagem empolgante da nossa pobreza honrada e limpa, que não inveja nem quer a riqueza de ninguém, selo da pátria espiritual que fomos e queremos ser». Povoada por um conjunto de almas que «vive contente a rezar, a dançar e a cantar, dando lições de optimismo às cidades fatigadas». Melhor retrato da configuração salazarista do «verdadeiro Portugal» não há.

          Atualidade, História, Memória

          Terra prometida

          Angola

          Existe uma «falha de memória» no que respeita à vida dos portugueses que retornaram à «Metrópole» – muitos deles pisando pela primeira vez solo europeu – nos anos quentes da descolonização. Uma falha de memória processada em duas direcções: de um lado, esse passado foi praticamente apagado pela maioria dos «portugueses de Portugal», envolvidos na culpa e no remorso da dominação colonial e desejosos de se penitenciarem exorcizando-a; do outro, os próprios ex-colonos foram silenciando o que tinham vivido, esperando talvez, por essa forma, obter uma mais rápida adaptação à sua nova vida europeia. A própria historiografia participou deste processo, aplicando-se a partir de dada altura em conhecer a realidade da guerra ou a emergência das novas nações, mas omitindo uma parte importante da vida «branca» que ficara para trás. Quanto aos ex-colonos, o seu emudecimento contribuiu, imperceptivelmente, para a construção de mitos e fábulas a propósito da experiência passada, sublinhando as boas recordações de uma «vida maravilhosa» que se perdera, mas geralmente abafando as más.

          Nos últimos tempos, porém, um certo revivalismo colonial apoderou-se da edição nacional. É verdade que a visibilidade pública dessa romagem de saudade permanece contida, mas o número de publicações – álbuns de imagens ou musicais, livros de memórias, romances de temática colonial – denuncia a existência de um público interessado e, pelo menos na aparência, ainda vasto. Imagino muitas dessas pessoas, no resguardo da sua sala de estar, folheando noite afora estes livros com emoção, algumas lágrimas ocasionais, e, não poucas vezes, também um pouco de azedume. Uma destas obras, que acabo de comprar já em 2ª edição, é Angola, Terra Prometida, subintitulada «A vida que os portugueses deixaram», da autoria da jornalista freelancer Ana Sofia Fonseca e publicada pela Esfera dos Livros.

          Sirvo-me do texto da contracapa para um panorama que me parece correcto: «Através de testemunhos de uma pesquisa exaustiva [a autora] leva-nos aos bairros de Luanda, ao mato e às praias. Ao dia-a-dia dos portugueses, aos seus usos e costumes. Em suma redesenha os contornos de uma vida que já só existe nas recordações de quem a viveu.» Entrevistas, cartas, diários, fotografias, jornais, cartazes, postais, servem então para trazer à vida os banhos de mar quente, a Cuca gelada, as lagostas, o cinema ao ar livre, «o cheiro a terra encarnada, os bailes, as grandes festas». E também as caçadas, os amores, o sexo, as velhas amizades, «os melhores anos da vida de muitos portugueses». A realidade e a imaginação de um mundo-outro que de facto existiu, embora assente sobre um colchão de espuma ou rodeado por uma campânula de vidro que desvanecia ou distorcia a restante paisagem, cego para os fumos de guerra que lhe deveriam toldar o horizonte.

          Ana Sofia Fonseca – que se serve aqui, por vezes, de uma linguagem pitoresca e aparentemente démodé, contaminada sem dúvida pela fala das pessoas com as quais dialogou e o vocabulário dos documentos dos quais se serviu – chama-lhe um livro «de memórias, histórias e emoções». É-o, sem sombra de dúvida, como é também um livro nostálgico. Mas a nostalgia não é um mal em si, e, como acontece neste caso, serve muitas vezes não só para ajudar a encontrar rincões de vida que de outra forma se perderiam para sempre, como para observar, a partir do presente e com diferentes olhos, aquilo que, na altura, a premência do quotidiano ou a magia da «vida boa» impediram de perceber ou remeteram para um plano distante. Falo, naturalmente, da guerra colonial e da experiência diária dos outros angolanos. Geralmente os de pele menos clara, sem tempo e dinheiro para habitarem esse «cenário perfeito para uma vida feita de pequenos e inesquecíveis prazeres». Um cenário no qual, sem dúvida pela interferência de um esforço de imparcialidade da autora, ainda assim vão de vez em quando assomando.

