Arquivo de Categorias: Memória

Rever e desculpabilizar o Gulag

Canal Mar Branco-Báltico, 1932.

No Público de 13 de Novembro de 2009.

Tal como tem acontecido com a tentativa de reexame do Holocausto, decorrem processos de revisionismo histórico da experiência do Gulag que tendem a reduzir o seu papel na edificação da sociedade soviética ou a requalificá-la como opção politicamente válida. Emergem em parte da historiografia e do actual sistema educativo do Estado russo, determinados a justificar perante as novas gerações o uso da violência na construção de uma política centralista e imperial «eficaz». Em The Future of Nostalgia, Svetlana Boym fala de incentivos a uma «megalomania da imaginação» que na Rússia actual se tem servido das dificuldades diárias vividas pelas pessoas comuns para estimular uma revisão heróica e gratificante do passado. Mas estas releituras provêem também dos sectores políticos, próximos ainda da matriz leninista, que conservam uma atracção reverente pelo antigo «país do futuro radioso». Há cerca de uma década, o debate público em torno do controverso Livro Negro do Comunismo terá contribuído para estimular esta via branqueadora e justificativa da violência de Estado.

Entre nós, muito mais relevantes do que o caso recente da jovem deputada do PCP que declarou não ter ideias sobre o assunto, ou das afirmações de militantes que dizem ou escrevem aquilo que o instinto gregário e a ignorância determinam, são as declarações de pessoas com reais responsabilidades políticas que se esforçam por limpar da memória ou por desculpabilizar os horrores praticados no sistema concentracionário do «socialismo real». O texto de opinião de António Vilarigues que saiu no Público de 30 de Outubro serve de indicador. Ele contesta os números excessivos apresentados por muitos historiadores para contabilizarem as vítimas do Gulag, o que merece alguma atenção. Mas toca o inaceitável quando se permite comparar o número das pessoas «reprimidas» na antiga União Soviética (as significativas aspas são da sua responsabilidade) com o volume de detidos de delito comum actualmente nas prisões americanas, comparando aquilo que não pode ser comparado e criminalizando quem foi deportado e perseguido apenas por motivos políticos ou étnicos.

(mais…)

    Atualidade, História, Memória, Opinião

    A verdade deles

    Pravda

    Não há volta a dar-lhe: a redacção do Avante! atesta pendularmente a sua visão bicromática do mundo. É-lhe insuportável uma realidade intrincada que escape à cartilha amarelecida e maniqueísta da «luta de classes». É verdade que a Queda do Muro de Berlim e o fim das «democracias populares» não trouxeram a felicidade à maioria daqueles que sob elas viveram. É verdade que muitos dos antigos cidadãos dos países que as experimentaram recordam com ostalgie, perante o desenvolvimento descontrolado de um capitalismo selvagem e agressivo imposto de cima para baixo, a antiga segurança de uma aparente paz pública (apesar de assente na repressão da liberdade e na agressão militar), de um sistema de saúde em regra gratuito (embora antiquado e com escolhas trágicas), de uma educação organizada e exigente (se bem que sectária e confundida com a propaganda), de um emprego garantido (muitas vezes associado a trabalho improdutivo e tecnologicamente obsoleto), de uma autoproclamada grandeza nacional (apoiada em manifestações de força e completamente invisível de fora para dentro). Mas torna-se profundamente patético invocar este descontentamento efectivo e legítimo para defender, uma vez mais sem qualquer exercício crítico, práticas de governação absurdas e regimes despóticos que a história felizmente enterrou. Todavia, é precisamente isso que o jornal do PCP acaba de fazer num artigo, com direito a longa citação do falecido «camarada» Erich Honecker, destinado a denegrir o resultado prático e o valor simbólico da Queda do Muro e a defender a caricatura do socialismo que este supostamente defendia. Ler aqui para crer.

      Atualidade, Devaneios, História, Memória

      Merci beaucoup, Professor Claude

      Claude Lévi-Strauss

      Escrevi este post há perto de um ano, quando Claude Lévi-Strauss fez os 100. Hoje que soube do seu desaparecimento, fui buscá-lo ao arquivo, limpei-o do pó e trouxe-o de novo para a parte mais visível do blogue.

