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Aquela tatuagem no braço

Tatuagem

Versão de um texto publicado originalmente na revista LER

Pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis de extermínio. As consequências pesadamente traumáticas para os próprios deportados são hoje bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos descendentes mais directos tem permanecido silenciada. Este livro destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos eles nascidos pelos finais da década de 1940, que desafiados pela autora, a jornalista Nadine Vasseur, aceitaram comentar uma condição que os acompanhou a vida inteira mas da qual jamais haviam ousado falar publicamente.

Todos coincidem num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência-limite da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de quem a recebe poder conceber sequer o sofrimento extremo e solitário dos que a conheceram directamente, por outro ela criou nestes uma capacidade de sobrevivência, e de resistência perante a adversidade, que os colocou acima daquelas exibidas pela maioria esmagadora dos humanos, tornando-os pessoas tão admiráveis quanto, obrigatoriamente, «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que jamais deixaram de perturbar aqueles que, na sua condição de filhos, com elas sempre tiveram de conviver: a descrença («ajuda-te a ti próprio, o céu não te ajudará»), a secura («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»), mas também, e talvez acima de tudo, uma imensa capacidade para enaltecer «o imenso valor da vida», traduzida geralmente na pouca vontade de repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo. Para além, naturalmente, do convívio com as sequelas de uma condição pós-traumática que os impelia a calarem-se.

Este volume mostra como foram afinal os seus filhos a transportarem parte substancial do fardo. Todavia, este processo de transmissão do trauma da Shoah não é aqui abordado a partir de uma perspectiva psicanalítica: a autora raramente suscita reminiscências, a não ser aquelas que qualquer pessoa colocaria perante narrativas tão extraordinárias como as que foi ouvindo durante o seu trabalho de recolha. Pelo contrário, vai dialogando com a singularidade de cada testemunho, com o seu carácter sempre perturbante, com a dificuldade sentida por cada um em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos dos pais em noites de pesadelo ou a visão «daquela tatuagem no braço, que sempre conheci».

Uma obra comovente, que contorna a actual «indústria do testemunho» sem desvalorizar a importância crucial da história oral para o esclarecimento do mundo contemporâneo. E que abre um novo caminho a todos quantos se importam com a salvaguarda da memória do totalitarismo nazi, com a luta contra a revisão negacionista da sua dimensão anti-humana e com o prolongamento conflitual do seu impacto no presente.

Nadine Vasseur, Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro. Filhos de Sobreviventes do Holocausto Testemunham. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-09-2

    História, Memória

    Antonio e Teresinha

    Gramsci

    Os responsáveis pela gestão da Igreja Católica Apostólica Romana têm a memória curta. Ou então mentem muito, violando farisaicamente o 8º mandamento. Pois de que outra forma se explica que só ao fim de 71 anos se tenham lembrado de vir dizer – sem prova alguma para além do carácter «distinto» de quem o diz – que Antonio Gramsci se converteu em devoto de Santa Teresinha do Menino Jesus no leito de morte? Para mim, ex-aprendiz de intelectual orgânico, se a generalidade dos leninistas nossos contemporâneos não fosse semi-iletrada e tivesse lido com um pouco de atenção os Quaderni del Carcere escritos pelo fundador  e antigo secretário-geral do PCI, que enfrentou Estaline e morreu com a saúde arruinada pelos fascistas, diria que se tratava de uma provocação anticomunista, digna dos melhores tempos da Guerra Fria. Nas actuais condições, parece-me apenas oportunismo beato emanado da sempre lúgubre e inesgotável caverna vaticana. Embora, como todos sabemos, no leito de morte já não respondamos por nós.

      Atualidade, Memória

      Os nossos maos

      Maos

      Um excelente texto-síntese sobre a história do maoísmo em Portugal – autodesignado «marxismo-leninismo» num tempo em que a categoria não tinha ainda sido recuperada pelo PCP com a veemência com que o faz agora – é aquele que Miguel Cardina publica nos Caminhos da Memória. Como parte interessada – enquanto actor, testemunha e historiador – só posso mesmo recomendá-lo.

