O passado é agora [8]
E depois do Degelo.
E depois do Degelo.
Evoca-se hoje o Dia Internacional da Memória do Holocausto, celebrando a libertação pelas tropas soviéticas, ocorrida em 27 de Janeiro de 1945, do complexo de campos de Auschwitz-Birkenau. Ao contrário do que se passa com outros acontecimentos que o tempo vai diluindo, as representações do Holocausto têm permanecido activas, ainda que nem sempre pelos melhores motivos. Destaco dois: a desvalorização da shoah devido ao comportamento do Estado de Israel em relação aos direitos políticos do povo palestiniano, e a negação (ou a depreciação) do próprio extermínio em massa dos judeus levado a cabo pelos nazis, imposta por um certo padrão de revisionismo histórico inspirado pela extrema-direita e/ou pelo islamismo radical. São problemas complexos, sobre os quais tem sido muito fácil dizerem-se as maiores barbaridades, que começam quando se julga o passado apressadamente e, em função de certos combates do presente, se tomam as pessoas por estúpidas.
Entretanto pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis. As consequências traumáticas para os próprios deportados são bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos seus descendentes tem permanecido silenciada. Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro (ed. Pedra da Lua) destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos nascidos nos finais da década de 1940, que desafiados pela jornalista Nadine Vasseur aceitaram comentar pela primeira vez a sombra que os acompanhou a vida inteira. Coincidem sem excepção num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de exprimir o sofrimento extremo e solitário dos que as viveram, por outro ela criou nestes uma capacidade para resistir e para sobreviver que os colocou acima das exibidas pela maioria dos humanos, tornando-os pessoas admiráveis mas obrigatoriamente «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que sempre perturbaram muito os seus filhos, que com elas tiveram de conviver desde crianças: a constante descrença («sempre disse ajuda-te a ti próprio, pois o céu não te ajudará»), uma secura imutável («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio sobre o passado («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»). Mas revela-se também numa grande capacidade para enaltecerem «o imenso valor da vida», evitando repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo.
Este livro especial mostra-nos como foram os filhos dos deportados que sobreviveram a transportarem parte substancial do fardo dos pais. Ele dialoga sempre com a singularidade perturbante de cada testemunho, com a dificuldade sentida por cada um dos entrevistados de Nadine Vasseur em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos aflitivos dos pais escutados em noites de pesadelo ou a visão nunca comentada «daquela tatuagem no braço, que sempre lhe conheci». Um livro pequeno mas intenso e comovente, que ajuda a contornar a banalizante «indústria do testemunho» e a combater a revisão negacionista do Holocausto que nos tem enchido os ouvidos. Uma sugestão para este 27 de Janeiro.
Este post retoma em parte um texto que escrevi em 2008.
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Desde que em 2006 entrou em vigor em Espanha a legislação destinada a reprimir o ancestral hábito de fumar, diminuiu o consumo do tabaco mas cresceu o número de fumadores. Em 2009, 31,5% dos nuestros hermanos afirmou fumar, no mínimo, de forma moderada, quando três anos antes a percentagem era de 29,5%. A diferença seria insignificante se não derrotasse os objectivos «profilácticos» da lei e não servisse agora de justificação para impor regras ainda mais severas e restritivas. A verdade é que ao longo destes anos elas se mantiveram razoavelmente suaves e de aplicação bem mais flexível do que aconteceu em Portugal, como qualquer cidadão pode constatar, entre três passas e outras tantas baforadas, de cada vez que cruze a linha de fronteira e avance até à distância de um tiro de bacamarte. Porém, se tudo for agora uniformizado pelo diapasão do antitabagismo furioso, deixaremos de distinguir o «mau vento» que a nicotina insinua e sofrerá rude golpe a castiça defesa da identidade dos nossos ares. Sejamos claros: lá no fundo, os defensores espanhóis de uma lei mais severa são iberistas disfarçados ou então ressabiados de 1640. Por isso, se os de Madrid aprovarem as suas normas mais limitativas, apenas nos restará, em nome da pátria dos Pereiras, dos Albuquerques, dos Mouzinhos e dos Coutinhos, um voluntarioso regresso ao uso liberal do Provisórios e do Três Vintes.
