Aquela tatuagem no braço
Versão de um texto publicado originalmente na revista LER
Pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis de extermínio. As consequências pesadamente traumáticas para os próprios deportados são hoje bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos descendentes mais directos tem permanecido silenciada. Este livro destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos eles nascidos pelos finais da década de 1940, que desafiados pela autora, a jornalista Nadine Vasseur, aceitaram comentar uma condição que os acompanhou a vida inteira mas da qual jamais haviam ousado falar publicamente.
Todos coincidem num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência-limite da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de quem a recebe poder conceber sequer o sofrimento extremo e solitário dos que a conheceram directamente, por outro ela criou nestes uma capacidade de sobrevivência, e de resistência perante a adversidade, que os colocou acima daquelas exibidas pela maioria esmagadora dos humanos, tornando-os pessoas tão admiráveis quanto, obrigatoriamente, «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que jamais deixaram de perturbar aqueles que, na sua condição de filhos, com elas sempre tiveram de conviver: a descrença («ajuda-te a ti próprio, o céu não te ajudará»), a secura («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»), mas também, e talvez acima de tudo, uma imensa capacidade para enaltecer «o imenso valor da vida», traduzida geralmente na pouca vontade de repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo. Para além, naturalmente, do convívio com as sequelas de uma condição pós-traumática que os impelia a calarem-se.
Este volume mostra como foram afinal os seus filhos a transportarem parte substancial do fardo. Todavia, este processo de transmissão do trauma da Shoah não é aqui abordado a partir de uma perspectiva psicanalítica: a autora raramente suscita reminiscências, a não ser aquelas que qualquer pessoa colocaria perante narrativas tão extraordinárias como as que foi ouvindo durante o seu trabalho de recolha. Pelo contrário, vai dialogando com a singularidade de cada testemunho, com o seu carácter sempre perturbante, com a dificuldade sentida por cada um em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos dos pais em noites de pesadelo ou a visão «daquela tatuagem no braço, que sempre conheci».
Uma obra comovente, que contorna a actual «indústria do testemunho» sem desvalorizar a importância crucial da história oral para o esclarecimento do mundo contemporâneo. E que abre um novo caminho a todos quantos se importam com a salvaguarda da memória do totalitarismo nazi, com a luta contra a revisão negacionista da sua dimensão anti-humana e com o prolongamento conflitual do seu impacto no presente.
Nadine Vasseur, Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro. Filhos de Sobreviventes do Holocausto Testemunham. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-09-2