        História, Memória

        Sidney

        Sidney Poitier

        Um post mais do que oportuno do Corta-Fitas evoca o actor Sidney Poitier, o americano «de cor» que abriu atalhos ainda improváveis na década de 1950. Lembra Pedro Correia: «Antes dele, os negros em Hollywood apenas podiam ser mordomos, porteiros de hotel ou pianistas de bar. Depois dele, puderam ser tudo.» A minha memória ainda consegue reproduzir o efeito de sopro que se sentiu em Portugal quando da estreia diferida de Guess Who’s Coming to Dinner / Adivinha quem vem jantar, de Stanley Kramer. O filme é de 1967, mas foi preciso esperar pela balbúrdia marcelista para ele poder correr nas salas de cinema portuguesas. Ver Sidney fazer de Dr. Prentice, o noivo de Joey, uma jovem WASP com uns pais conservadores que rejeitavam o seu amor – e ver um negro e uma branca beijando-se no grande ecrã –, foi na época, para muitos, quase um acto de militância antiracista e anticolonialista. Hoje quase não dá para acreditar, pois não?

          Cinema, Memória

          Um Z contemporâneo

          Zorro

          Adaptação de um artigo publicado em 2006 na revista Penetrarte

          Em A Máscara de Zorro (1998), o filme de Martin Campbell anterior à sequela A Lenda do Zorro, o herói na pré-reforma (Anthony Hopkins) passava o testemunho ao jovem bandoleiro (António Banderas). Entretanto saiu Zorro – O Começo da Lenda, o romance de Isabel Allende no qual se forja a educação e a sina da velha figura de capa, espada e mascarilha. Na página inicial, uma frase curta – «Existem muito poucos heróis de coração romântico e de sangue leviano. Digamo-lo sem rodeios: não há nenhum como o Zorro» – arrasta o leitor para um universo de mistério e intriga que a chilena reinventa, reconduzindo o personagem às suas origens e avançando um passo mais na sua renovação.

          O nascimento do Zorro conta-se em poucas linhas. Quando o galante Douglas Fairbanks casou com a diva Mary Pickford e os dois seguiram em wedding-trip para a Europa – uma espécie de viagem de núpcias para americanos ricos – durante a travessia do Atlântico, Fairbanks, entediado com a monotonia do horizonte, entreteve-se a ler The Course of Capistrano, uma espécie de folhetim publicado em 1919 na All-Story Weekly pelo autor de novelas e de argumentos Johnston McCulley. Por sua vez, este havia-se inspirado em Life and Adventures of Joaquin Murieta: The Celebrated California Bandit (1854), uma obra de pulp fiction do escritor índio John Rollin Ridge (também lembrado por alguns como Yellow Bird). A trama do livro interessou Fairbanks a tal ponto que, de regresso a Hollywood, produziu e protagonizou de imediato a película A Marca do Zorro (1920). Inspirado na figura recriada por McCulley, deu-lhe no entanto um toque pessoal, compondo alguns dos seus traços físicos e inventando o sinal «Z», desenhado, como toda a gente sabe, com três estocadas rápidas e destras de florete. As legendas iniciais – «Na Califórnia, há cerca de cem anos, apareceu um cavaleiro mascarado, protector do povo e carrasco dos seus sanguinários opressores» – fundaram o mito contemporâneo, construído ao longo dos anos através de variantes conotadas com um sentido justiceiro comum. De facto, mesmo nas versões mais inócuas das andanças do Zorro e dos seus sucedâneos – como os que aparecem na série de televisão produzida entre 1957 e 1959 pela Disney, na banda desenhada do Lone Ranger (com o seu companheiro de nome Tonto), semi-plagiada na década de 1930 por Striker e Arbo (adaptada no Brasil e em Portugal como Zorro), ou ainda no talhe essencial da figura redentora de Batman, de Bob Kane – reconhece-se como central a função reparadora daquilo que carece de ser reparado, mesmo quando esta acção é colocada ao serviço de uma ordem dominante que jamais é posta em causa.

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            Memória, Olhares

            Uma lição de João (adenda)

            João Martins Pereira

            Originalmente em Caminhos da Memória

            O texto que escrevi ontem sobre o desaparecimento de João Martins Pereira não era uma evocação nem pretendia servir de obituário. Correspondeu apenas a uma reacção a quente perante a notícia da morte de uma pessoa que não conheci pessoalmente mas me habituei a acompanhar. Na minha biblioteca, em lugar acessível, os seus livros estão encostados aos de António José Saraiva e de Eduardo Lourenço, e julgo que tal poderá dizer alguma coisa a alguém. Ou di-lo a mim, pelo menos. Não falei portanto de algumas das suas intervenções e das ausências me falaram mails que recebi entre ontem e hoje. Não lembrei, por exemplo, a sua proximidade dos processos de fundação do MES e, muitos anos mais tarde, do Bloco de Esquerda. Ou a sua actividade como professor, engenheiro e cronista.