          Ana Sofia Fonseca, Angola, Terra Prometida. A vida que os portugueses deixaram. A Esfera dos Livros, 2009. 328 págs.

            História, Memória, Olhares

            Beatlemania

            The Beatles

            «Attraverso la loro musica quei quattro ragazzi di Liverpool, splendidi e imperfetti, sono stati capaci di leggere e di esprimere i segni di un’epoca che a tratti hanno persino indirizzato, imprimendovi un marchio indelebile.»

            Lembro-me bastante bem. Há quarenta e quatro anos, as minhas pré-borbulhas regurgitavam de emoção porque John Lennon proclamara serem os Beatles mais famosos do que Jesus Cristo. Não sabia para que servia uma afirmação daquelas, mas soava-me bem: queria dizer que «nós, os jovens» estávamos a caminho de tomar o mundo, e que o Nazareno escanzelado e barbudo, já na altura com uns provectos 1966 anos, estava decididamente «velho» e deveria aposentar-se. Claro que a Igreja Católica Apostólica Romana não reagiu de forma tão entusiástica e resolveu tratar mal as Quatro Cabeleiras do Após-Calipso. A partir dessa altura, quem assobiasse «Strawberry Fields Forever» candidatava-se a viver até à eternidade ao lado de Lúcifer, com os pés nus bem assentes num tapete de brasas.

            Pois agora, tanto tempo depois, e com dois dos Beatles já arrumados e os outros de mala aviada, L’Osservatore Romano decide prestar tributo às suas «belas melodias», concedendo o seu perdão aos antigos guedelhudos. Procura mostrar-se convincente: «sim, eles drogavam-se […] e tiveram vidas dissolutas», mas agora «ao ouvir as suas músicas, tudo isso parece distante e sem importância». A Igreja católica passou assim a amar os Fab Four e as «jóias preciosas» que são as suas músicas. E já quase podemos imaginar o Papa, de iPod e earphones nas Santas Orelhas, a bater o pé com o seu sapatinho vermelho Prada enquanto cantarola «Yesterday». Não sei porquê, este aggiornamento 2.0 soa-me a farisaísmo. Sim, porque a melhor forma de Roma se penitenciar por mais esse «erro de percepção» não é, de novo, batendo no peito em acto de contrição. É, ou deveria ser, evitando repetir a falta de capacidade para perceber na devida altura, de forma aberta e tolerante, os anseios, as expectativas e os problemas do mundo actual. E desses continua a Igreja católica, frequentes vezes, a procurar esquivar-se. Como o Diabo da cruz.

              Apontamentos, Devaneios, Memória, Música

              Revolução, esperança e nostalgia

              Poucos temas são tão delicados para a consciência histórica partilhada pelas esquerdas quanto o é Cuba e a sua experiência após o 1º de janeiro de 1959. Sublinho a palavra escolhida: «esquerdas» e não «esquerda», uma vez que para regressarmos ao ponto em que era possível, no mundo capitalista, uma proximidade de expectativas e de metas entre as correntes divergentes que se reclamavam do socialismo – e que se reivindicavam da esquerda como sua «casa comum» – será preciso recuarmos ao tempo em que, há mais meio século, naquela noite de São Valentim, os guerrilheiros barbudos da Sierra Maestra entraram em Havana para expulsar o ditador Batista e os seus patronos norte-americanos. Naquela altura, é bom relembrá-lo, a Revolución cubana, apesar da cuidadosa desconfiança inaugural das rígidas chefias da União Soviética e dos partidos comunistas que as seguiam, fazia o pleno da simpatia e das esperanças do que então se designava «a humanidade progressista».

