♪ Melodia de sempre.3
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Marino Marini e o seu Quarteto – Volare |
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Marino Marini e o seu Quarteto – Volare |
«Na madrugada de 17 de Setembro de 1939, e sem que nada o fizesse prever, o Exército Vermelho invadiu a Polónia ao longo da fronteira polaco-soviética.» A iniciativa resultou dos termos do protocolo apenso ao Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético, os quais previam a desintegração política da Polónia e a distribuição do seu território pelas duas potências signatárias. Afinal prevista e preparada a pormenor, esta surpreendente operação confrontou a Europa com um dos primeiros grandes dramas colectivos que iriam atravessar a Segunda Guerra Mundial. O forte controlo da informação e uma intervenção aguda da propaganda, cuja importância as circunstâncias da Guerra Fria irão depois acentuar, fizeram entretanto com que tudo aquilo que ocorreu no interior dos territórios controlados pelas autoridades soviéticas tivesse permanecido longe dos olhares da opinião pública e fora dos compêndios de história. Assim, só após a queda do Muro e a dissolução da União Soviética, a abertura de arquivos até aí reservados ou mesmo secretos, a perda do medo por parte das testemunhas, e o fim da censura, tornaram possível o conhecimento desses dramas.
A Guerra pelos Olhos das Crianças fala de um deles – o desmoronamento do Estado polaco pela intervenção das forças russas e o período da ocupação que se estendeu entre 1939 e 1941 -, fazendo-o a partir de uma experiência muito particular: a das cerca de 250.000 crianças que o viveram directamente e que, quase sempre absolutamente sozinhas, foram expulsas do conforto das suas casas em 30 minutos, introduzidas à força em vagões para transporte de gado, e deportadas para os confins do território soviético, onde se iriam defrontar com condições de vida infinitamente piores do que aquelas a que estavam habituadas. Próximas, aliás, das que experimentava então a maioria dos camponeses russos, mas mais dolorosas para elas devido à sua condição de excluídas e à completa falta de protecção.
Os seus relatos – pois é a partir deles que é construída a maior parte deste volume – falam de um mundo inaudito, no qual a regra da vida era a luta diária pela sobrevivência mais elementar. Como bem vinca Bruno Bettelheim no prefácio, e ao contrário do que seria de esperar em vozes de crianças, eles «não nos falam de esperança, mas sim de desespero, de maus-tratos e de morte.» Apesar de quase sempre ingénuos na forma, todos eles relatam ainda um processo igualmente difícil, traduzido nas iniciativas de «russificação» forçada dos vestígios de cultura polaca que entre elas ainda pudessem ser conservados. Um livro impressionante de Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, dois autores interessados nos problemas da diáspora polaca, que fica, ainda assim, aquém do sofrimento imenso daquelas crianças deixadas ao abandono. Pois, como conta a pequena Danuta G., natural da cidade de Lvov, «é impossível descrever, só uma pessoa que tenha passado por aquilo é que sabe, as outras pessoas não conseguem perceber».
Irena Grudzinska-Ross e Jan Tomasz Gross, A Guerra pelos Olhos das Crianças. A ocupação soviética da Polónia e as deportações. 1939-1941. Tradução de Hugo Gomes. Pedra da Lua, 320 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Maio]
Amsterdão-1967: provos no Vondel Park
Redigida por volta de 1685-1686, a Carta sobre a Tolerância foi publicada pela primeira vez em 1689, nessa mesma Holanda onde o seu autor, John Locke, procurara protecção. Nela se rejeitava terminantemente a ideia segundo a qual se poderia constranger alguém a crer, visando mostrar-lhe o verdadeiro caminho da salvação, e se defendia que as opções no campo do pensamento devem ser completamente indiferentes para as autoridades. Muito antes, durante as guerras de religião do século XVI, os Países Baixos tinham sido já uma ínsula de liberdade e de relativa paz numa Europa intransigente e a ferro e fogo. Aí encontraram refúgio milhares de judeus hispânicos e de protestantes de diferentes tendências, muitos deles a contas com os patíbulos do Santo Ofício se ali não tivessem buscado refúgio. Na década de 1960, Amesterdão transformou-se numa cidade plural e ali nasceram as primeiras comunidades contraculturais de jovens provos, aceites pelas autoridades apesar das suas posições radicalmente não-violentas e anti-sistema.
