Arquivo de Categorias: Memória

Coimbra-Z

Coimbra Z

Está a correr no Facebook «Que tipo de estudante de Coimbra és?», um inquérito a merecer uns minutos de atenção e que pode servir de case study. Mais do que pelo resultado final que cada um dos inquiridos obtenha, importa seguir o tom tardo-castiço e o valor micro-sociológico das perguntas e das opções de resposta oferecidas. Para memória futura, como diria o tal.

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    Atualidade, Memória

    «Tá láa!…»

    Raul Solnado

    Nunca apreciei muito o humor de Raul Solnado. Algumas das razões desta desafectação percebem-se vendo ou revendo no YouTube pedaços dos seus anos dourados. Solnado fez rir gerações para as quais a levíssima insinuação da «malandrice» constituía um sinal de transgressão, a momice representava um corte num tempo pontuado por rigorosas máscaras, e o abuso do trocadilho perturbava uma fala pública ainda demasiado rígida, o que não foi pouco. Mas esse não era já o padrão de humor requerido por alguns dos da minha geração, e daí o inevitável distanciamento. Afinal também não ríamos com Fernandel, Totò ou Mario Moreno, o «Cantinflas». Recordo, no entanto, muitas pessoas que escutavam pela enésima vez os 45 rotações em vinil com a «ida à guerra» ou «o bombeiro», e pela enésima vez riam com textos que já conheciam de cor. Ou que iam ao Maria Vitória ou ao Variedades de propósito para o ouvirem. A essas, e a muitas outras – por vezes fora do registo da comédia –, Raul, o artista popular, ofereceu inesquecíveis instantes de divertimento e de felicidade. Suficientes, independentemente do gosto de cada um, para que a sua partida tenha deixado a nossa vida colectiva um pouco mais pobre e sisuda.

      Apontamentos, Memória

      «Foot-ball praticado was very bonito. Splendid!»

      Bobby Robson

      Na noite passada, a Sky News apresentou um programa sobre a vida e a obra de Sir Robert William Robson. Omitiu, no entanto, a sua passagem por Portugal, onde entre 1992 e 1996 treinou o Sporting e depois o FC Porto. E referiu José Mourinho apenas para dizer que este conheceu Bobby Robson no Barcelona, o que aliás não é verdade: foi em Lisboa que se encontraram e foi em Alvalade que começaram a colaborar. A atitude da Sky é, para nós, particularmente injusta. Desde logo porque aqueles foram anos intensos da vida de Robson, que este relembraria depois inúmeras vezes, ligados também, em especial ao serviço do Porto, a êxitos desportivos importantes. Depois porque a sua forma de trabalhar, a sua personalidade forte e a sua bonomia, associados a um portinglês inconfundível e espectacular, o transformaram num dos estrangeiros mais populares no nosso país, o que ficou agora bem patente na forma como inúmeras pessoas – até Sousa Cintra, que o despediu do Sporting mas entretanto reconheceu o erro – o evocaram de forma inequivocamente comovida e carinhosa. E também porque Bobby Robson foi um treinador e um profissional de futebol raríssimo por estes lados: daqueles que via no desporto do qual gostava e ao qual dedicou a vida inteira, como não se tem cansado de recordar quem o conheceu de perto, uma fonte de prazer e uma forma positiva de passar a correr por este mundo, não um problema constante para o fígado. No fim de contas, Sir Bob, o treinador que costumava esquecer-se dos nomes dos seus próprios jogadores, jamais deixou de ser um gentleman abroad. Por um acaso em comissão de serviço no universo pouco cavalheiresco do futebol.

        Apontamentos, Memória, Olhares

        Mundo transitório

        Fharenheit 451
        Oskar Werner e Julie Christie em Fahrenheit 451 (1966)