              Criava-se então uma «lenda de Cuba», grata desde logo a um grande número de intelectuais da esquerda ocidental, e que foi capaz de seduzir, como experiência onde era possível projectar todas as expectativas de igualdade, boa parte da juventude do mundo inteiro. A guerra de guerrilha que se seguiu ao acidentado desembarque do Granma e que conduzira em pouco tempo à derrota de um exército e de uma força aérea apoiados pelo governo dos Estados Unidos, parecia, vista de fora, algo de miraculoso. E o facto da pequena ilha açucareira, situada a apenas noventa milhas marítimas da Florida, se haver tornado o primeiro «Estado socialista» do hemisfério ocidental, não fez senão crescer essa admiração. Em The Fellow-Travellers. Intellectual Friends of Communism, David Caute observou que a revolução cubana se tornara à época «a Revolução», funcionando como um exemplo e um modelo, reforçado, sobretudo entre gerações que acabavam de despertar para a experiência política, pelo facto de parecer desenvolver-se «sem cedências», ultrapassando, assim escrevia Simone de Beauvoir, «as noções do possível e do impossível». E, aspeto não menos importante, sem copiar o figurino de qualquer dos sistemas de poder então conhecidos.

              O controlo de um Estado independente por homens e mulheres sem rugas ou complexos, belos e de porte informal, romântico, que utilizavam positivamente e sem limites palavras proscritas ou depreciadas em quase todas as partes – «revolução», «rebeldia», «anti-imperialismo», «igualdade», «coletivização» ou «alfabetização» – e atuavam centradas no presente, potenciou essa simpatia que tocou intelectuais e activistas, jovens ou maduros, tão diferentes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Régis Debray, Susan Sontag ou Hans Magnus Enzensberger. O desembarque invasor pró-americano de 1961, na Praia Girón/Baía dos Porcos, o apoio político e militar prestado pelas novas autoridades cubanas a diversos movimentos de guerrilha espalhados pelo mundo, o empenho na alfabetização maciça da população da ilha, o esforço de colectivização da maior parte da propriedade fundiária, uma indiscutível ampliação dos serviços prestados aos trabalhadores nos domínios da saúde e da educação, fariam com que a auréola de exemplaridade do regime cubano não parasse de aumentar, sendo ampliada ainda com a atividade carismática de figuras desprovidas dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas conhecidos, como eram a de Fidel, a de Camilo Cienfuegos, ou a do singular «Che» Guevara. Os textos de Régis Debray (Révolution dans la Révolution, 1967) e de K. S. Carol (Guérilleros au Pouvoir, de 1970), na sua época muito lidos e traduzidos em diversas línguas, contribuíram, e bastante, para ampliar esse processo de mitificação do significado e da missão daquela particular estirpe de «revolucionários em movimento».

              Uma imagem poderosa da ilha de José Martí como, nas palavras de François Hourmant, um «cocktail de rum branco e de aparente euforia geral», ou como localização da utopia terrena possível, onde até o trabalho possuía uma dimensão festiva, fixava-se pois em numerosos ambientes, produzindo um «tropismo cubano» com um vigor tal que ainda hoje perdura na lembrança de bastantes pessoas da geração que recebeu o seu primeiro impacto, dando forma a algumas das suas actuais convicções, ou fazendo com que outras se continuem a mostrar incapazes de criticar abertamente as autoridades de Havana, ainda que muitas das iniciativas por estas tomadas nas últimas décadas já lhes não pareçam sedutoras ou sequer justificavéis. Como escreveu o ensaísta e crítico de arte cubano Iván de la Nuez em Fantasia Vermelha, para um certo número de pessoas «Cuba não é apenas Cuba, é qualquer coisa mais», funcionando como «um pretexto para criticar um mundo ordenado sob o signo do mercado, e, por extensão, os males do capitalismo», e mostrando ao mesmo tempo que aquilo que a maior parte dos cidadãos do planeta entende como democracia representativa é para algumas delas algo de dispensável. Para estas, a frase com a qual Sartre encerrou a sua visita a Cuba – «os cubanos devem triunfar ou perdemos tudo, até a esperança» – faz ainda todo o sentido. A esperança associada à nostalgia é, de facto, uma arma poderosa. 