            Mas uma ausência me parece de facto injusta. Num testemunho conciso e comovente saído hoje no Público, Eduarda Dionísio anota o esquecimento de um jornal absolutamente único, publicado a partir de 1975, do qual João Martins Pereira foi director, colaborador e acima de tudo grande entusiasta. Tratava-se da Gazeta da Semana, anos depois reduzida por dificuldades várias a Gazeta do Mês, e do qual até tinha a colecção completa, desaparecida algures junto com um caixote que levou descaminho numa qualquer mudança. Sobraram-me apenas alguns exemplares dispersos, e é de um deles que me sirvo para ajudar a preencher a falha.

            Junho de 1980, artigo «Resistir ou Re-existir» na Gazeta do Mês número 2: «A condição feminina é-me exterior, como o é, num outro plano, a condição operária, a mim, intelectual de extracção burguesa. Libertar-me do complexo de “não ser operário” não é distanciar-me do problema da exploração. É justamente escolher colocar-me, em relação a ele, na única posição que, de boa-fé, me é possível assumir: a da apreensão intelectual, a da “teoria”, a de uma prática solidária, que não a de uma prática vivida (impossível) ou a de uma prática imitada (falsa). Levantemos de uma vez certas ambiguidades persistentes: não posso fazer minha a luta pela emancipação feminina, como não posso fazer minha a luta proletária. Estou com elas. E ao estar com elas, isso determina-me nas lutas que me pertence, a mim, travar.» Parágrafos destes, num tempo dominado agora pelos exageros do politicamente correcto e pelo receio da exposição pública, não existem muitos.

            [Entretanto o Centro de Documentação 25 de Abril disponibilizou online a colecção da Gazeta da Semana]

              Apontamentos, Memória, Opinião

              Uma lição de João

              Fotografia: Dulce Fernandes e Público

              Originalmente em Caminhos da Memória

              Morreu ontem João Martins Pereira. Na Primavera de 1971 comprei um livro seu, Pensar Portugal hoje – publicado pela Dom Quixote em plena «abertura marcelista» -, no qual, entre outros temas urgentes, se abordava já, pela primeira vez de forma explícita e de um ponto de vista reflexivo, o carácter subversivo da mudança de costumes que Portugal se encontrava então aceleradamente a viver. Essa mesma que ainda hoje permanece algo subavaliada por alguns historiadores, em detrimento da ênfase dada a uma mudança política efectiva mas mais lenta e epidérmica. Recorro a um sublinhado meu datado daquele ano:

              «A passagem da rigidez quase total à flexibilidade quase total (…), eis mais uma aprendizagem em que se inicia a classe dominante entre nós. Foi já duro o caminho que a levou dos tempos (não tão recuados) em que nas nossas praias não se podia ver um tronco masculino ao léu (…) até àqueles mais próximos em que os pacatos burgueses saborearam sem pestanejar a fustigação das costas de Romy no filme A Piscina. Aliás (…) no campo dos “costumes” terá tido uma influência decisiva a intensificação dos movimentos de pessoas nos dois sentidos: o turismo estrangeiro em Portugal e as deslocações cada vez mais frequentes de portugueses ao estrangeiro (bolsas, turismo universitário, turismo tout court, a própria emigração). Os portadores da “moral tradicional” viram-se totalmente ultrapassados, e terão talvez ficado surpreendidos que não tenham sido plateias uivantes e babando-se de lascívia as que assistiram aos primeiros nus nos nossos ecrãs. Nada disso: o melhor da nossa burguesia (e não só a intelectual) já estava muito mais «avançada» do que supunham – mesmo a que saía do Blow Up para se encafuar na missa das 7 mais próxima.»

              João Martins Pereira viria anos depois a ser secretário de Estado da Indústria do 4º Governo provisório, acompanhando o ministro João Cravinho e colaborando na complexa gestão das nacionalizações. Viria a demitir-se em divergência com a política do governo e a incapacidade deste para responder a uma crise económica cujos resultados, nessa altura de grandes esperanças mas de vacas bem magras, a maioria dos portugueses sentia na pele.