        Conversando com uma jornalista espanhola a propósito da edição de Ahora y Siempre (Now and Forever, um compilação de short stories publicada originalmente em 2007), Ray Bradbury, que aos 89 continua a escrever e a publicar, mostra-se o homem conservador que sempre foi. Particularmente quando lhe falam da actualidade e do futuro do livro. Aí irrita-se visivelmente, exalta-se mesmo, perde com facilidade a compostura. Perante a Internet, o autor de Fahrenheit 451, o romance distópico que hiperboliza o valor do livro, da sua imortalidade e da sua capacidade para transformar o mundo, subverte mesmo o seu antigo horror à destruição da palavra escrita pelo fogo: «Que queimem a rede em vez de queimarem livros!». Diante da revolução do e-book: «Isso não são livros. Os livros apenas têm dois cheiros: o do livro novo, que é bom, e o do livro usado, que ainda é melhor.» Face à possibilidade do fim das bibliotecas tal qual as conhecemos: «Não permitirem que acabem com elas, nem que tenha de me meter lá dentro para evitá-lo.» É pungente, sobretudo para quem partilha com Bradbury o amor profundo pelos livros em papel, pelas bibliotecas imensas e odoríferas, com os seus recantos únicos, obscuros e misteriosos, acompanhar tal defesa de um mundo transitório que, mais coisa, menos coisa, daqui por uma década não passará de território reservado a cientistas e iniciados. E, para a maioria das pessoas, de vestígio de um passado remoto que outras gentes edificaram.

          Memória, Olhares

          Uma noite inesquecível

          Man in the moon

          Sei onde estava há exactamente quarenta anos. A noite era mais fria do que esta, apesar de já ser Julho e determinados mitos urbanos afirmarem agora que os verões eram sempre insuportavelmente quentes. A televisão, uma Blaupunkt a preto e branco (ou seria uma Nordmende?), crepitava de vez em quando, ameaçando desistir. Preparávamo-nos – já só eu e o meu pai teimávamos num serão que se previa longo – para seguir, um tanto cépticos mas bastante excitados, as últimas manobras de alunagem da Apollo 11. Dali a horas, entrava-nos na sala um eco chegado do outro mundo: «That’s one small step for man, one giant leap for mankind». Na estação de Cabo Canaveral urrava-se, pulava-se, celebrava-se. Nós dois permanecemos calados, pensando, zonzos de sono, incrédulos, não passar tudo de um sonho. Fomos deitar-nos sem trocar uma palavra.

          [audio:http://aterceiranoite.org/sons/armstrong.mp3]
            História, Memória

            A memória também se arrepia

            Parecerá talvez um pouco estranho, provavelmente absurdo, um post como este sem o vídeo ao qual se refere a acompanhá-lo. Afinal, existem na Internet centenas, provavelmente milhares, de pequenos vídeos artesanais gravados por estes dias nas ruas de Teerão. Mas vi há dois ou três dias um muito particular, do qual por lapso não guardei o link – e daí a sua ausência –, que quero evocar aqui.

            «Então é assim»: eu não sei quantos leitores deste blogue algumas vez participaram, sob ditadura, uma qualquer ditadura, naqueles momentos que antecedem uma manifestação de rua proibida, com todas as hipóteses de acabar mal e ser reprimida. Eu já, infelizmente e graças a Deus. Várias vezes, e de forma tão próxima, tão intensa, que após duas delas acabei o dia com os ossos na prisão. Da segunda vez, o episódio valeu-me mesmo uma guia de marcha para três anos de serviço militar obrigatório, quando deveria era estar a estudar, a ver cinema e a namorar. A situação que quero invocar é, no entanto, apenas uma circunstância, um fragmento desses momentos, cuja lembrança foi subitamente acordada.

            Recordar-se-ão aqueles que partilham dessa experiência de manifestante ilegal que corre riscos, dos momentos que antecedem o clímax do protesto e a repressão: de início apenas um estranho silêncio, depois um rumor seco, vozes esparsas e em surdina, as pessoas todas muito juntas, ombros com ombros seguindo nos passeios, os olhares a medir o terreno, tensão no ar, as figuras casuais dos óbvios polícias à paisana, o ruído dos passos que batem no chão, compassados, antes ainda de se começar a gritar, primeiro a duas, depois a três, a cinco, a dez vozes, e de repente em uníssono. Revisitei tudo isto, mesmo sem perceber uma palavra daquilo que as pessoas murmuravam, e depois gritavam, ao ver o tal vídeo de rua gravado em Teerão. E senti, juro, a memória a arrepiar-se. Deve ser da idade.

              Atualidade, Memória, Olhares

              Palma

              Palma Inácio

              Aos 87, morreu Hermínio da Palma Inácio, o nosso Zorro. Nunca se adaptou verdadeiramente ao desaparecimento do capitão Rámon do Vimieiro, seu arqui-inimigo. Um dia Natália Correia apontou-o como o «último herói romântico de Portugal». Goste-se muito ou pouco do estilo da personagem, ficamos a dever-lhe a coragem e o exemplo.