              Rui Bebiano

              Dois outros posts sobre o tema que fui escrevendo e permanecem razoavelmente actuais: A imensa tristeza (já de 2003) e  Relógios cubanos (de 2009).

                Atualidade, História, Memória

                O passado existiu?

                Passado

                No início do ensaio «Um dois, esquerda ou direita – o meu país», de 1940, integrado na antologia Livros & Cigarros agora editada pela Antígona, George Orwell escreveu o seguinte:

                «Ao contrário do que muita gente julga, o passado não era mais fértil em acontecimentos do que o pre­sente. Se assim parece, é porque, ao recordarmos os tempos idos, amalgamamos coisas que sucederam com vários anos de intervalo, e porque são bem escassas as memórias que nos chegam genuinamente virgens. É em grande medida devido aos livros, filmes e remi­niscências vindas a lume entretanto que prevalece agora a ideia de que a guerra de 1914-18 possuiu um carácter tremendo, épico, que falta à guerra actual.»

                De facto, a memória que reconhecemos como construída é frequentes vezes mais forte, e aparentemente mais sólida, do que os vestígios materiais que nos chegam do passado. Aquilo que me atrai é ver como essa memória construída ganha força, se autonomiza, e produz em nós certezas e percepções de experiências que jamais vivemos. Para o historiador profissional essa é uma dificuldade: a imaginação tolda a consciência e inventa ilusões, obrigando a um esforço suplementar, muitas vezes inglório, de busca da objectividade possível. Já para o cidadão comum essa dificuldade deixa de o ser, tornando-se até um factor adicional de enriquecimento do imaginário. O ideal, no limite, será podermos cruzar as duas perspectivas e perceber que a História não é apenas «o que foi» mas de igual forma aquilo que outros nos disseram que foi e nós próprios fomos construindo e interiorizando, sujeitos a múltiplas influências e leituras, como representação.

                «Mas caso tenhamos vivido durante essa guerra e sejamos capazes de separar as nossas memórias genuínas dos acréscimos posteriores, verificamos que não eram habitualmente os acontecimentos grandio­sos que nos faziam vibrar. Não creio que a Batalha do Marne, por exemplo, se tenha revestido, para o público em geral, da natureza melodramática que mais tarde lhe foi conferida. Nem sequer me recordo de ouvir a expressão ‘Batalha do Marne’ até se terem passado vários anos.»

                O trabalho de construção ficcionada do passado produz também esse efeito. Quanto mais nos distanciamos temporalmente dos acontecimentos, mais deles emergem os grandes momentos, os grandes movimentos, os campos magnéticos. Mas quanto mais os estudamos, quanto melhor lhes observamos os detalhes, os ampliamos, mais deles se destacam os pormenores irrepetíveis, da vida comum, de todos os dias. Sem filtros ou grandes explicações. A «verdade» está assim em todo o lado: no passado e nos sucessivos presentes que o foram remodelando. Está em toda a parte e ao mesmo tempo em parte alguma. Por isso jamais tem fim o trabalho do historiador e por isso a História é sempre parcialidade e incerteza. O que só enriquece o seu poder de questionamento e de atracção.