              Publicou também O socialismo, a transição e o caso português (ensaio sobre o capitalismo em Portugal), Indústria, ideologia e quotidiano, Para a História da indústria em Portugal, ou, em co-autoria, À esquerda do possível. Um tanto esquecido, por razões que não será demasiado difícil compreender, um outro título que constitui uma das mais corajosas, mas também mais solitárias, reflexões políticas a contracorrente produzidas nesses anos de chumbo que iriam desembocar no espectro messiânico do primeiro cavaquismo. Refiro-me a No reino dos falsos avestruzes (um olhar sobre a política), editado em 1983, um livro onde se procuram desmontar alguns mitos que estavam na época em pleno processo de fabrico: o da sacrossanta «iniciativa privada», o do diabólico «gonçalvismo», o da salvífica CEE ou o do «desejado» Ramalho Eanes. E onde se procurava também repensar o papel da esquerda no meio de tal selva pós-revolucionária. Volto a destacar um sublinhado já gasto pelo tempo mas que ainda poderá iluminar certas consciências desamparadas:

              «A banalização do adjectivo “utópico” num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha. (…) A Esquerda será sempre um “campo de tensão”, a tensão do inventor antes da invenção, do descobridor antes da descoberta, do poeta antes do poema – enfim, do criador antes da criação. É esse “antes” que necessariamente gera a tensão: a Esquerda sabe que nunca chegará à sociedade perfeita, um pouco como Zenão no paradoxo da tartaruga.»

              Poucas pessoas terão produzido tantos, tão originais e tão anti-dogmáticos contributos para uma reflexão da esquerda portuguesa sobre o mundo e sobre si própria. A partir de Sartre, ponto de partida de tantos dos da sua geração, João Martins Pereira laborou, como lembra Francisco Louçã no combate.info, num «marxismo heterodoxo, culto, informado de toda a dissidência e da radicalidade revolucionária do pensamento socialista». Terá até, mais recentemente, ido bem para além deste. Foi ainda, como é de calcular, uma pessoa de causas, ainda que mal aclimatado a militâncias redutoras da liberdade do indivíduo e da capacidade para pensar sempre o impossível desejável. Quem o conheceu diz que era também um homem decente.

              Um radical e um utopista, sem dúvida. Ouçamo-lo ainda no Reino: «Todos nós sonhámos com a bela noite em que partiríamos com a trupe do circo ambulante. On the road… Miúdos, vivíamos na pele dos pequenos acrobatas nos seus maillots luzidios. Adolescentes, imaginávamos a louca aventura com a bela trapezista (…). O circo deu-nos a primeira ideia de liberdade sem limites e por isso mesmo os ajuizados regressos a a casa em cada noite de circo terão sido das nossas primeiras sensações de derrota (…). O circo colocou-nos o primeiro desafio à ordem estabelecida». Defendendo, a partir daqui, uma dimensão criadora da marginalidade que não é recusa ou exclusão, mas atracção pelo lado lúdico da existência e de crítica ao sistema que a todo o instante procura cerceá-lo, concluirá que «os marginais são apenas uma minoria dos oprimidos – e só em conjunto todos se libertarão».

              Viver pensando e aceitando esta magnífica possibilidade parece ser uma bela forma de ser-se solidário com os outros e de viver a própria vida. Uma lição de João.

              [uma adenda aqui]