                Apontamentos, Memória

                «Caminharemos de pés nus»

                Prisioneira não identificada

                Escrevo durante uma pausa na leitura coerciva de No Inferno dos Khmers Vermelhos, de Denise Affonço (Pedra da Lua). A autora é uma sobrevivente do imenso campo de morte e atrocidades no qual, entre 1975 e 1979, se transformou todo o Camboja. Naqueles quatro anos, pelo menos 1,7 milhões de pessoas, cerca de 20 por cento da população, sucumbiram à fome, às doenças, aos trabalhos forçados, à tortura e às execuções sumárias. O objectivo do poder khmer, apoiado num exército de adolescentes fanatizados e aplicados em impor um sacrifício colectivo purificador, era o regresso imediato, sem qualquer transição ou cedência, a uma vida rural, absolutamente primitiva, assente nos princípios do que consideravam ser o comunismo integral. A construção acelerada da distopia perfeita. O extremo horror pode ser revisitado observando certas normas impostas aos milhões de cidadãos-prisioneiros: «é proibido exprimir sentimentos de alegria ou de tristeza», «é proibido ter saudades do passado», «nunca nos devemos queixar do quer que seja». Ou algumas das apertadas regras relativas à aparência: «nunca devemos usar roupas de cor», «caminharemos de pés nus: acabaram os sapatos e os chinelos», «as pessoas com problemas de vista deixarão de ter direito a usar lentes correctoras», «quando estivermos sentados (…) é proibido cruzar as pernas, sinal exterior do capitalismo», «trabalharão todos os dias do nascer ao pôr-do-sol; sábados, domingos e feriados são abolidos». Um terrífico relato de viagem ao território mais recôndito da impiedade e da maldade humana.

                  Democracia, História, Memória

                  Começo de uma era

                  De walkman pela estrada fora

                  A música verdadeiramente portátil começou nos inícios da década de 1960, com a vulgarização do rádio transistorizado, do gira-discos e do gravador de pilhas. Eles foram instrumentais no lançamento de uma nova cultura popular centrada na música urbana e nos seus ambientes. Mas essa era uma experiência ainda partilhada, vivida em grupo ou exibida diante dos outros, na praia, em piqueniques, em bailes de garagem. Só o aparecimento do walkman rompeu com tal dinâmica, transformando a portabilidade da música em mantimento do individualismo galopante que emergiu nos eighties. Forneceu também a possibilidade de um novo tipo de apropriação cinematográfica do quotidiano, hoje reforçada com a banda sonora infinitamente renovável, transportada por cada um no seu leitor de mp3. No entanto, quando o processo começou, há mais ou menos três décadas atrás, toda essa mudança parecia ainda mais do que improvável. «Diziam que eu devia estar maluco para andar por aí de auscultadores», conta o alemão-brasileiro Andreas Pavel, inventor do stereobelt, estreado em 1972, sete anos antes da Sony lançar no mercado o seu primeiro walkman comercial, mas ignorado na altura pelos grandes fabricantes. O começo deste pedaço da história recente, início provável de uma nova era na utilização banal ou celebratória da música e na construção sensorial do mundo, é contado aqui.

                    Etc., Memória, Música

                    Memória do ódio

                    Louis Darquier

                    Má-fé é a biografia de um canalha. Louis Darquier (1897-1980), que acrescentaria ao nome próprio um «de Pellepoix», foi um fascista e um anti-semita convicto e militante pelo menos desde os anos 30. Membro da Action Française, da Croix-de-Feu e das Jeunesses Patriotes, atingiu o topo da carreira entre 1942 e 1944, sob a administração nazi, onde, como chefe do Comissariado-Geral para os Assuntos Judaicos, teve a principal responsabilidade na deportação em massa de judeus franceses. Mas viveu também como um escroque (foram sucessivas as fraudes e golpaças nas quais se viu envolvido), um incapaz (viria a ser demitido pelos próprios alemães), um mentiroso (inventando mesmo uma origem social que jamais teve) e um sádico (o livro menciona situações diversas). Foi ainda um pai detestável, abandonando em criança a única filha, Anne, que a autora viria a conhecer por um acaso como psiquiatra, servindo o encontro entre ambas como ponto de partida para este livro. Já perto do final da vida, na Espanha de Franco que o protegeu da extradição e da condenação por colaboracionismo, Darquier tornar-se-ia ainda um dos primeiros negacionistas do Holocausto, ao declarar, em entrevista ao L’Express, que em Auschwitz as câmaras de gás teriam sido utilizadas apenas para exterminar piolhos. Um relato, negro mas dolorosamente útil, centrado na memória do ódio. [Carmen Callil, Má-fé. Uma história esquecida de pátria e família. Trad. de António Belo. Pedra da Lua, 712 págs.]