                  História, Memória

                  Un jour, un jour [na morte de Jean Ferrat]

                  Jean Ferrat

                  PLAY Un jour, un jour

                  No inverno de 1971-1972 (ou seria no seguinte?) fui algumas vezes ao Porto em missão de risco. O perigo era real (a prisão, talvez a tortura – não, não era pouco), mas apesar da possibilidade a convicção era mais forte. O objectivo era trabalhar na ligação orgânica com estudantes da mesma área e os encontros obrigavam-me por vezes a passar a noite na cidade. Atravessei algumas delas, enregelado e enroscado num cobertor nauseabundo, deitado sobre um velho sofá que jazia numa das duas únicas divisões da pró-Associação de Estudantes de Economia (ou foi antes no TUP, ó querida memória?). Para mim vinha algo de especial e de fantástico com aquelas noites. Uma certa sensação de façanha e de aventura, admito, já que o edifício fazia paredes-meias com um quartel da temida GNR. Tratava-se pois, praticamente, de dormir com o inimigo, concebendo, ao mesmo tempo, um poder sobre ele que apenas podia advir da dose de «razão histórica» da qual me supunha investido. Mas existia também, naquelas madrugadas, um momento sublime de exaltação para o combate antifascista: um enorme gravador de bobinas no qual encontrei, pela primeira vez, as canções combatentes e sentimentais de Jean Ferrat (1930-2010). Foi com a sua voz preenchendo a escuridão que adormeci algumas vezes, imaginando um país livre, projectando um mundo melhor e sem dúvida feliz. Não seria bem este onde agora habito, mas enfim, vocês sabem, un jour, un jour… «un jour d’épaule nue où les gens s’aimeront / un jour comme un oiseau sur la plus haute branche». Fico a dever alguma coisa, como perceberam, a Jean Tenenbaum Ferrat.

                  Ler também o que escreve e faz ouvir Joana Lopes.

                    Memória, Música, Olhares

                    O Dr. No lá do sítio

                    Paisley

                    O reverendo Ian Paisley, de 83 anos, anunciou ontem que vai deixar o lugar de deputado britânico, ocupado ao longo de quatro décadas, após as legislativas de Maio. Foi membro da Força de Voluntários do Ulster, o mais antigo grupo paramilitar protestante da Irlanda do Norte. Fundou também a Igreja Presbiteriana Livre do Ulster, em 1951, tendo criado o Partido Unionista Democrático duas décadas depois. Termina assim, ao que parece, a carreira política de um homem que, pelas suas posições irremissivelmente violentas e intransigentes a favor do orangismo mais extremo ajudou a inscrever o nacionalismo irlandês «católico» na consciência e na agenda da esquerda ocidental. Pelo menos comigo resultou, lá pelos idos de setenta.

                      Atualidade, História, Memória

                      Toda a dissidência será castigada

                      Conta-me coisas de Cuba

                      O historiador e ensaísta cubano Rafael Rojas publicou no México, onde vive e trabalha por não poder retornar à sua ilha, Tumbas Sin Sosiego, um livro sobre a experiência da relação revolução-dissidência entre os intelectuais cubanos do exílio. Aí escreve a dada altura que a religiosidade política da ideia cubana de Revolução «não radica tanto na escatologia do marxismo-leninismo quanto na mitologia do nacionalismo revolucionário», o qual possui, como se sabe, um grande lastro histórico em toda a América Latina. É em parte por esta razão que todo o dissidente é equiparado a um traidor, traindo não propriamente a classe operária, que aliás mal existe em Cuba, mas sim «a Pátria». É por isso, inevitavelmente, um «mercenário» a soldo do inimigo externo, cujo «crime» – divergir e expressar a sua divergência, pedir uma ordem política que aceite a expressão de alternativas – é da ordem do delito comum, um a vez que atenta contra a unidade que presumivelmente garante a independência face ao inimigo imperialista.