                Apontamentos, Memória, Opinião

                Cuba aguarda

                Cuba Si

                Um dos temas mais persistentes e difíceis que tem marcado o imaginário da esquerda ocidental nos últimos cinquenta anos refere-se à memória e às representações da revolução cubana. Persistente porque o seu impacto irrompeu de forma fulgurante com a vitória dos guerrilheiros barbudos na noite de S. Silvestre do ano de 1959, prosseguindo com a construção de um poder de tipo novo, comandado por líderes juvenis cujo perfil informal e único impôs uma capacidade universal de atracção, e reanimando-se, após o desaparecimento da União Soviética, como derradeiro «farol do socialismo». Difícil porque o carácter marcantemente sedutor de la Revolución levou a que, em nome de um passado pessoal que impôs convicções para a vida inteira, ou por verem na experiência cubana uma retaguarda de certezas que não encontravam mais noutro lugar, pessoas de diferentes gerações foram fechando os olhos a uma leitura crítica da evolução do regime castrista e à sua gradual transformação num poder autoritário e imobilista. Ao mesmo tempo, a fantasia de um «romantismo tropical», de início apoiado numa mitografia revolucionária luminosa mas hoje essencialmente sustentado pelo ramerrão da propaganda e por uma indústria de turismo vocacionada para a classe média europeia, tem embelezado a realidade difícil e opressiva. A verdade é que até muitas das pessoas que criticam sem hesitação a dimensão burocrática e repressiva do modelo soviético de «construção do socialismo» continuam a resistir a equipará-lo à experiência cubana, desculpabilizando-a e insistindo no seu carácter comparativamente «benévolo» e na sua «diferença»: a imagem que dela conservam permanece no santo dos santos do seu sistema de referências e custa-lhes muito retirá-la de lá.

                É desta ambiguidade transgeracional que partiu a concepção do álbum de banda desenhada CUBA Père et Fils, da autoria de Pierre e Jacques Ferrandez e recentemente editado pela Casterman. Os dois desenhadores, pai e filho, visitaram Cuba por diversas vezes ao longo dos últimos anos, tendo sido a partir da sua experiência prolongada que conceberam esta obra situada entre a ficção e a reportagem e dividida em duas partes complementares. A primeira comporta uma narrativa clássica: dois cubanos, um mais velho, Luis, nostálgico defensor da «sua» Revolução, que retorna à sua ilha e ao seu passado, o outro mais novo, o seu filho Ronaldo, descrente e ávido de um mundo distante do qual apenas conhece a superfície, deambulam pela ilha enquanto vão confrontando sensibilidades e pontos de vista que ora se separam ora se aproximam. Já a segunda parte recupera os cadernos de viagem escritos e ilustrados durante as suas estadias pelos dois autores, transformando-os num conjunto de artigos que circunstanciam, prolongam e em alguns momentos esclarecem a ficção inicial. Ambas as secções insistem, porém, na complexidade de uma sociedade, distribuída por três gerações, que permanece ainda sob a tutela daqueles que falam em nome da primeira delas. «Não é possível reduzir Cuba a duas gerações», explica Jacques Ferrandez no prefácio. «Há a primeira, a dos históricos da revolução. Logo de seguida vêem os seus filhos, todos eles educados para se tornarem comunistas e revolucionários perfeitos, mas hoje mergulhados na dúvida e na desilusão. E, por fim, chega a terceira geração, composta por jovens frequentemente indiferentes que não aspiram senão a viver, e que, em muitos casos, têm a consciência de Cuba se haver transformado no bordel do Ocidente.»

                A duplicidade domina o ambiente que os dois desenhadores encontraram. Durante uma das viagens, contam como um piloto de helicóptero, antigo oficial da força aérea, lhes explicava a dado momento que «Cuba é a terra da revolução e um país formidável», para logo depois lhes confessar o oposto: «Isto é tudo uma merda. Nada disto é verdadeiro.» Quem visite hoje Cuba caminhando um pouco por sua conta e risco, de olhar desperto e sem a cegueira imposta pelos pressupostos ideológicos, traz sempre consigo dezenas de episódios análogos para contar. Conscientes dessa distância entre a realidade e a propaganda, os autores procuraram, de facto, desconstruir o velho mito cubano. Mas reconhecendo, ao mesmo tempo, a dimensão simultaneamente objectiva e utópica das circunstâncias e das expectativas que o produziram. E captando também a presença, ainda mais perceptível após a investidura de Raúl Castro em Fevereiro de 2008, de um vento de mudança que se perfila no horizonte dos onze milhões de ilhéus: «os cubanos aguardam e a esperança parece estar em vias de reflorir em Cuba». Paradoxalmente, se tomarmos em consideração a sua história recente, o vizinho americano poderá dar uma pequena ajuda.