                      História, Memória

                      WW e o 4 de Julho

                      Walt Whitman

                      Mesmo à medida das mentes acossadas da casta dirigente da Coreia do Norte, a escolha deste 4 de Julho para lançar mais sete mísseis balísticos sobre o Mar do Japão. Aliás, já em 2006 haviam feito a mesma coisa. O aniversário da Declaração de Independência dos Estados Unidos América – documento fundador do mundo contemporâneo que em 1776 preludiou a Revolução Francesa e questionou o domínio colonial dos europeus – pareceu-lhes uma óptima data para demonstrarem com fogo-de-artifício as saudades que têm da Guerra Fria. Só que no mesmíssimo dia, embora em 1855, Walt Whitman publicou a primeira edição de Leaves of Grass, impressa na Rome Brothers. Bem vistas as coisas, talvez esta data possa não agastar menos os norte-coreanos. E também os seus comparsas de outras latitudes.

                      FOR YOU O DEMOCRACY

                      Come, I will make the continent indissoluble,
                      I will make the most splendid race the sun ever shone upon,
                      I will make divine magnetic lands,
                      With the love of comrades,
                      With the life-long love of comrades.

                      I will plant companionship thick as trees along all the rivers of America, and along the
                      shores of the great lakes, and all over the prairies,
                      I will make inseparable cities with their arms about each other’s necks,
                      By the love of comrades,
                      By the manly love of comrades.

                      For you these from me, O Democracy, to serve you ma femme!
                      For you, for you I am trilling these songs.

                      Walt Whitman – Leaves of Grass

                        Atualidade, Memória, Poesia

                        Em volta do esquecimento

                        Comboio da Memória

                        Depois de em 2005 ter publicado Pós-Guerra, Tony Judt passou a ser um dos historiadores do mundo contemporâneo mais conhecidos fora dos circuitos universitários. Mas O Século XX Esquecido, editado posteriormente, aproxima-se mais de The Burden of Responsability, lançado em 1998, um livro sobre a tradição intelectual francesa do período inaugurado com a vitória dos aliados que se inscreve num dos interesses estáveis de investigação de Judt. A edição portuguesa omite a palavra que se destaca no título original – Reappraisals, reavaliações – e é pena que o tenha feito, pois o volume, agrupando 23 ensaios escritos entre 1994 e 2006, propõe justamente uma série de olhares bastante originais, apoiados por uma excelente capacidade de argumentação e apresentados sob a forma de regressos, de releituras, a realidades relativamente recentes que a vertigem da «era do esquecimento» se tem encarregado de suprimir.

                        Do conjunto emergem duas preocupações maiores de Judt. A primeira enfrenta o «desaparecimento do intelectual» como instrumento de uma consciência crítica do seu tempo, cuja herança não está garantido que sobreviva às mudanças actualmente em curso. A outra diz respeito à aceleração dos processos de esquecimento do passado e de instrumentalização da memória. Ambas atravessam as quatro partes nas quais os ensaios escolhidos foram arrumados. A inaugural apresenta um conjunto de viagens ao «coração das trevas», olhando de perto a trajectória de intelectuais que de diferentes maneiras se confrontaram com a experiência totalitária: Arthur Koestler, Primo Levi, Hannah Arendt e o agora quase esquecido Manès Sperber, inequivocamente observados com um respeito enorme pela dificuldade extrema das suas escolhas e do seu trabalho solitário. Já a segunda parte, ocupando-se do «compromisso intelectual», regressa de uma forma crítica e bastante original à obra de Albert Camus, Leszek Kolakowski, Edward Said, Eric Hobsbawm, Louis Althusser e Karol Wojtyla, os dois últimos glosados de um modo particularmente cáustico.