      Quero recordar os 100 anos que o antropólogo, professor e filósofo Claude Lévi-Strauss completa neste 28 de Novembro. Mas começo pelo fim: pelo esquecimento. Hoje, quando menciono numa aula de licenciatura o nome de Lévi-Strauss, para tornar mais clara a identificação preciso dizer que não me estou a referir àquele senhor de origem alemã que em 1853 fundou em São Francisco a primeira fábrica de blue jeans. E preciso começar por recomendar, para evitar grandes choques, a leitura mais facilmente sedutora desses apontamentos de trabalho de campo na terra amazónica, aparecidos em 1955 e por vezes apresentados como um mero exemplo de literatura de viagens, que são os Tristes Trópicos. Lévi-Strauss, como o estruturalismo, está fora de moda.

      No entanto, quando reentrei na universidade logo após a revolução de Abril, a primeira obra cuja leitura me foi recomendada, e que tenho agora aqui mesmo à minha frente na edição velhinha da Presença, foi o Raça e História, um livro publicado pela primeira vez em 1952 que naqueles anos setenta sublinhei conscienciosamente. Retenho dele – numa altura em que volto a ouvir na televisão os apresentadores falarem de povos «mais» ou «menos» civilizados – fragmentos da sua reapreciação das culturas ditas «arcaicas» ou «primitivas». E sobretudo da sua crítica radical e refundadora do etnocentrismo: «Preso entre a dupla tentação de condenar experiências que o chocam afectivamente e de negar as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se a toda a espécie de especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos entre estes pólos contraditórios, e para aperceber a diversidade das culturas procurando suprimir nesta o que ela contém, para ele, de escandaloso e de chocante.»

      O ponto final na hipótese da existência de uma «mentalidade primitiva», posto definitivamente em causa, no ano de 1962, em O Pensamento Selvagem – numa defesa dos «saberes indígenas» que ainda hoje desagrada a muitos porque queima um certo sentido da história construído ao longo de séculos – já se encontra ali, seguindo um método de observação do social e uma filosofia para a vida que procuro praticar e que tento ainda partilhar com quem me vai ouvindo: «A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a seu respeito – exigência que cria para cada indivíduo valores correspondentes – é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras.» Muito obrigado, Professor Claude.

        Apontamentos, Memória, Olhares

        Auschwitz Gulag | 2. A sentença

        Varlam ShalamovNascido em 1907 na cidade russa de Vologda, durante a juventude o escritor, poeta e jornalista Varlam Shalamov participou das actividades do grupo literário esquerdista LEF. Em Fevereiro de 1929, quando era estudante da Universidade de Moscovo, foi detido pela primeira vez sob a acusação de difundir o «testamento político» de Lenine. Tratava-se de uma das últimas cartas do dirigente bolchevique, na qual este apontava a necessidade de afastar Estaline do cargo de secretário-geral do Partido Comunista. Nos anos trinta, a difusão do documento, considerado apócrifo pelas autoridades, iria custar a vida a diversas pessoas. O escritor passou então cerca de três anos em campos de concentração nos Urais. Em 1937 foi novamente detido e enviado para a Sibéria Oriental, para Kolima, um dos mais mortais campos do Gulag. Primeiro como prisioneiro e depois como deportado, ali permaneceu até 1953. Seria completamente reabilitado em 1956, após o XX Congresso do PCUS. Os Contos de Kolima, de um dos quais se transcreve aqui um fragmento, foram escritos entre 1954 e 1973 com um cunho acentuadamente autobiográfico, mas só começaram a ser publicados em revistas e jornais literários nos anos da perestroika. Durante a vida, Shalamov apenas conseguiu publicar cinco colectâneas de poesia, tendo morrido sozinho, cego, surdo e sem meios pessoais em 1982.