Pois é nesta mesma Holanda que uma força da extrema-direita nacionalista e xenófoba – o Partido para a Liberdade do Povo Holandês, de Geert de Wilders – acaba de ficar em segundo lugar no decurso das eleições para o Parlamento Europeu, admitindo-se já a possibilidade de vir a ganhar as próximas legislativas. No ponto em que estamos, a situação dá bastante que pensar e recoloca um velho problema que os políticos europeus têm feito por varrer para debaixo do tapete: será legítimo integrar no jogo democrático e na arquitectura do bem comum os grupos e organizações que se destinam precisamente a contestá-los? Precisaremos de vê-los no poder para acordarmos e fazermos algo mais do que piedosas reprimendas?
Adenda – Recebi entretanto um mail de um amigo português que conhece muitíssimo bem a Holanda e me diz que classificar o partido de Geert Wilders como «da extrema-direita e xenófobo» lhe parece «simplificar em demasia a realidade política e social holandesa». Junta ao que me diz um link para um texto de outrem que lhe parece ir ao encontro daquilo que ele próprio pensa. Esse texto pode ler-se aqui. Da minha parte, registo esta opinião, embora muita da informação que me chega às mãos pareça corroborar a leitura que fiz. Incompleta? É muito provável que sim. Por isso esta adenda.
Li há algum tempo, no blogue de um conhecido militante do PCP, uma observação desdenhosa – logo secundada por comentários entusiásticos de leitores – sobre as pessoas que se preocupam com «aquilo» que aconteceu há setenta anos. «Aquilo» eram os crimes do estalinismo, e o que preocupava o conhecido militante era o aproveitamento dessa evocação como arma de arremesso contra o conceito de liberdade que entronca na teoria e rege a prática dos comunistas que não vão em palavrório, continuando, do fundo do coração e do armazém de adrenalina, a acalentar o devaneio de uma ditadura «dos explorados sobre os exploradores». Sendo o vértice do partido marxista-leninista, naturalmente omnisciente, a determinar, sem meias-tintas, quem está de um ou do outro dos lados.
A ideia é absurda, pois tomada à letra anularia o lugar histórico da construção e do desenvolvimento dos movimentos sociais, da emergência do ideal comunista e até da «luta de classes». Além de que, como qualquer pessoa informada e intelectualmente honesta bem sabe, jamais as operações de instrumentalização ou de silenciamento da História foram tão longe quanto o foram nos regimes, pretéritos e presentes, do «socialismo real» e dos seus sucedâneos. O mais grave, porém, é que aquela atitude de desdém atribui ainda à memória, invocada a bel-prazer ou ignorada consoante as metas do momento, um valor de uso, que, como tal, tanto pode ser descartado como servir de moeda de troca.
Afinal, será justo esquecer aquilo que aconteceu há cinquenta ou há setenta anos – para muitos milhões de seres humanos, o silêncio, a solidão, a fome, o desespero, a tortura ou a morte – apenas porque tal serve para iludir a ausência de uma resposta clara, por parte dos comunistas de pedra, às circunstâncias da democracia no nosso tempo? Porque tal permite a defesa de uma democracia mitigada, na qual certas pessoas são mais «livres» que as outras, devendo estas pagar pela «liberdade» das primeiras? Trata-se também aqui, para quem não pensa dessa forma, de um «dever de memória», materializado na obrigação de evocar o horror para recordar os mártires e, ao mesmo tempo, para evitar que o futuro revisite os crimes que os esmagaram.