[os erros do francês são autênticos]
Durante anos, a guerra (a «Colonial», a «do Ultramar») permaneceu tema intocável para a maioria dos portugueses que nela participaram como combatentes. Enquanto durou, os militares não podia comentá-la sem correrem riscos. Depois, morto o império, começou a circular que todos a tinham travado contra a sua consciência. Parecia que todos haviam sido anticolonialistas, preferindo fazer-se de conta que o passado colonial estava morto e enterrado. Quem tentava falar do assunto, batia invariavelmente numa parede de silêncio que tornava impossível perceber o lado humano e não-oficial daquilo que acontecera. Pelos anos oitenta começaram então, timidamente, os almoços de confraternização, geralmente preenchidos com as épicas aventuras partilhadas aos vinte anos ou com fanfarronices sobre «turras» e «pretas». Só pelos meados da década de 1990 surgiram os primeiros estudos e recolhas de testemunhos, e só agora, quase quarenta anos passados sobre o fim do conflito, se tornou normal ouvir ex-militares, ou as suas famílias, a falarem de forma livre dessa experiência durante tanto tempo calada. Percebe-se finalmente que tudo foi menos simples, e menos insignificante para a vida das pessoas envolvidas, do que se pensava com o cheiro a pólvora ainda nas narinas.
Outro tema, porém, continuou oculto, ou pelo menos mascarado e entrecortado por longos silêncios: a vida dos civis portugueses que povoaram os territórios africanos foi provisoriamente apagada. E os muitos que voltaram à terra de onde haviam partido, ou de onde tinham saído os seus pais, foram, depois de marginalizados mais pela sua diferença cultural do que por uma eventual cumplicidade no sistema colonial – efectiva em alguns casos, muito relativa noutros –, forçados a integrarem-se para que pudessem ser reconhecidos como portugueses normais, e não como perversos «retornados». Tem sido elogiada a forma como foram incorporados na vida do país, muito mais rápida e supostamente indolor do que a vivida pelos franceses pied-noirs obrigados em 1962 a saírem da Argélia. Mas esse processo, aparentemente pacífico e «exemplar», foi feito à custa do apagamento de histórias de vida, de valores, de costumes, de recordações, que eram os daqueles que haviam regressado ou chegado pela primeira vez à «metrópole» em 1974-75. De certa maneira, foi uma violência o que se passou, e foi ela – associada, por vezes, à perda dos privilégios ou das facilidades que muitos tinham conhecido em África – que levou muitos desses portugueses de torna-viagem a romantizarem ou a fantasiarem a vida que um dia tiveram, ou imaginam que tiveram. Uma vida perfeita, feita de bem-estar, de praias, de caçadas, de bailes, de mariscadas, de sexo, de noites de convívio, numa sociedade dentro da qual tudo parecia ter o seu lugar predestinado e imutável, num cenário onde racismo parecia «invisível», camuflado em Angola ou naturalizado em Moçambique.
É por isso que um livro como o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo (ed. Angelus Novus, 2009), se torna perturbante para muitas dessas pessoas, ou para aquelas que delas herdaram o discurso e os mitos. Elogiado por uma grande parte da crítica, com direito a grande destaque em diários e semanários, com um volume de vendas que fez esgotar a edição inicial, tem também sofrido o impacto de leituras sugeridas por quem vê nele algo capaz de colidir com a sua visão modelar e quase paradisíaca de um passado que prefere guardar como então o viu e como o gostaria de continuar a ver. Com os contornos de um tempo de prosperidade e de ordem social, sem confrontos visíveis, basicamente feliz. Mas ele não aconteceu assim – ou apenas assim – e o livro de Isabela Figueiredo, nascida em 1963 na cidade de Lourenço Marques, mostra-o com clareza. Acontece que existia, mas existia mesmo, um ambiente colonial complexo, no qual a paz das esplanadas escondia a violência latente ou explícita do quotidiano, e, sobretudo para os mais jovens nos anos da guerra, onde a aparente unanimidade podia camuflar a dúvida ou a busca de horizontes culturais mais livres e cosmopolitas, embora uma certa «nostalgia africanista» tenda a desvalorizar este lado.