                  Atualidade, Memória

                  Entre Franco e Almodóvar

                  Por Espanha

                  Versão de uma nota de leitura publicada na LER de Outubro

                  Vinte e cinco anos durou o pacto del olvido, definido sem signatários, que fez com que o franquismo e a Guerra Civil fossem empurrados para dentro dos armários. Ao contrário do que aconteceu no Chile, na África do Sul ou na Argentina, em Espanha não se fizeram inquéritos, não existiram comissões da verdade, nem se procurou organizar a reconciliação. Os mecanismos repressivos não foram denunciados nem os seus responsáveis punidos, como aconteceu, ainda que de forma diferenciada, em Portugal, na Alemanha Oriental e na República Checa. Em larga medida, foram até alguns homens que haviam sido da confiança de Francisco Franco que decidiram, projectaram e controlaram a transição para a democracia. O preço a pagar por esta «paz podre» foi um silêncio que fez com que o corte com o passado tivesse sido mais aparente que real.

                  Giles Tremlett é jornalista e correspondente do Guardian em Madrid, onde vive há mais de vinte anos. O objectivo que traçou para este livro ambicioso foi o de apurar até que ponto o presente de um grande número de espanhóis se encontra ainda contaminado por fantasmas e ressentimentos impressos na consciência individual e na memória colectiva. Mas também o de constatar de que forma eles se têm esforçado para porem termo à amnésia generalizada, encarando-a de frente. Concebido como uma reportagem autónoma, cada capítulo avança por diferentes tempos, assuntos e problemas. Após uma importante introdução, na qual aborda o actual esforço de entendimento do passado, traduzido na aprovação da «lei da memória histórica», ocupa-se de assuntos tão diversos como as consequências da Guerra Civil e o peso da figura de Franco, a complexa trama do processo de transição para a democracia, as sequelas da explosão do turismo de massas na costa mediterrânica, a projecção cultural e social do flamenco, o papel da indústria do sexo e do mundo do futebol, o embate do terrorismo pós-11 de Março, os caminhos do feminismo em terra de machos, o impacto das ideias separatistas na Catalunha, na Galiza e no País Basco. No final, um capítulo sobre a «identidade espanhola» recorre a Pedro Almodóvar para enunciar um processo emergente de superação da velha Espanha franquista, substituída por um mundo exuberante e descomprometido que atribui escassa importância aos sinais do passado. Em todas as áreas, uma modernidade agressiva cruza as marcas do tempo, revelando uma sociedade complexa, que tanto se orgulha da sua própria história como é capaz de conviver bastante mal com o fardo que a anterior geração lhe deixou de herança. Os recentes desenvolvimentos em redor da releitura dos crimes da Guerra Civil confirmam a permanência desse clima de ambiguidade.

                  Giles Tremlett, Fantasmas de Espanha. Viagens pelo Presente Escondido de um País. Tradução de Maria Mendes. Alêtheia Editores, 572 p. ISBN: 978-989-622-107-2.

                    Atualidade, História, Memória

                    Dê lá por onde der

                    Foice e Martelo

                    Perturbados com um acontecimento cujo sentido e complexidade escapam aos seus esquemas mentais elementares, os fiéis seguidores da esquerda mais imobilista e ortodoxa andam já a fazer o que podem para desconsiderarem, junto de quem ainda os escuta, o movimento de esperança construído em redor da vitória eleitoral de Barack Obama. Sem vislumbrarem nele ponta de valor ou de interesse. Sem perceberem os combates de décadas que o precederam e aquilo que dentro dos seus limites ele poderá trazer de novo. Olhando-o apenas como poeira mediática atirada para os olhos «da classe operária e do povo». Para tais mentes, bloqueadas perante as inesperadas reviravoltas da história, o Grande Satã precisa continuar a ser o Grande Satã. Seja como for, dê lá por onde der. Sem qualquer remissão possível. E quanto pior ele se mostrar, melhor será para «a luta» que travam cada vez mais sozinhos. De outra forma, sem capacidade para proporem um modelo de sociedade alternativo ao do capitalismo que não seja o já testado nas experiências defuntas ou moribundas do «socialismo real», contra que inimigo continuariam a avançar, em passo cadenciado, transportando os velhos símbolos da sua antiga fé?

                    Adenda: Afinal havia outros?

