Arquivo de Categorias: Memória

Irina

Aos 98 anos, morreu hoje a polaca Irina Sendler, «a Schindler desconhecida» que salvou 2.500 crianças judias do Gueto de Varsóvia de uma morte certa e ajudou a minorar o sofrimento de muitos dos perseguidos. Pessoas como Irina merecem ser lembradas, particularmente num tempo no qual se começa a considerar desnecessário referir o horror do Holocausto e a palavra «judeu» volta a funcionar, até em círculos que habitam confortavelmente as praças das sociedades democráticas, como estigma inapelável.

    Atualidade, Memória

    Francês sem mestre

    Apontamentos do Maio – 11

    Algumas frases de parede menos conhecidas. Daquelas que me tocam um pouco a espinal medula.

    L’Anarchie c’est je (Nanterre)
    Colle-Toi contre la vitre croupis parmi les insectes (Nanterre)
    Soyons Cruels (Rue des Écoles)
    Staliniens Vos Fils Sont Avec Nous (Place Denfert-Rochereau)
    Explorons le Hasard (Boulevard Saint-Michel)
    À bas le crapaud de Nazereth! (La Sorbonne)
    Comment penser librement a l’ombre d’une Chapelle? (La Sorbonne)
    Le Sacré voilà l’ennemi (Nanterre)
    Ayez des Idées (Faculté de Droit du Panthéon)
    Cache Toi, Object (La Sorbonne)
    Faites l’Amour et Recommencez (Rue Jacob)
    Vite! (Collège de France)
    Camarades Vous Enculez les Mouches (Nanterre)
    C’est pas fini! (Boulevard Saint-Michel)

    Fonte: Mai 68 a l’usage des moins de 20 ans (Babel, 1998)

      História, Memória

      Partilhar razões

      Apontamentos do Maio – 10

      Parece-me um tanto estúpido, para não dizer completamente idiota, procurar dividir o mundo entre aqueles que andam por aí a falar do Maio de 68 como instante fundador de uma nova era e aqueles que não querem saber dele para nada porque ele para nada lhes serviu. Entre os fatigados e repetitivos soixante-huitiards e as suas enérgicas e desmemoriadas crias. Entre os que se esgotam na prostração nostálgica e aqueles que apenas acreditam no poder de um novo que precisa assassinar para ser novo. Pelo meio, os outros: os que fazem de conta que foi tudo um mal-entendido, os que pensam que não passou de uma monumental bebedeira seguida de ressaca, os que só vêem a coisa pelo lado arenoso da arqueologia. Creio que, à excepção dos indiferentes, todos têm razão. Acontece que uma pequena frase fundadora e quarentona, escrita a negro numa parede de Nanterre, falava já disto: «Tout ce qui est discutable est a discuter».

        História, Memória, Opinião

        Pedir o impossível

        Apontamentos do Maio – 9

        O TBR chamou-me a atenção para um artigo de Slavoj Zizek aparecido no El País de ontem («Mayo del 68 visto con ojos de hoy»). Sublinho o parágrafo final: «Lo que mejor condensa el auténtico legado del 68 es la fórmula Soyons realistes, demandons l’impossible! (“Seamos realistas, pidamos lo imposible”). La verdadera utopía es la creencia de que el sistema mundial actual puede reproducirse de forma indefinida; la única forma de ser verdaderamente realistas es prever lo que, en las coordenadas de este sistema, no tiene más remedio que parecer imposible.»

          Apontamentos, Atualidade, Memória

          L’Humanité: uma visita guiada

          Apontamentos do Maio – 8

          «Certos grupúsculos (anarquistas, maoistas, trotsquistas, compostos em regra de filhos da grande burguesia e dirigidos pelo anarquista alemão Cohn-Bendit) tomaram as carências governamentais como pretexto para se dedicarem a agitações que procuram impedir o funcionamento normal da Universidade.» (L’Humanité, órgão oficial do Partido Comunista Francês, em Maio de 1968)

          Segui a sugestão feita há semanas atrás no blogue O Tempo das Cerejas e encomendei o número especial do L’Humanité sobre o Maio de 68. Previa então um exercício de reescrita da recusa, e depois de uma gradual acomodação à sequência dos acontecimentos, que os comunistas franceses adoptaram durante o movimento. A previsão não falhou. Percorrendo as 132 páginas, que transportam uma extensa série de artigos, testemunhos e imagens, pode dizer-se que o número materializa uma leitura «a contracorrente» em relação às interpretações do Maio hoje dominantes, despojando-o em larga medida da sua carga libertária, sinal da irrupção de um anti-autoritarismo militante, e retirando-lhe também as características de instante de viragem.