Caderno de Memórias Coloniais não é um texto fácil para quem integre essa dimensão mais ou menos idílica e a technicolor do passado de muitos dos portugueses brancos que habitaram as antigas colónias, tornando menos agradáveis as imagens quase utópicas, de postal ilustrado, que abundam por aí. Além disso, resulta de um acto de coragem da autora, evidenciando, entre a ficção e não-ficção, um trabalho de exposição pessoal e familiar do passado (e também do presente que se lhe cola) que não deixará de ser pago com juros. Isabela Figueiredo faz notar, na conversa-entrevista que integra o próprio volume, que já houve quem lhe dissesse «que temos de ultrapassar o passado, que não vale a pena tocar em assuntos tão sensíveis», mas contrapõe ao argumento que, se temos realmente de ultrapassar esse passado, se os portugueses do outro lado do mar precisam mesmo de ultrapassar esse passado, «só o podemos fazer depois de o enfrentar». Nem que fosse apenas por este acto de enfrentamento, este livro incómodo mereceria sempre a nossa atenção. Os portugueses que povoaram o império colonial, ou «o nosso ultramar», não podem ver o seu passado apagado, esquecido, ou então pintado com as cores apenas agradáveis que a descolonização teria manchado. Ele conteve também experiências amargas, difíceis, perturbantes, por vezes únicas. Reconhecer esta diversidade só valoriza esse passado, não o degrada como julgam os mais cegos ou preconceituosos.
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Se história e memória não são a mesma coisa, uma não existe sem a outra, uma vez que ambas têm como referente o passado e os ecos que deles nos chegam, influenciando-se reciprocamente no processo de construção e de apagamento. Sabemos, por exemplo, como a revisão da história, levada a cabo muitas vezes por políticos e historiadores, começa antes por uma manipulação da memória colectiva, criando-se as condições para que, de seguida, certos «técnicos do passado» executem o seu trabalho sombrio. Assim ocorre entre nós, por exemplo, com a recente «suavização» do salazarismo, que começou com a tentativa de injecção mediatizada, no imaginário colectivo, de um ditador de Santa Comba com um ar simpático ou até de playboy, e tem prosseguido com a produção de livros, artigos e eventos destinados a activar um certo processo de branqueamento do homem e da sua acção.
Este método é universal, e daí o cuidado que é preciso ter perante a manipulação do conhecimento histórico como cenário que legitima as escolhas do presente. Só o esquecimento desse lado ambíguo da história pode assim permitir, por exemplo, que os responsáveis da selecção argelina de futebol tenham escolhido como designação utilizada, pelos jogadores que em Angola disputam neste momento o CAN 2010, o qualificativo de «raposas do deserto». É verdade que estas são pequenos canídeos que habitam as regiões desérticas, semidesérticas e montanhosas do Norte de África, contendo por isso uma simbologia local própria. Mas para quem tem como referente histórico o conflito brutal que foi a Segunda Grande Guerra – e o CAN é já um acontecimento global, que por isso não pode ignorá-lo – a «Raposa do Deserto» era Erwin Rommel, o arguto e inflexível comandante-em-chefe do Afrika Korps, com qual Hitler procurou obter o controlo estratégico do Magrebe e do Egipto. Conhecido na época, entre muitos árabes, como «o Libertador», por ter combatido frontalmente a presença imperial inglesa na região. Trata-se, provavelmente, de um episódico caso de desconhecimento ou de amnésia. Não é grave e não vale uma tempestade, pois a Guerra é já, para a esmagadora maioria das pessoas, um acontecimento longínquo, quase de ficção. Mas não deixa de ser sintomático.