Os acontecimentos de Tiananmen ocorreram há muito menos tempo, perfazem-se agora vinte anos, e a sua evocação pelos grandes meios de comunicação tem, por vezes, muito de protocolar e farisaico. As imagens guardadas e divulgadas dos episódios de Junho de 1989 foram até, de tão repetidas, perdendo parte do seu sentido dramático. Por isso, agora é mais a sua omissão, o silêncio de determinadas vozes, que ganha um particular significado. Omitir Tiananmen, apagar aquele acto de revolta juvenil e eventualmente ingénua que, como na Budapeste de 1956 ou na Praga de 1968, materializou o apoio da rua, popular em sentido lato, a uma tentativa de democratização de um regime comunista ao velho estilo, é pois sustentar uma espécie de «dever de esquecimento». Aplicado em nome de regimes e de programas para os quais a democracia, escrita com minúsculas, não passa de factor de verborreia e elemento de propaganda.
É importante lembrar os acontecimentos de Tiananmen. É socialmente higiénico, historicamente justo e politicamente necessário, atendendo à actual situação dos direitos humanos e das liberdades na China. Mas, lembrando, reparar também naqueles que os silenciam ou menorizam. Para acalentarem, porque a espécie se não extinguiu, o ovo da serpente.
A reunião de Hugo Chávez com «intelectuais socialistas e revolucionários», destinada a atenuar o impacte de um encontro internacional sobre liberdade e democracia a decorrer ao mesmo tempo em Caracas, por causa do qual Mario Vargas Llosa ficou retido e foi enxovalhado em pleno aeroporto da capital venezuelana, faz, pelo simples facto de afastar, enquanto intelectuais, essas pessoas das «outras», ecoar ideias velhas e perigosas. Evocar tempos sombrios que saltam do além-túmulo para atemorizarem os vivos. A possibilidade enunciada de existir quem possa pensar, escrever, falar, representar, pintar ou filmar de um modo objectivamente «patriótico», «socialista», «revolucionário» – ou mesmo «proletário», como se tentou noutros lugares –, naturalmente situada num lugar privilegiado de acesso ao poder «revolucionário» e às honrarias destinadas aos melhores cidadãos, abre sempre as portas a um universo monolítico e carcerário. Ao qual, pela menorização social e pelo castigo objectivo determinado pela sua diferença, são confinados todos os que se atrevam a pensar à margem do paradigma celebrado. Mesmo aqueles que pisem, solitários e sem programa político visível, o seu próprio caminho. Os autoproclamados «intelectuais socialistas e revolucionários» deveriam ser os primeiros a percebê-lo – para mais com a experiência histórica do seu lado –, recusando aceitar o estatuto de casta ou servir de tropa de choque. Mas preferem acobardar-se, vestindo a camiseta vermelha e tomando-se por valentes.
Para nós – falo de quantos viveram o Potemkine como fantasma e paradigma de uma revolução sonhada e adiada anos a fio – o filme foi sempre mais acto de clandestinidade do que acto de subversão. Quem não recorda essas sessões (anos 60, 70) em casa de amigos, que tinham trazido uma cópia do filme de Paris ou de Londres, em que um projector alugado de 16 ou Super 8 mm acendia num lençol a fingir de ecrã as imagens proibidas? Saíamos dessas noites sentido-nos mais transgressores, não mais resistentes. Simbolicamente, um dos dois grandes anacronismos que presidiu à tarde de 1 de Maio de 1974 foi o cartaz anunciando o filme, no Império, ao cimo da Alameda. O Couraçado ancorava em Lisboa. O outro (anacronismo) era essa multidão imensa trauteando A Internacional, cuja versão portuguesa por completo desconhecia.
João Bénard da Costa, «Histórias da Clandestinidade»,
Os filmes da minha vida. Os meus filmes da vida, vol. 1.