        Os homens surgiram do nada, uns atrás dos outros. À noite, um homem desconhecido deitava-se na minha tarim­ba, encostava-se ao meu ombro ossudo, transmitindo-me o seu calor – gotas de calor – recebendo o meu em troca. Havia noites em que nem sequer uma gota de calor chegava até mim através dos farrapos de um casaco, de um jaquetão acolchoado. E, de manhã, olhava para o vizinho como para um cadáver e ficava admirado quando via que o cadáver estava vivo, se levantava ao som dos gritos, se vestia e cum­pria obedientemente as ordens. Eu tinha muito pouco calor. Nos meus ossos restava muito pouca carne. Bastava apenas para ter raiva, o último dos sentimentos humanos. O último dos sentimentos humanos, o mais próximo dos ossos, não é a indiferença mas a raiva. O homem, que aparecia do nada, desaparecia de dia: na mina de carvão havia muitos sectores, e desaparecia para sempre. Não conheço as pessoas que dormiram ao meu lado. Nunca lhes fiz perguntas, não porque seguisse o provérbio árabe: não perguntes para que não te mintam. Era-me indiferente que me mentissem ou não, eu estava para além da verdade, para além da mentira. Sobre isto os criminosos têm um ditado severo, claro e gros­seiro, cheio de um desdém profundo para quem faz a per­gunta: se não acreditas, pensa que é um conto de fadas. Eu não perguntava e por isso não ouvia contos.

        (mais…)

          Democracia, História, Memória

          Auschwitz Gulag | 1. A abrir

          O campo

          Preludiando Auschwitz Gulag, uma sucessão de posts documentais sobre a experiência concentracionária imposta pelos regimes totalitários do século 20.

          Inocentar ou justificar a dimensão ferozmente repressora do «socialismo real» em nome de uma repressão maior, de crimes forçosamente mais graves praticados pelos diversos cães de fila do capitalismo, não tem qualquer sentido. Em ambos os casos falamos de coerção, de tortura ou de morte que são absolutas, não possuindo cor ou ideologia salvo na sua forma exterior. Não existe uma tortura «boa», aceitável ou desejável porque praticada sobre quem merece, e outra «má», inadmissível porque exercida sobre quem tem a razão do seu lado. Se alguma disjunção pode ser traçada, será precisamente aquela que admite como perversão aquilo que outros defendem como uma necessidade, aquela que separa os crimes terríveis que podem ser denunciados dentro do sistema, que podem ser parados pela pressão da opinião pública, como sucede nas democracias, daqueles outros recorrentemente praticados e invariavelmente silenciados sob os regimes totalitários. Onde o silenciamento funciona também como instrumento de anulação do individuo e dos seus direitos.

          Pelos relatos daqueles que sobreviveram aos Lagern nazis e ao Gulag percebemos que a caracterização do encarceramento concentracionário, «a experiência do século» como lhe chamou Heinrich Böll, diverge entre eles num aspecto crucial. Nos campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a previsível inevitabilidade do fim. E sabia-o, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi diante das crianças, rara nos campos soviéticos. A norma nos redutos do Holocausto era a da luta mais extrema do prisioneiro, permanentemente imerso no medo, no horror, na disciplina, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, por um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto, um breve instante. É o que evocam os relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida. Em Se isto é um homem, Levi recorda como logo pelo segundo dia em Auschwitz os homens do seu grupo se olhavam já como fantasmas: «não há espelhos para nos vermos mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos.» Um pequeno mundo, o único mundo possível, onde em pouco tempo o combate pela sobrevivência transformará cada um no chacal do seu próximo.

          Já com as vítimas da Administração Geral dos Campos de Trabalho Correctivo, projectada logo na época do Terror Vermelho pelo poder bolchevique – em Gulag. Uma história, Anne Applebaum relembra que o primeiro estabelecimento foi aberto logo em 1918 –, não era necessariamente a origem étnica ou a condição social a determinar a pena e o encarceramento. Detidas e deslocadas pelos mais diversos motivos, eram genericamente classificadas como irrecuperáveis representantes do «inimigo de classe», sobreviventes incómodos de um tempo a ultrapassar, obstáculos vivos que apenas embaraçavam a caminhada triunfal do homem novo e deveriam ser banidos da sociedade. Por isso, a desumanização e a demonização do prisioneiro, sendo reais, foram em regra circunscritas ao seu lugar de alvo a ferir no combate por uma necessidade histórica que a ditadura do proletariado pretendia forçar. Nestas condições, o essencial do esforço carcerário era aplicado na erradicação dessas pessoas do convívio social normal, ou, em certos casos, na sua «reeducação» pela disciplina e pelo trabalho. Não na mecanização do extermínio, que foi quase sempre mais uma consequência do que um fim em si mesmo.