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Sim, também eu perdi Eric Rohmer (1920-2010). Fica a memória das noites obscuras de cinema de província que me ensinaram a presença dos corpos e alguns jogos amorosos.
A passagem dos vinte anos sobre a queda do Muro de Berlim e o colapso brusco do comunismo na Europa Central e do Leste tem servido de pretexto para a divulgação de um volume impressionante de informações muito diferentes – e de diferente valia, naturalmente – sobre esse mundo que se esvaiu, que vão do testemunho de quem viveu directamente os seus episódios finais às análises de quem se serve deles para a crítica ou para a apologia das experiências do «socialismo real». A verdade é que até há pouco os ecos que chegavam ao Ocidente desse universo passado que a propaganda da Guerra Fria havia tornado particularmente estranho continuaram a limitar-se, quase exclusivamente, ao testemunho dos viajantes ocasionais e dos dissidentes de longa data que haviam sido marginalizados e perseguidos pelo sistema.
Só muito recentemente os relatos sobre o quotidiano da vida do outro lado da Cortina de Ferro começaram então a circular de forma sistemática, e O Mundo Perdido do Comunismo, do jornalista e produtor britânico Peter Molloy, representa um bom exemplo deste novo padrão de informação. O livro reúne depoimentos únicos de pessoas, comuns ou não, anónimas ou notáveis, adversárias ou próximas do poder, que viveram muitos anos na Alemanha Oriental, na Checoslováquia e na Roménia, e que relatam vidas padronizadas, mostrando como os três regimes, distintos sob certos aspectos mas idênticos na essência, se comportavam em relação aos que perseguia mas também àqueles que consideravam dos seus. Evocando humores, preocupações e experiências muito concretas, e com rosto, de um tempo que se perdeu.
[O Mundo Perdido do Comunismo. História do Quotidiano do Outro Lado da Cortina de Ferro. Trad. de Maria Filomena Duarte. Bertrand Editora, 280 págs.]
Em Dia D – A Batalha da Normandia, Antony Beevor retoma ao seu estilo a tradição da historiografia militar britânica, quase perdida no sul da Europa durante a segunda metade do século passado, que se apoia numa narrativa capaz de combinar o depoimento dos sobreviventes – sempre quente, sempre épico ou azedo, sempre um pouco nostálgico, povoado de imagens que conferem às descrições um inevitável recorte cinematográfico – com a sequência dos factos e das decisões comprováveis. Um passo do livro documenta na perfeição o modo como o testemunho oral – e a inclusão do que podemos considerar o eco poético do vivido na memória de quem o transmite – oferece ao historiador (e ao leitor, claro) fragmentos do passado absolutamente únicos e que deixaram um rasto ténue mas indissipável.
«O comandante de uma companhia [de infantaria americana] descreveu uma estranha experiência, vivida enquanto avançavam ao longo de um trilho florestal [na Bretanha]. De repente, ele e os seus homens ouviram o som suave de palmas: “Quando nos aproximámos, conseguimos ver as formas indistintas de homens, mulheres e crianças franceses, a debruar o caminho, sem falar, alguns chorando baixinho, mas a maioria apenas a bater palmas ao de leve, estendendo-se por várias dezenas de metros de ambos os lados da estrada. Uma menina veio pôr-se ao meu lado. Era loura, bonita, talvez com uns cinco anos. Deu-me a mão, cheia de confiança, caminhou um pouco comigo e, depois, parou e disse adeus até termos desaparecido.” Mesmo cinquenta anos mais tarde, ainda conseguia ouvir o som suave das palmas numa floresta.»