Pela década de 1960, ambém eu fazia parte daquela maioria de portugueses para os quais o Festival da Eurovisão representava um momento relevante das suas vidas. Uma diversão rara, num quotidiano onde elas escasseavam, e, em parte por influência do canal único da televisão, uma espécie de fórum internacional de transcendente importância. Dos poucos nos quais Portugal era ouvido, ainda que apenas sob forma canora. As expectativas eram sempre grandes e alguns jornais traziam até umas tabelas para os seus leitores irem anotando, ao longo do serão, a votação dos diversos júris nacionais. No que me dizia respeito, todos os anos agarrava num lápis, numa régua e numa folha de papel quadriculado, e desenhava uma outra tabela, para a qual convocava a atenção dos adultos que se juntavam à frente do televisor na esperança de vibrarem com uma cançoneta como vibravam com os golos europeus do Eusébio. E todos colaboravam, não sei se por condescendência se com verdadeiro empenho.
O fim da noite, como se sabe, era sempre tristonho e desconsolado, com a cantoria nativa invariavelmente entre os piores classificados. E se o último lugar jamais aconteceu, foi porque o júri madrileno acamaradava connosco e, por obra e graça da solidariedade franquista, nos dava os pontos suficientes para escaparmos à tangente da humilhação das humilhações. A mágoa era enorme e recordo-me muito bem de uma vez ter até chorado de raiva e impotência. O que servia de consolo era que no dia seguinte os jornais faziam coro com a cólera dos portugueses e davam a entender que a pátria tinha sido enxovalhada por uma qualquer intriga da responsabilidade conjunta do comunismo internacional e das ingratas social-democracias europeias. A verdade é que ainda hoje, sempre que se aproxima mais uma das monumentais exibições de kitsch nas quais se transformou o Festival – nesta precisa noite apresentado aos berros, em inglês, a partir da outrora funesta Moscovo – experimento uma secreta esperança revanchista, indelével cicatriz deixada na alma pelo oxigénio salazarista: «Será desta? Será desta?»
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Há vinte anos ainda era assim. Faltava pouco para deixar de o ser.
Existem dois versos de Brecht, retirados de Aos nascidos depois de nós, que dizem tudo sobre um certo tipo de infâmia que se passeou triunfante pelo meio dos homens: «Nós, que quisemos preparar o terreno para bondade / Não pudemos ser bondosos.»
Não vivemos em guerra, pelo menos por enquanto, nesta parte do mundo que nos cabe habitar. E todavia precisamos de coragem para enfrentar um dia, depois o outro, num tempo em que o nosso futuro material se tornou imprevisível, quando os laços pessoais são cada vez mais instáveis, quando o horizonte ecológico se mostra mais sombrio, quando a História acelera e desafia a todo o instante as nossas capacidades de adaptação. Mas onde encontrar hoje modelos de coragem? Diferentemente do tempo no qual se destacavam as figuras modelares do herói ou do santo, agora não existe um, ou dois, mas sim inúmeros exemplos de coragem, medidos por diferentes bitolas. No limite, cada um de nós pode servir-se do que lhe parecer conveniente: Aquiles, o guerreiro homérico, ou o ser «condenado a ser livre» de Sartre, o grande homem ou o homem comum, o sábio eminente ou o herói por um dia que vemos no telejornal. Aqui não há lugar para o relativismo: todos eles põem em campo, cada um à sua maneira, paciência e perseverança, acção e reflexão, conhecimento e ousadia. É da essência da coragem, dos seus novos padrões, e de algumas pessoas corajosas, que trata o último número, o 29, da revista francesa Philosophie Magazine. Para perceber um pouco melhor como eles mudaram e não mudaram ao mesmo tempo. [Este texto apropria-se parcialmente, reescrevendo-o, de um parágrafo da PM.]
Pete Seeger faz hoje 90 anos, pois claro.