          Desde logo, a dimensão da revolta estudantil propriamente dita, essencial para sinalizar o movimento e garantir a sua originalidade, sai claramente diminuída, embora possamos dizer que se trata de uma opção editorial (discutível mas legítima). Nota-se depois que a presença tão paralela quanto coincidente da «insubordinação operária» é sobrevalorizada (o que é sublinhado ainda no DVD que acompanha a revista). Omite-se, em absoluto, uma referência consistente à crítica dos sectores radicais ao «reformismo» do PCF. Exalta-se de um modo desproporcionado o papel do Partido e dos estudantes comunistas. Insiste-se no carácter «anarquista» de Cohn-Bendit e de outros activistas não enquadráveis pelas organizações da esquerda tradicional. Em pouco ou nada se revela uma clara percepção desse tempo de brusca mudança na irrupção dos novos movimentos sociais e na transformação das sensibilidades colectivas, que o Maio de 68 condensou.

          Os redactores do L’Humanité não perceberam o que se passou, continuam sem perceber aquilo que estava então a mudar, e insistem basicamente nos mesmos erros.

            Atualidade, História, Memória

            O fundo e a questão

            Apontamentos do Maio – 7

            Para que estes não se sintam desprotegidos no meio de tanta informação e de um debate que os possa deixar sem argumentos, o PP espanhol, avisado e muito organizadinho, trata de explicar aos seus militantes o que foi e para que serviu o Maio do qual se fala. Terá sido muito nocivo porque «socavou o princípio da autoridade e incitou a população a depreciar os valores morais partilhados». Ora eis a questão.

              Atualidade, História, Memória

              Maísmos

              Apontamentos do Maio – 6

              Tropeço no fio que liga o computador à corrente e faço um gesto brusco, procurando equilibrar-me. Acabo por dar uma cotovelada no amontoado de papéis que atulha um dos lados da mesa de trabalho e caem-me ao chão, pesadamente, todos os suplementos, recortes, webpages impressas, livros e revistas sobre o Maio de 68 que tenho vindo a acumular. Alguns deles há anos, mas a maior parte deste material que me entretenho agora a apanhar do chão entrou cá em casa nas últimas semanas. Percebo assim, de repente, como esse pedaço do passado ao qual eles se referem regressou à minha vida, às nossas vidas, e como tem funcionado como um apelo da memória. Nada que me seja particularmente estranho nestes últimos tempos, pois tenho andado a falar destas coisas em aulas e seminários, tenho escrito um pouco sobre elas, e o mínimo que devo fazer é documentar-me sobre aquilo de que falo ou sobre o qual escrevo. Subitamente, porém, tomo consciência de que o que mais me interessa em toda esta overdose de informação e de opinião – grande parte dela com marcas geracionais diferentes mas bem nítidas – não é tanto o lembrar, o evocar, ou o descobrir «que reste-t-il» do Maio francês e para que nos serviu ele afinal. É antes, e será sobretudo, entender o modo como, enquanto representações das quais nos apropriamos, as suas múltiplas e discordantes leituras – mesmo aquelas que se esforçam por parecerem desprendidas, ou condescendentes – intersectam com estrondo a melodia do mundo. Aqui e agora, como dizia o outro.

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                Do verbo queimar

                Apontamentos do Maio – 5

                Como se percebe pelas referências regulares que tenho feito a posts seus na barra da direita deste blogue, simpatizo com muitas das posições de Pedro Sales, de quem sou habitualmente leitor. Mas divirjo da forma como, no Zero de Conduta, comenta uma frase escrita por José Pacheco Pereira em 1973, referindo-se a Maio e a Crise da Civilização Burguesa, de António José Saraiva, como livro «para ler atentamente e queimar». Comento-a como pretexto para falar de uma prática, utilizada por vezes no combate político, que recuso de todo.