                      Este é um dos grandes paradoxos do regime cubano: sustenta, desde 1959, um combate sem tréguas contra os Estados Unidos da América – contra aquilo que eles representavam nos primeiros tempos da Revolução, e depois contra o injusto e desnecessário bloqueio que têm mantido – mas precisa desse combate para justificar a repressão contra os «desordeiros sabotadores». Assim se compreende que as autoridades castristas tenham agora deixado morrer Orlando Zapata Tamayo, um canalizador de origem humilde, membro da organização de defesa dos direitos civis Directório Democrático, preso em 2003 quando foi apanhado numa vaga repressiva contra a oposição em que dezenas de pessoas foram acusadas de «conspirar com os Estados Unidos para derrubar o regime», sendo então quase todas condenadas a penas pesadíssimas, que chegaram aos 28 anos de prisão. A sua morte é «lamentável», como o próprio Raúl Castro acaba de reconhecer para estrangeiro ver, mas para a clique gerontocrática que governa a ilha ela é compreensível e, de certa forma, necessária. No final do excelente artigo disponível online («2009: El año en que se desvaneció el raulismo»), é ainda Rafael Rojas quem recorda:

                      «Esses anciãos sempre viveram em guerra, real ou imaginária, e as suas mentes acomodaram-se à lógica do confronto. Como guerreiros que são, compreenderam que quaisquer reformas, ainda que limitadas e controláveis, serão a porta de entrada para uma mudança maior que não querem viver. Qualquer decisão que tomem em política interna ou externa, nos próximos anos, reger-se-á por esse cálculo biológico: o tempo que lhes resta de vida deve ser invertido na perpetuação do sistema político, não na sua transformação, problema que diz respeito apenas aos jovens. É a isso que chamam “vitória”: morrer sem mudar.»

                      O mais difícil de entender é a existência, esparsa mas visível, fora de Cuba, de alguns rebentos serôdios seduzidos por uma Sierra Maestra de fantasia. Que medem a sua têmpera revolucionária em função da fidelidade a um modelo histórico que permanece «firme», inalterado, e que não foi democraticamente referendado em mais de meio século de regime. Que bradam sem hesitações «Patria o Muerte. Venceremos!». Para defenderem a sua quimérica e envelhecida Revolución, aceitam, justificam e fazem eco de todas as afirmações do governo de Havana contra os supostos traidores. Cuja prova de traição é facílima de identificar: não acreditam na perfectibilidade do regime, consideram a hipótese de o submeter à lógica «burguesa» e «reaccionária» do voto, e, calcule-se a suprema insolência, esforçam-se, com risco da sua liberdade, do seu emprego e até da própria vida, por declará-lo publicamente.

                      Três posts sobre o tema que publiquei num passado mais ou menos recente: A imensa tristeza (já de 2003), Do Caddilac ao Trabant e Relógios cubanos – 50 anos depois.

                        Atualidade, Democracia, História, Memória

                        «A Satanás, atentamente, as suas vítimas»

                        Bulgakov e Zamiatine

                        Acaba de sair em Espanha uma colectânea de cartas dirigidas a Estaline pelos escritores Mikhail Bulgakov (1891-1940) e Evgueni Zamiatine (1884-1937). Resultando de investigações feitas nos arquivos da Lubianka, a sede moscovita do KGB, após o fim da URSS, elas trazem de volta o terror puro de quem vivia diariamente entre o silêncio imposto e a possibilidade da prisão ou do fuzilamento, o destino definitivo de tantos outros. Falam pois da morte em vida. As vítimas omitem aqui a pobreza, o frio, as privações que lhe foram destinadas pelo facto de não serem autores alinhados com a política e a estética do regime, e apelam tão-somente a que lhes seja concedida a possibilidade de sobreviverem como autores e como pessoas. Zamiatine conseguiria ir morrer em Paris. O autor de Margarida e o Mestre viveu até ao fim silenciado e na miséria.