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O número do semanário Visão que saiu na semana passada atribui-me, com algum destaque, uma frase que apareceu no Público: «Em Coimbra, há 40 anos, bebia-se e amava-se despudoradamente.» A tirada saiu, de facto, num artigo do diário para o qual fui ouvido, mas é do realizador João Botelho, antigo activista estudantil e à época dirigente do CITAC. Acontece uma troca destas logo comigo, que tenho andado por aí a dizer à boca cheia que a «crise de 69» representou um ponto de viragem, um momento novo, mas inicial, ainda algo tímido, na construção de uma nova sociabilidade estudantil coimbrã. A frase de João Botelho, que me perdoe o próprio, soa aliás a uma nostalgia – talvez até um nada megalómana e autocentrada, como acontece na maioria das histórias de caça – que não faz bem o meu género.
A memória supérflua do meu pré-Abril está cheia de sabores, odores, sonidos. O gosto do refrigerante Canada Dry, consumido como sucedâneo da acossada Coca-Cola. O dos chocolates Candy-Bar com recheio, nos quais fui viciado. O do melão verde escuro vendido porta-a-porta. O cheiro a tinta do Século Ilustrado que saía aos sábados. E o do creme Benamor usado pelas senhoras. O da cola Peligon. O da graxa para sapatos nas manhãs de domingo. O compasso dos tangos e pasodobles no Programa da Manhã da Emissora Nacional. Os Shadows a tocarem Apache. O Nat King Cole. A Filarmónica transpirando Verdi atrás do turíbulo de Agosto. O fado no rádio de pilhas. O toque de caixa no 10 de Junho. Como tudo passava devagar e na aparência nada sucedia, havia tempo para registar os detalhes. Ainda à sombra do retrato do velho.
Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.
Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.
Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.
Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.
Vale a pena confirmar no El País de hoje aquilo que já se sabia: a Dona Maria del Socorro Tellado (1926-2009), poeta de tantas mulheres solitárias e de uns quantos homens não menos abandonados, mulher «muy lanzada, que montaba en bicicleta cuando estaba mal visto y que fumaba cigarrillos a escondidas», era uma grande fingidora.
Me emocionan las cosas reales, las que palpo, las que tienen vida. No me seducen las puestas de sol, ni las estrellas, ni la luna llena. Yo nunca he dicho ‘te amo’, ‘te quiero’, ‘vida mía’. Sólo lo sugiero en las novelas para que se emocionen otros. A mí me conmueven los animales, los prados, las personas, la roca viva, los acantilados.
O cachimbo sinalizou repetidamente a imagem projectada por políticos (Estaline, Roosevelt, H. Wilson), escritores (Baudelaire, Joyce, Chandler), actores (B. Crosby, S. Tracy, J. Lemon), filósofos (B. Russell, Sartre), pintores (Van Gogh, Manet), músicos (Coltrane, Mingus), cientistas (Einstein, Oppenheimer) ou personagens de banda desenhada (Haddock, Mortimer). Sem o acessório tabaqueiro, nenhum deles teria sido quem os seus contemporâneos pensaram que foi. Jamais teriam sido quem a história nos conta que foram. Ninguém explorou porém as capacidades da pequena peça fumegante como o actor e realizador Jacques Tati. Em O Meu Tio, As Férias do Sr. Hulot e Há Festa na Aldeia, mais brevemente em Playtime, o cachimbo transformou-se num interlocutor capaz de alvejar o objecto, a situação, o personagem, que de seguida a câmara persegue sem piedade. A sua função não é sorver nicotina, mas antes interrogar, desaprovar, sublinhar. Serve sempre de ponteiro, de microfone, de auxiliar da invectiva, omnipresente e insubstituível no universo tatiano. Mas esse lugar incontornável não bastou para impedir que no poster que divulga em Paris uma retrospectiva da obra de Tati se tenha feito desaparecer do olhar dos cidadãos o «vicioso» cachimbo. Insatisfeitos com a instalação perversa da sua tirania sobre os espaços públicos, os maníacos higienistas querem também apoderar-se do nosso passado.