                      Atualidade, Memória, Opinião

                      Golub

                      Enquanto leio Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor, da jornalista e escritora croata Slavenka Drakulić (publicado em 1991 e agora traduzido pela Pedra da Lua), vou percebendo um pouco melhor o gradual distanciamento de milhões de antigos cidadãos «europeus de leste» em relação a uma ideologia, e sobretudo a regimes, que até se propunham falar em seu nome e agir em benefício dos seus interesses e da elevação (um dia… um dia…) do seu estilo de vida. Voltarei a este livro, que merece uma atenção mais cuidada. Para já, detenho-me na problemática do papel higiénico. Como se pode ver mais abaixo, um tema que não era de relevância menor. Deve todavia dizer-se que ele apenas se colocou a partir da década de 1960. Até aí, fora dos círculos mais ou menos próximos da nomenklatura, na generalidade dos estados do «socialismo real» o problema não se punha: o método utilizado por quase todas as pessoas era o de folhas de papel de jornal espetadas num prego.

                      Slavenka fala após a queda do anterior regime: «Eu já estava habituada ao papel Golub, que era de facto muito mais barato. Porém, sempre que o comprava, tornava-me vítima de algo a que não podia escapar: a memória, Vejo-me, em criança, sentada na sanita fria, as paredes pintadas de verde. Tenho uma folha de papel grosseiro na mão, da cozinha chega-me o cheiro (uma vez mais!) a chucrute com feijões, e estou a olhar para a ponta dos meus sapatos pretos de borrracha Borovo, enquanto um dos inquilinos do nosso apartamento comunal grita do outro lado da porta: “Despacha-te. Estás aí dentro a ler, que eu bem sei!” Memórias de pobreza e privação, de uma época em que a pobreza só não parecia terrível porque era partilhada por quase toda a gente – e considerada justa. O mais terrível, porém, era que nós nem sequer sabíamos da existência de algo melhor.»

                        Memória, Recortes

                        Problemas de visão

                        Fiquei a saber, através de um programa de  televisão, que em Coimbra ainda existem «lindas tricanas» (para quem não sabe, lavadeiras do Mondego que outrora faziam certos e determinados serviços aos impetuosos moços estudantes com os quais socializavam). Como moro na cidade, apenas com algumas intermitências, desde 1969, e as únicas que vi eram de barro pintado ou decoravam latas de atum em azeite puro, presumo que tenha andado bastante distraído durante todos estes anos.

                          Coimbra, Devaneios, Memória

                          José de seu nome

                          Partilho do aborrecimento de António Figueira diante da forma como, alguns anos após terem sido ejectados da vida, meio mundo começou, tu-cá-tu-lá, a falar de José Cardoso Pires com a maior familiaridade, tratando-o por «Zé», e a referir-se a um José Afonso que jamais conheceu como «o Zeca». Sobretudo se tivermos em consideração que o primeiro, no final da estrada, se queixava de um isolamento que tanto o desgostava, e que o segundo viveu os últimos anos marginalizado por muitos daqueles, cravo vermelho ao peito, que exorbitam agora da sua voz nos alto-falantes da propaganda. De vez em quando, para conter a falta de decoro e a manipulação dos pretéritos, é bom que alguém se sirva de um pouco de memória. E além disso, pelo menos nestes casos, o respeitinho até é uma coisa muito bonita.

                            Apontamentos, Memória

                            Adeus, LM

                            «Jogo Duplo», o concurso «do Malato» que passa na RTP1, teve hoje um momento de especial comoção para quem se interessa pelos inesperados movimentos de vaivém da memória colectiva. Trata-se, para quem não saiba do que estou a falar, de uma prova «de cultura geral», com formato de teste à americana, que requer dos concorrentes uma preparação mínima. Pelo menos algo mais, digamos, do que saber nomear a capital da Finlândia, designar qual o presidente norte-americano que foi assassinado em Dallas ou conhecer o símbolo químico da prata. E quem aparece por lá são pessoas com cursos médios ou superiores, uma vida profissional aparentemente estável, e de aspecto urbano e bem-tratado. Pois nesta sessão, se exceptuarmos o mais velho dos cinco concorrentes, nenhum dos outros quatro – com idades que oscilavam entre os 25 e os 37 anos – foi capaz de acertar no nome actual da cidade de Lourenço Marques. Sim, aquela que foi, entre 1898 e 1975, a bela capital colonial de Moçambique. As hipóteses colocadas foram Luanda, Pretória e, naturalmente, Maputo.