          (continua)

          Parte deste post adapta um fragmento de um artigo extenso a publicar na LER de Novembro.

            Democracia, História, Memória

            1969, 26 de Outubro

            1969

            Há precisamente 40 anos era domingo. Nesse dia, agora já tão distante, aconteceram em Portugal as eleições legislativas de 1969. Apesar de não-democráticas, elas marcaram um importante ponto de viragem na contestação do Estado Novo e na preparação da queda definitiva do regime. Os redactores do blogue Caminhos da Memória – entre os quais me incluo – resolveram contar a forma como cada um deles viveu a data. Está tudo aqui, com muitos comentários e adendas à mistura.

              História, Memória

              Jovem Guarda

              Gulag

              A sobrevalorização da juventude, inaugurada com a emancipação dos baby boomers e a apoteose da cultura «sessentista», mas entretanto recuperada pelo capitalismo, sitia-nos dia e noite. É ela que tem levado os nossos principais partidos, quase todos eles – à excepção, talvez, do Bloco de Esquerda, que por ser um partido maioritariamente jovem não precisa para já de expedientes desta natureza – a atirar para a segunda fila visível dos comícios, das conferências de imprensa e das bancadas parlamentares com pessoas cuja qualificação fundamental, em alguns caos, é precisamente essa: ter menos de trinta anos, cinturinha estreita, um pouco de sex appeal e, claro, uma dose qb de fidelidade política. O patético e fugaz caso de Carolina Patrocínio, a «mandatária» do PS a quem em boa hora rapidamente tiraram o microfone, é exemplar dessa subversão do conceito de juventude, afirmado como um valor em si mesmo. Naturalmente, um partido ideologicamente arcaico e globalmente envelhecido como o PCP, precisa muito de recorrer a este género de expediente. E então lá puxa, para as mesas das conferências de imprensa, para as filas dianteiras dos comícios e desfiles, para um ou outro lugar visível da Assembleia da República, de alguns decorativos nascidos depois de 1980.

              Claro que nem todos eles ficam bem na fotografia, pois assim que começam a falar – aqueles que o fazem – se percebe como a data do BI nada tem a ver com uma abertura ao tempo em que vivemos, com a ousadia, o humor descomplexado, a humanidade sem preconceitos ou a inteligência criadora que são características, presume-se, dos jovens que são jovens. A generalidade dos rostos visíveis e das bocas falantes da JCP mostram claramente esse lado, pois representam, quase invariavelmente, justamente aquilo que o seu partido tem de mais cavernoso e dogmático. Os exemplos são inúmeros, mas basta por agora olharmos para o último.

              Falo, evidentemente, do caso da deputada Rita Rato, de 26 anos, membro da Direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP e da Direcção Nacional da JCP, «licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais» e mestranda na mesma área (sic), a qual, confrontada com a pergunta jornalística sobre a existência do Gulag, afirmou: «não sou capaz de responder porque, em concreto, nunca estudei nem li nada sobre isso». Este «isso» trata-se de um pequeno detalhe: a morte de milhões de seres humanos – não apenas milhares, como refere um outro texto no qual também se comenta o caso – e a destruição física e moral, ao longo de décadas, de largos milhões de outros, numa escala numericamente superior à do Holocausto e que abrangeu desde simples cidadãos sem culpa formada a muitos militantes comunistas «culpados» apenas de, real ou imaginariamente, terem divergido de Lenine (sim, o Gulag foi inaugurado ainda em vida do chefe dos bolcheviques) e sobretudo de Estaline. Aquilo que impressiona não é a ignorância da Rita diante de um tema sobre o qual existem tantos livros e documentação disponível, uma vez que, provavelmente, ela nem será totalmente verdadeira, mostrando apenas falta de jeito na tentativa de fugir à questão. O que preocupa, e muito, é, para além da pequenez de formação cultural (e académica) que revela, o facto de alguém com as suas responsabilidades políticas e esta dose de ignorância (ou, pior, de má-fé) ser deputada num parlamento democrático e quadro de um partido que o integra. Mas se não arrepiar caminho terá o futuro assegurado dentro do seu círculo de giz.