Folheio Havana Style, um daqueles álbuns de 8 €uros da série de bolso «Icons», da Taschen. Carrega dezenas de fotografias de ruas, prédios e interiores – belas, estranhas, incómodas – de uma Havana Velha olhada de fora como ilha dentro de uma ilha e território de caça do exótico e do kitsch retro. Na realidade, um engodo turístico para advogados de província, cabeleireiras de sucesso e pequenos empresários, desembarcados em fluxo no Aeroporto Internacional José Martí, que sobrevive apoiado em doses compactas de nostalgia e de propaganda de uma pobreza honrada. Para muitos dos que chegam após consulta os folhetos da agência de viagens, com a música rebobinada dos anos cinquenta a partir do trabalho peregrino de Ry Cooder, trata-se da demanda e do reencontro com um tempo imaginado de sol, suor, cocktails e sémen. Para os que perseguem o rastro deixado pela pureza revolucionária dos barbudos da Sierra, é antes um lugar de culto, de consumação imaginária da igualdade, de preservação de uma «democracia avançada» essencialmente anti-ianque. Mas para quem observe sem preconceitos, pondo de parte o ruído dos habitantes que se beijam, bailam, bebem e fazem por viver ruidosamente de costas para as ondas no Malecón, é sobretudo esse lugar triste, pobre, decadente, sem esperança, que os escritores cubanos contemporâneos não se cansam de descrever. No qual a ferrugem, o mofo, o cheiro a gasóleo e a decrepitude, nada têm de sedutor.
Dois posts publicados hoje – este e mais este – descrevem o inqualificável expediente utilizado pela GEF-Gestão de Fundos Imobiliários, SA para supostamente cumprir a obrigação de repor, no prédio que foi sede da antiga PIDE-DGS, a placa evocativa das últimas vítimas do regime caído em Abril de 1974. Um gesto de completo menosprezo pela memória colectiva, apenas possível porque o Estado e os partidos institucionais continuam sem dar importância nas suas preenchidíssimas agendas à construção de uma consciência cívica que seja capaz de integrar o exemplo dos que um dia se bateram, sofreram ou morreram pela democracia que os alimenta. Também um gesto ostensivamente ofensivo que não pode passar impune.
Adenda: O blogue Caminhos da Memória está a publicar algumas das mensagens endereçadas à GEF ([email protected]), a empresa imobiliária responsável pelo prédio da Rua António Maria Cardoso.
No Verão de 1944, logo após a chegada a Auschwitz, Primo Levi conhece um jovem judeu alsaciano, Jean Samuel, de enorme força física mas comportamento imperturbavelmente afável, a quem deu a alcunha de Pikolo. O escritor italiano evoca-o em Se isto é um homem como encarnação da dignidade preservada no meio do horror total, da humanidade que mal algum poderá aniquilar, e depois da libertação Pikolo manteve com ele um relacionamento apenas terminado em 1987 com a morte trágica de Levi. Durante longos anos, Samuel permaneceu em silêncio sobre a sua experiência dos lagern nazis e só muito tarde, confrontado com o desaparecimento físico de um número cada vez maior de sobreviventes, se resolveu a falar. O historiador Jean-Marc Dreyfus recupera esse testemunho em Chamava-me Pikolo, associando-lhe importantes fragmentos de cartas trocadas entre Levi e o seu velho amigo. Nestas, como nas palavras de Samuel reveladas neste pequeno volume, mais do que a memória de uma experiência-limite, única de tão brutal, sobressai o esforço ininterrupto de ambos para justificarem e tornarem aceitável, diante dos outros como de si próprios, a estranha condição de «homens normais». Sobreviventes de «um passado de recordações, mas de recordações objectivas» do qual a maioria das pessoas nada agora queria saber, preferindo ignorar a indizível dor e os pesadelos intermináveis de quem o viveu. [Jean Samuel e Jean-Marc Dreyfus, Chamava-me Pikolo. Trad. de Francisco Agarez. Pedra da Lua, 152 págs.]