                        Nós, a mais conhecida obra de Zamiatine, precursora do Admirável Mundo Novo (1930) de Huxley e de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1948) de Orwell – concluída em 1921 mas cuja primeira edição em russo só pôde sair perto de sessenta anos mais tarde –, abre assim:

                        «Limito-me a transcrever textualmente o que hoje mesmo veio publicado na Gazeta do Estado:

                        Dentro de cento e vinte dias ficará completo o Integral. Aproxima­-se a hora insigne, histórica, em que o primeiro Integral se levantará no espaço cósmico. Há mil anos, os nossos heróicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao domínio do Estado Único. Hoje assistiremos a um feito ainda mais glorioso: a integração, por meio do Integral, feito de vidro, eléctrico, ígneo, da eterna igualização de tu­do o que existe. Ficarão sujeitos ao benéfico jugo da razão todos os seres desconhecidos, os habitantes doutros planetas que porventura vivam ainda no estado selvagem de liberdade. Se acaso não percebem que nós lhes levamos a felicidade matemática e exacta. É nosso dever forçá-los a serem felizes. Mas, antes de puxarmos das armas, tenta­remos recorrer à palavra.

                        Em nome do Benfeitor, todos os números do Estado Único ficam notificados do seguinte:

                        Todos os que se sentirem capacitados deverão compor tratados, poemas, odes e outras composições sobre a beleza e a grandeza do Estado Único.

                        Eles constituirão o primeiro carregamento do Integral.

                        E viva o Estado Único. Vivam os números. Viva o Benfeitor!

                        Escrevo estas coisas e sinto o meu rosto a arder. Sim… há que levar a cabo a integração, proceder à grandiosa e infinita igualização de tudo o que existe. Sim, há que distender a curva selvagem, redu­zi-la a uma tangente… a uma assímptota… a uma linha recta! E isso porque a linha do Estado Único é uma linha recta. A grande, a divinal. A exacta, a sábia linha recta – a mais sábia de todas as linhas!»

                        Trad. a partir do inglês por Manuel João Gomes (Edições Antígona, 1990)

                          História, Memória

                          Orwell e os seus acusadores

                          Orwell em Huesca
                          Em Espanha, na frente de Huesca (Março de 1937)

                          A memória pesa, mesmo quando ela é a memória da mentira e da calúnia. Como aquela, ecoada desde há anos, que refere um George Orwell «traidor», «bufo», cujo delito – a suposta denúncia ao governo britânico de 38 compagnons de route comunistas – foi forjado pelos neo-estalinistas, seus acusadores públicos, na tentativa de desacreditar um dos intelectuais europeus que, no campo da esquerda, mais cedo e de forma pública divergiu das posições do Kremlin e do seu sistema de terrorismo de Estado. Mais de setenta anos depois, esta gente continua a replicar o modelo insidioso e bárbaro, utilizado nos anos trinta durante os Processos de Moscovo, que manipula, descontextualiza ou fabrica informação com vista a denegrir o acusado e a abatê-lo sem piedade.

                          A verdade, porém, conta-se em poucas palavras. Celia Kirwan, funcionária do Foreign Office trabalhista e cunhada de Arthur Koestler, o autor de O Zero e o Infinito (Darkness at Noon, de 1940), organizou em 1949 em Inglaterra um ciclo de conferências sobre o estalinismo e dirigiu-se a Orwell – na altura internado num sanatório e a dez meses apenas da morte – pedindo-lhe alguns nomes de pessoas que poderiam participar. Este respondeu-lhe com uma lista de figuras que lhe parecia não valer a pena convidar, pois dadas as suas relações com os soviéticos, e a possibilidade de alguns deles serem até agentes seus, jamais aceitariam. Foi esta relação – divulgada em 1982 na biografia do escritor britânico da autoria de Bernard Crick – que os caluniadores passaram a considerar «prova de delação». A perseguição a Orwell, essa vem muito de trás, pelo menos desde os anos da Guerra Civil de Espanha e da escrita de Homage to Catalonia (1938), quando a sua crítica do comunismo soviético e a denúncia militante do terror estalinista começaram, sob influência de algumas das alegações dos anarquistas e dos trotskistas, a ganhar forma. A derradeira gota de água seria a distopia projectada em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949). Este caso da lista apenas serviu de pretexto para desenterrar um velho ódio.

                          | Leituras diferentes aqui e aqui.
                          | Uma abordagem parcial mas útil das posições políticas de Orwell aqui.

                            História, Memória