              Post Scriptum – No número de Novembro da revista mensal LER, à venda dentro de dias, publicarei um artigo extenso sobre a literatura do Gulag. Talvez possa interessar também a quem jamais ouviu falar do assunto de outra forma que não seja a da perspectiva cúmplice ou desculpabilizadora.

                Atualidade, Memória, Opinião

                O aquário

                Waldsiedlung Wandlitz

                Quando se observa a esta distância o mundo perdido do «socialismo real» e a forma como as suas elites dirigentes passaram de inflexíveis e autoritárias a autistas e paranóides – não se apercebendo, para o final, das rápidas mutações produzidas quando foi removido o aparelho protector oferecido pela União Soviética –, um dos exemplos que sobressai é o da estranha microcidade de Waldsiedlung Wandlitz. Situada a cerca de 30 quilómetros a norte da zona leste de Berlim, foi aí que, entre 1960 e 1989, fixaram residência oficial os membros do topo da classe dirigente da ex-República Democrática Alemã. Existem numerosas descrições do aspecto e da «vida» daquele bairro, o «Gueto dos Deuses» como lhe chamavam as pessoas comuns, completamente fechado por um forte cordão de segurança e habitado por homens idosos e as suas taciturnas esposas. Pessoas que se temiam e se vigiavam constantemente, que sabiam que tinham microfones da Stasi encaixados nas paredes e no soalho, que eram vizinhos quase sem falarem uns com os outros fora das funções oficiais, que gozavam de privilégios mas não conseguiam fruir da mais elementar liberdade pessoal.

                Seguiam quotidianos rigorosamente idênticos, vestiam-se todos sensivelmente da mesma forma, circulavam no mesmo modelo da Volvo com motorista, guarda-costas e sinais intermitentes ligados, tinham casas beijes de dois pisos de concepção inalterável e mobiladas de forma previsível. Quando se encontravam dentro do bairro era necessariamente no único restaurante sempre com os mesmos pratos, no único cinema com uma única sessão diária, na única lavandaria, no único infantário, na única clínica veterinária, nas poucas lojas que vendiam produtos ocidentais aos quais mais ninguém tinha acesso. Vivendo, como conta em O Mundo Perdido do Comunismo, de Peter Molloy, a actriz e encenadora Vera Oelschlegel, que ali morou por ter sido casada com um dos moradores oficiais, num universo sempre silencioso e sem alegria, segundo o «estilo de vida da classe média baixa muito bem comportada, com um naperon em cima do televisor Vertico e que regava as plantas envasadas no jardim». E o pior é que esse era o único mundo conheciam, uma vez que há muitos anos, alguns deles havia décadas, tinham deixado de ter empregos normais, de frequentar livremente as ruas e as praças que observavam a partir das janelas fechadas dos carros oficiais, de entrar sem comitiva nas casas simples dos concidadãos que governavam. Decidiam sobre os destinos de milhões de pessoas a partir de um aquário. Como poderiam assim as coisas ter deixado de acontecer como aconteceram?

                  História, Memória, Olhares

                  Atão isto faz-se ó Pacheco?

                  Pacheco 1 Pacheco 2

                  O blogue da Pó dos Livros está a promover a eleição da pior capa de livro editada em Portugal. Após uma fase de pré-selecção, estão agora a votação pública as 10 que foram consideradas «mesmo mesmo mesmo» as piores de todas. Eu já votei e coloquei em primeiro lugar a dos Exercícios de Estilo, do Luiz Pacheco, lançada pela Estampa (que tem, aliás, 3 capas neste top ten). O mais estranho é que a capa da 1ª edição, que tenho aqui mesmo ao lado, me acompanhou durante anos como uma das favoritas da ficção portuguesa. E o mais extraordinário é que essa edição foi, em 1971, da responsabilidade da mesmíssima Estampa. Como escrevia Pacheco nos próprios Exercícios, «perdoai-me, senhor, mas ele há coisas…». Ora compare o leitor o antes e o depois.