                              História, Memória

                              Dois belos feios

                              Cheguei tarde à música do Lucien Ginzburg, de Serge Gainsbourg. Claro que trauteei entre dentes «Je t’aime, moi non plus» e «La décadanse», mas este, descobri-o depois, foi um Gainsbourg menor, apoiado no inevitável poder de atracção de um erotismo exibicionista que não invadira ainda a esfera do público. Depois disso o judeu-francês ficou esquecido durante algum tempo porque não mostrava uma mensagem política intuitiva e a sua auréola de alcoólico, tarado sexual e fumador inveterado parecia constituir a antítese do militante sóbrio, vigoroso e moralmente impoluto que muitos erguiam como modelo a emular. Ainda agora, sempre que tento converter à música de Gainsbourg algumas pessoas que chegam mais ou menos da minha geração e do meu quadrante vivencial, dou de caras, quase sempre, com a incompreensão ou a indiferença.

                              E, no entanto, ela encontrava-se – na percepção da novidade, como na polissemia das letras e na capacidade para combinar influências e registos – muito à frente da música popular francófona do seu tempo. Dizia-me um amigo mais recente que, actualmente, a visão dos pequenos filmes de Serge «envelheceu a de Brel». E eu, que continuo a gostar muito dos discos do filho desobediente da burguesia flamenga, mas que fui corrompido pela intensiva audição periódica do artista de variedades que acendia Gitanes uns nos outros, concordo inteiramente com ele. Olhamos a presença terrena destes dois homens, ambos tão feios e tão singulares, e compreendemos como, sendo eles praticamente contemporâneos – Jacques Brel era até um ano mais novo, embora não pareça -, os separavam universos que pareciam incompatíveis. Um, o do belga, um tanto melancólico, invocava principalmente passados, tempos perdidos e reencontrados, amores errantes, cidades que se cerravam sob uma ordem social odiada que só o sarcasmo fendia. O outro, o do judeu, celebrava cadências em crescendo, instantes que permaneciam em suspenso, uma sensualidade plasticamente alardeada que arriscava cuspir na cara da moral reinante. Eram apenas canções, nada mais que canções? Duvido.

                                Memória, Música

                                Delação (2)

                                Ainda sobre aquilo a que chama «o episódio Kundera», F. Guerra contesta, em O Vermelho e o Negro, as posições de alguns bloggers. Uma delas a minha. No essencial, parece começar por defender uma bússola moral absoluta, relativa a traços do carácter individual, que seria inerente à condição do escritor, ou do artista, e deveria orientá-lo em todas as situações. O essencial do seu argumento centra-se, porém, na tentativa de aproximar aquilo que, sinceramente, não me parece aproximável se não forçarmos um pouco a nota. Para o efeito confronta o caso Kundera com o vivido por Elia Kazan, procurando mostrar como o pulha de um delator o é sob quaisquer circunstâncias, e como nos Estados Unidos da pior fase da Guerra Fria não ocorreram, «em nome da América», canalhices menores e menos justificáveis que sob os ambientes de denúncia «ao serviço da classe operária e de todo o povo» presentes no universo do socialismo real.

                                Não posso deixar de ver com algumas reservas esta comparação. Claro que o ambiente da «caça às bruxas» em Hollywood foi terrível, opressivo, levando inúmeras pessoas a delatar o nome de colegas, conduzindo outras à ruína ou ao suicídio. Provavelmente fizeram-no pensando que tal lhes favoreceria (ou pelo menos não lhes prejudicaria) a carreira, o que por vezes aconteceu. É sobre isto The Front (O Testa de Ferro), o filme-documento de Woody Allen estreado em 1976. Mas também deram a cara, na mesma altura, figuras com a maior visibilidade pública como Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Danny Kaye ou John Huston, que foram capazes de empenhar o seu nome e a sua segurança para limparem a América da paranóia mccarthista, dando um exemplo de coragem e rectidão. Além de que não falamos, neste caso, de um sistema repressivo construído como tal, mas sim de uma situação de coerção psíquica e económica, que já então se mostrava, aos olhos de muitas pessoas honestas, como uma arbitrariedade.

                                No caso checo, como em outros casos do «socialismo real», ou mesmo dos diferentes fascismos, falamos da crença generalizada num destino histórico, concebido como salvífico e imortal, apresentado como capaz de revelar definitivamente aquilo que separa o bem do mal. E este destino conheceu, na época de afirmação dos sistemas de coacção totalitária, uma fase de simpatia que mobilizou muitíssimas pessoas. A Kundera também? Talvez. Dizem que sim, parece que sim. Provavelmente mais uma folha para a história universal de ignomínia.

                                  História, Memória, Opinião