                Não conheço ao pormenor, nem penso que tal interesse para o caso, aquilo que Pacheco Pereira possa ter dito agora, perante uma opinião pública sem memória, para minimizar os estragos que aquela frase possa provocar na sua imagem. O que sei, e aquilo que me importa, é que a sua posição na época se conformava com a atitude expressa pelos grupos maoístas – área na qual, como se sabe, então militava – a respeito da perspectiva estritamente lúdica, «idealista» e «pequeno-burguesa» de Saraiva sobre o Maio de 68. Um livro no qual se depreciava a função revolucionária da classe operária e da sua «ideologia de classe», insistindo-se, algo deslumbradamente, no papel criador que o Maio e as suas circunstâncias pareciam então destinar à juventude e à imaginação. Não se esqueça, a propósito, que se viviam então os ecos da Revolução Cultural Chinesa, durante a qual o libricídio – como a destruição de estátuas, retratos ou monumentos – era utilizado para promover o eclipse do conhecimento antigo e dos vestígios da cultura burguesa que o socialismo não tinha podido erradicar.

                Não me parece bem que se pegue agora num passado com 35 ou 40 anos e se faça deste bandeira para diminuir as posições de alguém. Sobretudo quando tal passado correspondeu a uma fase da vida sobre a qual assumidamente esse alguém virou uma página. Por outro lado, a esquerda está igualmente cheia de gente de quem será relativamente fácil encontrar frases, juízos e actos «comprometedores», associados a atitudes de intolerância ou mesmo de violência como esta que José Pacheco Pereira, metaforicamente ou não, alvitrou. Mas nem a discordância política nem a perseguição ad hominem justificam o recurso a argumentos que em circunstâncias normais descartamos. E que, muito justamente, condenamos nos outros.

                  Apontamentos, Atualidade, História, Memória

                  Heranças trocadas

                  Apontamentos do Maio – 4

                  Paul Berman (A Tale of Two Utopias) e Luc Ferry/Alain Renaut (La Pensée 68) falaram de uma «má ressaca» das experiências de 1968, no carácter vazio das propostas de mudança então adiantadas, na sua rápida redução a um estado de irrelevância. Uma certa direita, porém, não leva demasiado a sério esta desvalorização, vendo-se forçada, pela boca de Nicolas Sarkozy, a afirmar que «é preciso liquidar Maio de 68». A frase não passa de uma enorme boutade: como poderia Sarkozy ter a vida pessoal que tem, manter o estilo que mantém, e ao mesmo tempo ganhar umas eleições presidenciais, sem a cultura da informalidade e da complacência moral que o Maio legou e simboliza?

                  Por outro lado, resulta igualmente equívoca a ideia de que a esquerda actual é a herdeira única e universal de 68. Transcrevo o essencial do argumento do filósofo e ensaísta espanhol José Luis Pardo a este propósito, retirado de um artigo surgido há duas semanas no suplemento Babelia do El País. Ele suscita leituras críticas dessa vinculação exclusivista da esquerda aos acontecimentos do Maio:

                  «Primeiro, porque existem coisas provenientes de 68 que ninguém deseja herdar (como os grupos terroristas); segundo, porque a nova direita é muito mais ‘sessenta-e-oitista’ do que confessa: é-o na sua aversão à ordem jurídica e à regulação estatal, no seu culto da identidade ou na substituição da discussão política pelos valores morais; e, finalmente, porque se alguém tivesse então falado do casamento homossexual, das quotas de género ou da conciliação entre o trabalho e a família – justamente quando se previa a abolição concertada do casal, dos géneros, do trabalho e da própria família -, teria sido perseguido sem piedade como um reaccionário dos mais recalcitrantes.»

                    Atualidade, História, Memória

                    Uma campanha mórbida

                    A SIC-Notícias acaba de passar uma reportagem sobre uma iniciativa da Liga dos Combatentes e da União Portuguesa de Paraquedistas no sentido de localizar e de levantar os restos mortais dos 11 militares que há 35 anos foram enterrados em Guidage, na Guiné-Bissau, após terem sido abatidos numa batalha muito dura para as tropas portuguesas. Intitulado «Ninguém fica para trás!», o programa expôs aos olhos do espectador-voyeur todo o detalhado trabalho de pesquisa e identificação dos mortos, cujos despojos foram tratados como meros objectos à disposição de uma observação científica voraz, mas também o confronto da sua descoberta com a memória dos familiares a quem a dor foi agora reacendida.