                    Memória, Olhares

                    Viagem ao pior dos pesadelos

                    Vítimas do genocídio cambojano

                    Definir uma gradação para o horror perpetrado pela perversão totalitária é tarefa difícil e um pouco sórdida. Afinal, onde poderemos colocar os limites do razoável quando falamos da imposição pela força de uma ordem que se supõe acima do indivíduo? Ainda assim, os processos de repressão aplicados sob as experiências do «socialismo de Estado», quando comparados, acusam diferenças que não são meras nuances. Em From the Gulag to the Killing Fields, um livro tão necessário quanto terrível e sombrio, Paul Hollander compilou relatos de experiências pessoais da violência política sob os regimes «socialistas» de partido único que o mostram com clareza. De todas as experiências, porém, a mais extrema e absurda foi a vivida no Camboja entre Abril de 1975 e Janeiro de 1979, quando os Khmers Vermelhos procuraram impor, de um momento para o outro, uma experiência de engenharia social que passava pelo aniquilamento instantâneo de todos os vestígios materiais e humanos da ordem «capitalista», e pela instalação, sem quaisquer cedências, de um comunismo ruralista e integral. O resultado foi a destruição sistemática do país – da administração pública, da economia, da saúde, da cultura, da educação, e da própria vida urbana –, mas igualmente a morte de mais de um quinto da população, cerca de 2 milhões de seres humanos, maioritariamente aniquilados pela fome, pela doença, pela tortura ou pela exaustão.

                    Denise Affonço, filha de mãe vietnamita e pai francês de ascendência portuguesa, residente em Phnom Penh na altura da vitória dos guerrilheiros, poderia ter abandonado a cidade e o país mas escolheu ficar com o marido, um comunista que interpretava a tomada do poder pelos Khmers Vermelhos como um passo para a construção da utopia de igualdade na qual acreditava. De origem chinesa, seria por isso mesmo rapidamente executado, enquanto Denise, com dois filhos menores a seu cargo, se via envolvida numa descida ao inferno da deportação em massa, do trabalho escravo em regiões remotas, e do castigo sistemático, gratuito e cruel, determinados apenas, tal como aconteceu com milhões de cambojanos, pelo facto de ser arbitrariamente considerada uma «representante da velha sociedade», um vestígio vivo dos «demónios do passado» que era necessário matar. Foi longa a sua via-sacra: lugares cada vez mais inóspitos, regimes de trabalho cada vez mais inflexíveis, guardas cada vez mais brutais e discricionários, concentrada apenas na sobrevivência elementar. Mas também na resistência psicológica, particularmente difícil num quadro legal de desumanidade dentro do qual se declarava formalmente ser «proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», queixar-se do quer que fosse, ou afirmar um qualquer traço de individualidade e diferença.

                    Apesar do tudo aquilo por que passou ao longo de quase quatro anos, e de lá onde se encontrava ter por diversas vezes tocado a frágil linha que parecia separar a vida da morte, Denise sobreviveu para nos oferecer este testemunho perturbante. Redigido com uma capacidade pictórica e uma intensidade dramática apenas possíveis em quem viajou de facto até onde a existência é regida pelo mal mais absoluto, pela barbárie extrema, que de tão inimaginável mais parece retirada do pior dos pesadelos.

                    Denise Affonço, No Inferno dos Khmer Vermelhos. Testemunho de uma sobrevivente. Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Pedra da Lua, 184 págs. [Publicado na LER de Setembro]

                      História, Memória

                      Gracias a Mercedes

                      Mercedes Sosa morreu hoje em Buenos Aires. Se fue então para um algures bem distante. A sua voz foi das poucas, vindas do canto de intervenção internacional das décadas de 1960-70, que jamais deixou de me empolgar. Talvez por ser tão poderosa que parecia chegar lá do fundo mais fundo da alma humana. Por ser simplesmente solidária, longe do panfleto e mais forte que as circunstâncias. Pelo menos eu assim a ouvi e assim a recordarei.