Testemunhos da China é um livro intenso que projecta sucessivos olhares sobre o passado chinês anterior a 1949, sobre os caminhos sinuosos da revolução comunista, e sobre o presente de acelerada mudança de um país que nos habituámos a povoar de exotismo mas também a temer. Comporta 20 entrevistas calorosas e comoventes, feitas a pessoas com mais de setenta anos que tiveram percursos únicos mas relativamente anónimos, revelando a energia de escolhas cujo vigor e humanidade foram sempre capazes de transcender o sofrimento e a injustiça. Mostrando de que forma, sob sucessivas formas de opressão, a atitude optimista e o heroísmo de seres fora do comum jamais deixa que se perca o sentido da esperança. A riqueza da obra está nas pessoas extraordinárias que por ele desfilam – como a ervanária descoberta num mercado, professores aposentados, condutores de táxi, a lendária «Mulher das Duas Armas», antigos Guardas Vermelhos, alguns operários, uma acrobata, um oficial da marinha, um mestre-sapateiro ou um fabricante de lanternas – mas também no método adoptado pela autora. Xinran, jornalista de profissão, não quis «fazer história» através destas vozes singulares, nem procurar «a verdade» por detrás da propaganda, mas antes entrever e registar as reacções emocionais assumidas por cada uma delas face às mudanças rápidas e profundas que a China tem vivido nos últimos sessenta anos. [Xinran, Testemunhos da China. Vozes de uma Geração Silenciosa. Trad. de Maria Filomena Duarte. Bertrand Editora, 496 págs.]
Lembro-me de há uns doze anos atrás ter ensaiado – na época um passo em falso, ainda não tinha chegado o momento certo – um olhar sobre o passado colonial que parecia então tão improvável quanto impopular. Na altura, os estudos sobre a Guerra Colonial apenas começavam a gatinhar e, para quem se interessava pelo assunto, a única paisagem humana aceitável era composta pelos militares da tropa, pelos guerrilheiros que se lhes opunham e pelas populações africanas que enchiam a única paisagem visível. Os outros, bem, os outros tinham andado por ali, é verdade, mas era como se não tivessem andado: as centenas de milhares de portugueses de diferentes gerações que tinha povoado os territórios de Angola e de Moçambique nos anos de guerra deviam permanecer invisíveis, dentro do cordão sanitário da memória que protegia o bom povo do seu cheiro pestilento.
Eram ainda os «retornados», gente apátrida, culpada de ter existido, de sobreviver, e de, por isso, carregar consigo a memória de um passado que deveria ser apagado. E, no entanto, sem essas centenas de milhares de homens, de mulheres, de crianças – brancos, sobretudo brancos, mas também mulatos, cabritos, uns quantos negros assimilados – a realidade da última vaga da colonização, da guerra sangrenta, das independências paridas com dor, da inquietante experiência pós-colonial tal qual ela se define hoje, jamais teria existido. Fosse qual fosse o juízo de valor que pudesse ser feito em relação à colaboração de uma grande parte dessas pessoas na manutenção do jugo colonial – e eu fi-lo também, e bem negativo –, elas existiam, e tinha atravessado experiências de vida que não poderiam ser apagadas. A História de Portugal, de Angola, de Moçambique, de São Tomé, das outras antigas colónias, jamais poderá ser feita, percebemo-lo agora, sem se dar vida – retirando à maior parte desses seres humanos os qualificativos simplistas de algozes ou de cúmplices – a toda essa outra vida que ficou para trás mas que nos preenche.
Por isso, para que tudo isso possa ser reconhecido, e possam sair dos escombros pedaços de existência injustamente esquecidos, são indispensáveis livros recém-editados como o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo (na Angelus Novus), e Moderno Tropical, de Ana Magalhães e Inês Gonçalves (da Tinta-da-China). O primeiro é um magnífico, e ainda raro, exemplo de uma literatura autobiográfica saída do universo caseiro dos torna-viagem regressados do lado sul do Equador. Aqueles que respiram todos os dias connosco mas deixaram parte constitutiva das suas vidas num tempo que se perdeu mas se pressente ou se adivinha: «Ao domingo à tarde a rádio passava Nelson Ned cantando Domingo à Tarde. Ao domingo à tarde íamos ao cinema.» O segundo reintroduz-nos nessa arquitectura colonial de última geração, agora semivazia, decrépita e visivelmente abandonada, erguida em Angola e Moçambique entre 1948 e 1975, que nos leva de volta a uma certa «beleza nostálgica das cidades da África lusófona». Das cidades do asfalto, naturalmente, pois são estas que aqui preenchem a paisagem humana. Dois livros que vomitam vida por todos os lados, e que não deixarão indiferentes quem os percorrer. Padeça-se ou não dessa espécie de vírus, ainda não cientificamente identificado, e muito menos provido de antídoto, conhecido entre nós por bichinho de África.