                        Nas terceira e quarta partes intervêm outros interesses de Judt, que vão da história política e cultural da Europa a partir do pós-Segunda Grande Guerra, narrada ponderando a relação das diferentes experiências nacionais com os seus diversos «lugares da memória» – apropriando-se aqui do conhecido conceito lançado por Pierre Nora – à evolução da sociedade americana desde os tempos duros da Guerra Fria aos anos de George W. Bush e da vertigem neocon. Pelo meio dois importantes artigos relativos à história de Israel – onde Judt, de ascendência judaica, viveu parte de uma juventude militante e idealista envolvida na experiência inicial dos kibutzim – , contendo a crítica de uma arrogância belicista que não parou de crescer a partir da Guerra dos Seis Dias (1967), bem como a defesa de um «Estado binacional». Posições que lhe valeram o ódio e actos de vindicta por parte de organizações judaicas, em particular algumas das sediadas nos Estados Unidos. Quase sem momentos fracos, O Século XX Esquecido é um livro soberbo, cuja leitura nos pode ajudar bastante a decifrar o presente que nos cabe viver.

                        Tony Judt, O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias. Tradução de Marcelo Felix. Edições 70, 464 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Junho]

                          História, Memória

                          Despromoção

                          Franco e Salazar

                          Francisco Franco y Bahamonde, antigo «caudillo de España por la gracia de Dios», acaba de ser publicamente despojado, pelo Ayuntamiento de Madrid, dos títulos e mercês de alcaide honorífico, filho adoptivo, medalha de ouro e medalha de honra da cidade. Após, há algum tempo, a Universidade de Santiago de Compostela lhe ter invalidado, «por falta de méritos», o doutoramento honoris causa. Com muitas pessoas a favor e umas quantas contra. Por aqui, o ajuste de contas com o corpo físico e simbólico da ditadura tem sido tratado quase sempre de uma forma menos frontal. Abstraindo os pontuais assomos iconoclastas dos meses do PREC, a solução adoptada passou quase sempre pelo emudecimento dos apectos práticos do passado do regime, pela ligeireza das atitudes incriminatórias, pelo elidir da dimensão do mal, pelo arejamento das responsabilidades dos seus protagonistas. Daí à presente esteticização do ditador local, do tempo que ensombrou e dos valores que soube impor, foi um passo apenas.

                            Atualidade, História, Memória

                            O filme a andar para trás

                            Ismail Kadaré

                            Ser-se ex-maoísta ou um antigo pró-chinês pode não ser condição invulgar para um europeu que ronde hoje os 50 ou 60. Existem bastantes, alguns deles sentados até, com razoável firmeza, em very high places. Agora ter-se vivido algum tempo, nos idos de setenta, como «amigo da Albânia», parece coisa exótica, aparentemente inexplicável. Para lá da fidelidade política que mantínhamos perante uma espécie de micro-utopia que acreditávamos ter descido à Terra, tenho procurado entender as circunstâncias que levaram um grupo de jovens como nós, razoavelmente instruídos e assumidamente revolucionários, a aderir a tal causa. A ignorância, talvez, sem dúvida, mas o desejo de vermos materializado um ideal ascético de igualdade e militância seria a principal razão: a pobreza generalizada parecia-nos sobriedade, a monotonia dos discursos era para nós rigor, os traços caquécticos da classe dirigente eram rictos resultantes de uma vida com responsabilidades de Estado, o kitsch de um realismo socialista estéril e serôdio era uma marca excelsa e exemplar de um futuro que críamos inevitável. O nosso idealismo de «amigos da Albânia» – como o dos amigos da URSS, ou da RDA, ou de Cuba, por sua vez nossos mortais inimigos – fazia-nos ver claramente aquilo que queríamos ver e desejávamos, acima de tudo, revelar aos outros. De tal forma que olhávamos até com suspeição O General do Exército Morto, do albanês Ismail Kadaré, um «escritor de regime» demasiado «psicologista» que afinal não se parecia muito com outros escritores, para nós realmente exemplares, como o Nikolai Ostrovsky de Assim Foi Temperado o Aço, ou o Jorge Amado da Seara e dos Subterrâneos. Percebi isto um pouco melhor, e vi o filme andar para trás em câmara lenta, quando li parte da recente entrevista de Kadaré – vencedor do último Prémio Príncipe das Astúrias de Letras – à Folha de São Paulo.