                      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=cTZSmuiIHPs[/youtube]
                      Gracias a la Vida – Mercedes ao vivo com Joan Baez
                        Memória, Música

                        Primeiro de Outubro

                        A testemunha

                        «Se pudesse viver outra vez faria as mesmas opções? Durante cerca de dois minutos e meio o senhor Lin ficou à minha frente, a olhar para o tecto, com um esgar de dor. Não o pressionei para que me respondesse.»

                        O entendimento que tenho procurado dos caminhos dramáticos e contraditórios da China contemporânea tem sido municiado por alguns textos facilmente disponíveis. Como Cisnes Selvagens, de Jung Chang, uma obra autobiográfica que demanda a memória vívida de três gerações de mulheres resistentes, O Dragão e os Diabos Estrangeiros, de Harry G. Gelber, colando a história do «Império do Meio» à perspectiva que os seus naturais foram tendo do mundo exterior, ou ainda as biografias de Mao, por Chang e Jon Halliday, e de Chu-En-Lai, por Gao Wenqian. The Prisoner of the State, o «diário secreto» de Zhao Zyiang, está aqui ao lado para ler em breve, mas já percebi que dilatará a perspectiva. Neste Primeiro de Outubro em que se completam, com a pompa militar e o espectáculo mediático da ordem, os sessenta anos sobre a proclamação da República Popular da China, quero no entanto sugerir uma leitura especial.

                        Testemunhos da China. Vozes de uma geração silenciosa, da jornalista Xinran (ed. Bertrand), é um livro intenso, emocionante, que lança um olhar particular sobre o passado anterior a 1949, os caminhos sinuosos da revolução comunista, e o presente de acelerada mudança de um país que nos habituámos a povoar de exotismo mas também a temer. Fá-lo de uma forma particular, através de 20 entrevistas calorosas e comoventes, feitas a pessoas com mais de setenta anos – a mais velha tinha noventa e sete quando conversou com a autora – que tiveram percursos únicos mas relativamente anónimos, mostrando a energia de caminhos cujo vigor e humanidade foi sempre capaz de transcender o sofrimento, a miséria e a injustiça. Mostrando ao mesmo tempo que, sob sucessivas foras de opressão, a atitude optimista e o heroísmo de seres especiais jamais deixaram que se perdesse o sentido da esperança.

                        A riqueza deste livro está pois nas pessoas, comuns mas realmente extraordinárias, que por ele desfilam – como Yao Popo, a mulher ervanária descoberta casualmente num mercado, professores aposentados, condutores de táxi, a lendária «Mulher das Duas Armas», antigos Guardas Vermelhos, alguns operários, um acrobata, um oficial da marinha, um mestre-sapateiro, o senhor Huadeng, fabricante de lanternas, entre outros – mas também no método adoptado pela autora. Xinran não quis «fazer história» através destas vozes singulares, nem procurar «a verdade» por detrás da propaganda, mas antes entrever e registar as reacções emocionais assumidas por cada uma delas às mudanças rápidas, por vezes radicais, que a China conheceu ao longo da segunda metade do século passado. Aquelas que este Primeiro de Outubro sinaliza à escala do planeta.

                          História, Memória

                          Saudades de Nikita

                          Khrushchev

                          O pícaro coronel Khadafi, pseudo-Nehru da aurora do século 21, tinha 15 minutos para discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas. Falou durante 95 – Fidel Castro, recordista absoluto da especialidade, dispendeu 240 em 1960 –, disparando em todas as direcções, qualificando o Conselho de Segurança como terrorista, e chegando a lançar estrondosamente ao chão um exemplar em árabe do documento fundador da instituição que o acolhia. Jogando com o estatuto de inimputável e chantagista que lhe permite compor perfomances desta natureza sem que, no mínimo, alguém se erga do seu lugar e saia da sala ostensivamente, deixando-o a arengar para confrades e clientes. Ou proteste batendo com um sapato na respectiva bancada, como o fez certo dia o saudoso líder soviético Nikita Khrushchev, outro personagem razoavelmente burlesco que foi determinante no seu tempo. Mas esse ao menos tinha alguma piada e não fazia explodir aviões de passageiros no ar.

                            Atualidade, Etc., Memória