Eu deveria falar só sobre o Tom Waits, que fez ontem sessenta anos. Mas meto também na jogada o Bruce Springsteen, que os ultrapassou há perto de dois meses. Está escrito no cartão do cidadão que a minha data de nascimento se encontra perigosamente mais próxima da deles do que daquela da qual se pode gabar o Devendra Banhart ou mesmo o Pedro Passos Coelho, e talvez seja por isso que os aniversários de Tom e de Bruce não me façam uma impressão por aí além. Mas já justificam a evocação de dois trajectos inacabados e ainda debaixo da luz dos projectores.
Sempre olhei Springsteen como vestígio de uma América ideal que já se via de partida quando ele saiu lá de New Jersey, mas que foi depois desaparecendo lentamente, como pegada de dinossauro em trilho paralelo a uma qualquer highway. Um hobo fora do tempo, talvez mesmo um beatnik retardado, se não desnaturado, do qual o que sobra na América de uma cultura protestativa e de tradição sixtie se tem apropriado como se fosse um balão de oxigénio. Como de uma bandeira rasgada, volúvel, mas ainda visível e a drapejar sobre um horizonte que se não pode prever. Dele gosto, verdadeiramente, apenas de dois álbuns publicados um a seguir ao outro: o fremente e corsário The River (um duplo de 1980) e o quase intimista e acústico Nebraska (1982). Os outros pertencem, basicamente, ao processo de fixação do Bruce naquela imagem de cool guy que «representa o povo» em tribunas do Partido Democrata ou em anúncios da Pepsi Cola. Mas que certas vezes ainda comove, porque insiste em falar-nos da vida «como ela é». Como boss mais camarada afinal do que patrão.
Tom Waits é outra coisa e a mesma. Resíduo da contracultura dos anos sessenta, signo de uma ressaca difícil que encontra, na figuração narcísica da marginalidade e do individualismo, um lugar de exílio das utopias que pareciam ter sido abandonadas de uma vez por todas. Música de cave, com cheiro acentuado a bourbon e a fumo, como em Nighthawks at the Diner (gravado ao vivo e editado em 1975), ou Small Change, ou Blue Valentine, saídos nos anos seguintes, que a música de Mr. Waits, embora progressivamente mais intelectualizada, hoje mais elaborada, estranhamente controlada no seu descontrolo, na verdade jamais deixou de ser. Sempre um registo «fora de género» que encontra os seus inflexíveis cultores – aqueles que preferem caminhar do lado oposto à «sunny side of the street» – mas não deixa de conter uma amargura que escapa sempre ao lado exultante desse modelo americano de vida que os europeus jamais desejarão. Por isso, talvez, tantos deles, tantos de nós, gostam ainda de um tipo assim, sem voz para adormecer bebés e uma presença física um bocado pungente.
Afinal os sessenta anos de Tom e de Bruce não contam assim tanto, pois não?