                            Folha – É favorável à entrada da Albânia na União Europeia?
                            Ismail Kadaré – Sim. É a única esperança para que os Balcãs entrem numa via de desenvolvimento normal. Ironicamente, o povo mais pró-europeu e ao mesmo tempo mais pró-americano são os albaneses. É curioso, porque era o povo mais estalinista. Há uma lógica interna para isso. Passamos de um extremo a outro, como uma reacção.
                            Folha – E como foi a questão da dissidência ao regime, no seu caso?
                            Ismail Kadaré – Na Albânia não se podia ser publicamente contra o regime, era totalitarismo absoluto. Mas pela literatura era possível contestar o regime. Tudo que escrevi e publiquei foi feito nesse contexto. Nunca fiz ataques directos ao Estado, somente ironias escondidas, um pouco mais evidentes às vezes. Quando me perguntam se sou um dissidente digo não. Sou um escritor normal, num país anormal. E isso já é muito.
                            Folha – Mas teve um período de apoio ao regime, não?
                            Ismail Kadaré – Desde o começo tive reservas ao regime, ainda que elas não fossem tão conscientes. Se você ama a literatura, não pode amar o regime comunista. Não pode amar ao mesmo tempo Macbeth e a direcção do comité central de Estaline.

                              História, Memória

                              O regresso de Costa

                              Afonso Costa

                              Cerca de cem anos depois, a figura, a acção e o pensamento (se assim lhe podemos chamar) de Afonso Costa (1871-1937) – com Salazar, Cunhal e Soares, um dos quatro grandes políticos que protagonizaram o nosso século XX – continuam a levantar poeira e alguns engulhos. Na recém-publicada colectânea Portugal – Ensaios de História e de Política, Vasco Pulido Valente dá-nos um texto verrinoso, polémico, mas ao mesmo tempo bastante estimulante, sobre o prócere do nosso jacobinismo tardio. Num post titulado «Psicografia do Dr. Afonso Costa», agora é a vez de Nuno Resende pegar num velho artigo de Carlos Malheiro Dias e retomar a retórica anticostista, desenvolvida durante décadas por católicos ressentidos, monárquicos levemente coléricos e salazaristas da primeira geração. É capaz de merecer a pena, quando se aproxima o inevitável fragor associado ao centenário da República, que às comemorações oficiais e oficiosas possa também ficar ligada alguma controvérsia. Será bem mais útil e interessante.

                                Atualidade, História, Memória

                                Fim de uma era

                                Kodachrome

                                A decisão não surpreende, pois 70 por cento das receitas da Kodak chegam já da fotografia digital, mas o anúncio da descontinuação dos rolos de Kodachrome não deixa de marcar o fim de uma era. Tratou-se da primeira película de cor a chegar a um mercado alargado, aquela de que a maioria dos fotógrafos, principalmente os profissionais – tal como acontecerá anos depois com alguns realizadores de cinema –, se serviu a partir de 1935. Para trás fica agora um cruzamento único das vias da reprodutibilidade da cor com a popularização da ars photographica. E as palavras da velha canção de Paul Simon, evocando tons e olhares perdidos para sempre: «they give us those nice bright colors, / they give us the greens of summers / makes you think all the worlds a sunny day, oh yeah.» Paz à sua alma.

                                  Memória, Olhares

                                  Reencontro

                                  Robert Creeley

                                  Reencontrei por um acaso, nas rápidas arrumações do duplo feriado, Home, um disco soberbo que me acompanhou durante parte do inverno de 1980/81. Uma música que na altura me aproximou, e muito, da poesia de Robert Creeley (1926-2005). Os músicos são do melhor: a voz de Sheila Jordan, mais Steve Kuhn, David Liebman, Steve Swallow, Lyle Mays e Bob Moses. Um acaso feliz, o regresso a um certo passado. Aqui, a Some Echoes.

                                  Some echoes,
                                  little pieces,
                                  falling, a dust,

                                  sunlight, by
                                  the window, in
                                  the eyes.  Your

                                  hair as
                                  you brush
                                  it, the light

                                  behind
                                  the eyes,
                                  what is left of it.

                                  [audio:http://aterceiranoite.org/sons/some echoes.mp3]

                                    Memória, Música, Olhares