No Verão de 66 os meus interesses na vida eram ainda as séries Thunderbirds e Bonanza, os romances de Walter Scott e de Emilio Salgari, e o futebol. Passei por isso grande parte de um Julho particularmente quente agarrado à televisão, aos jogos do Mundial e aos pontapés gloriosos de Eusébio e companhia. O jogo dos jogos, mais importante do que os das vitórias suadas sobre brasileiros e húngaros, foi para mim o Portugal-Coreia do Norte. Com o resultado já num humilhante 0-3, os «magriços» – assim chamados por se supor retomarem os feitos de Álvaro Gonçalves Coutinho, o penedonense, valente embora fraco de carnes, que foi um dos lendários Doze de Inglaterra evocados por Camões e Garrett – deram a volta ao jogo e passaram-no para 5-3, numa recuperação fantástica liderada pelo preto mais branco do país. O jogo doou-me uma marca incisa e profunda, pois ao quarto golo nacional, obtido de penálti, dei um salto tão grande que bati com a mão direita num candeeiro e deixei um centímetro cúbico de carne a pingar sangue entre ferragens e pendentes. Conservo do episódio a cicatriz que me recorda todos os dias a vibração (e a dor forte, claro) daquele momento. E revi-o quando soube hoje que na campanha sul-africana de 2010 nos calhou de novo a Coreia do Norte. O desafio que aguardo com maior expectativa e um certo desejo de vingança será pois aquele que disputaremos contra os vassalos do «querido líder» Kim Jong-Il. Embora saiba que a paixão do instante jamais será a mesma.
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Artigo publicado na revista LER de Novembro de 2009
«Uma simples folha de papel de escrever / Parecia um milagre
/ Caindo do céu sobre a floresta negra» (V. Shalamov)
O escritor ucraniano Georgi Vladimov (1931-2003) redigiu The Faithful Ruslan (New York, 1979), O Fiel Ruslam, na época do Degelo, quando Kruschev suavizou um pouco o peso da censura. Mas duas décadas depois o pequeno romance-alegoria ainda só circulava no estreito circuito samizdat. O narrador é um cão que cumprira com sinistra devoção o seu trabalho de guarda num campo de trabalho. Fechado o campo, os seus donos humanos partiram para uma nova vida, mas Ruslan encontrou uma última missão: numa atitude de fidelidade para com o mundo que servira, passou a seguir por todo o lado um antigo prisioneiro. No final juntar-se-á a uma matilha para despedaçá-lo, tal como a um grupo de operários da fábrica que sucedera aos antigos pavilhões carcerários, num festim de morte e zelo iniciado quando lhe pareceu que estes violavam as rígidas regras que fora treinado para fazer cumprir. Boa parte da memória escrita dos sobreviventes dos campos de concentração recupera sempre esta dimensão de irreversibilidade do passado: aqueles que os habitaram na condição de prisioneiros, e viveram para contar a experiência, jamais abandonaram de todo as rotinas e os condicionamentos impostos por anos de uma vida sem lugar para a transgressão ou para a esperança.
Quando entramos nos relatos daqueles que conseguiram sobreviver aos Lagern nazis e ao Gulag percebe-se, porém, que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos grandes campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem (Lisboa, 1988), Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.
A aceleração do tempo ateia o esquecimento. Mesmo sem o desejarmos, acabamos então por dar como perdidos alguns dos rostos que foram ficando para trás, no lado mais frágil da nossa memória. Julgamo-los apagados quando pensamos que tudo aconteceu há tantos anos, com pessoas que acreditávamos serem já tão antigas, que só poderiam mesmo morar agora nesse Império do Nenhures do qual não existe retorno. Foi pois com espanto, e medo de me estar a confrontar com alguma fraqueza do entendimento, que num número recente da revista Manière de voir dedicado à «emancipação na história» dei de caras com os rostos e as vozes de dois homens que faziam as capas dos jornais quando eu ainda me interessava mais pela lenda do Joãozinho e do Feijoeiro Mágico do que pelos caminhos tortuosos da libertação dos povos. Afinal o vietnamita Vo Nguyên Giap, vencedor dos franceses em Dien Bien Phu (1954) e dos americanos na Ofensiva do Tet (1968), nasceu apenas em 1911, permanecendo vivo e aparentemente com opiniões. E Mohamed Ahmed Ben Bella, principal líder da luta pela independência da Argélia (1954-1962) e o primeiro presidente do país, nasceu só em 1918, continuando com a cabeça a laborar. Vou ter de confirmar se Emiliano Zapata foi mesmo abatido em Chinameca pelos disparos traiçoeiros do general Guajardo.