                    No debate que se seguiu, percebeu-se que a Liga pretende que esta iniciativa seja apenas um começo: propõe-se organizar equipas e partir para os territórios dos três antigos teatros da Guerra Colonial, com o substancial apoio financeiro do Estado e de pá e picareta em punho, à procura dos restos mortais dos milhares de militares portugueses que ali ficaram enterrados. Em grande número de casos com um convencimento, por parte das famílias, de que os seus mortos haviam regressado à «Metrópole» para se lhes fazerem os funerais. Numa campanha mórbida que visa, como ficou claro do inenarrável discurso de um dos responsáveis pela iniciativa – que se apresentou como «ex-combatente do ultramar» e «doutorado em neuropsiquiatria» -, um claro revanchismo militarista pós-conflito. Mais preocupado com «a honra» (daqueles que jazem, afinal, em território «inimigo» das «ex-províncias ultramarinas») que com o luto das famílias (um luto que não se importam de reanimar em nome dessa «honra» que inventaram).

                    Lúcida apenas a voz do Coronel Carlos Matos Gomes – um dos antigos combatentes que esteve nas três frentes de guerra e que presenciou inúmeras mortes em combate -, sublinhando com veemência o carácter doentio e chocante de uma reportagem que apenas explorou a curiosidade pelos dados científicos e pela emoção sentida das famílias envolvidas, desrespeitando a paz dos que caíram. E de uma iniciativa que pode dar início a um festim negro de busca e confirmação dos cadáveres dos mortos da Guerra Colonial. Reacendendo feridas, traumas e conflitos que julgávamos a caminho de serem resolvidos. Como se sabe, é perigoso brincar com fósforos.

                      História, Memória, Opinião

                      Espartanos e hedonistas


                      I Festival de Vilar de Mouros (Agosto de 1971)
                      um dos fotografados é o autor deste blogue – clique para ampliar

                      Apontamentos do Maio – 3

                      Só hoje li aquilo que Joana Lopes escreveu sobre os «diferentes Maios». Chamou-me particularmente a atenção – para além da referência que fez à vivência dos então jovens «católicos progressistas» – o passo no qual refere uma opinião recentemente expressa por Fernando Rosas. Segundo este, os jovens portugueses, ou pelo menos os então ligados a partidos ou a grupos radicais de inspiração marxista, estariam de tal modo ideologicamente concentrados na luta contra o regime e contra a guerra colonial que teriam passado relativamente ao lado das influências libertárias do Maio de 68 em França. Nesta direcção, tanto os seus hábitos como os seus valores, expressos no plano colectivo mas também no individual, manteriam essencialmente, segundo Joana Lopes, uma «militância mais ou menos espartana». Sob este aspecto, digo agora eu, em pouco se distinguiriam os jovens militantes comunistas estudantis dos da extrema-esquerda, embora estes últimos, no processo de rejeição da sua própria condição de classe, assumissem quase sempre posições particularmente inflexíveis, próximas do que acreditavam ser uma «moral proletária» suprema e redentora.

                      Esta perspectiva afigura-se-me essencialmente correcta, sobretudo quando aplicada ao meio estudantil em si, embora me pareça também um pouco incompleta. É verdade que em Portugal, se exceptuarmos núcleos muito reduzidos de jovens integrados em ambientes artísticos e literários, não era perceptível à época – e falamos já do período marcelista – uma componente social do caldo de cultura sixtie, dotada de uma dimensão hedonista, contracultural e libertária, e da qual Maio de 68 terá constituído talvez o símbolo maior. Todavia, e ainda que tardiamente em relação à matriz original, ela encontrava-se em construção, do que constitui prova o surgimento dos primeiros grandes festivais musicais, uma clara modificação dos consumos, o interesse por determinados tipos de literatura e de cinema, a atracção pela french theory, transformações profundas ao nível do divertimento, da moral e até do look, reconhecíveis principalmente entre os estudantes (universitários e do secundário) e os jovens quadros, mas que se encontravam, pelo menos nas maiores cidades, em pleno processo de alargamento a outros sectores.

                      Por outro lado, encontra-se por fazer – a intervenção de testemunhos pessoais poderá vir a documentar melhor este aspecto – o reconhecimento do que se me afigura uma evidência «silenciada»: muitos dos jovens que partilhavam das convicções e das metas de diversos sectores da esquerda, incluindo-se nestes até muitos dos radicais, levavam uma espécie de «vida dupla», de natureza militante mas também escapista, integrando consumos provindos de origens aparentemente contraditórias: de Moscovo ou Pequim, mas também de Paris, Londres ou São Francisco. Lenine e Marcuse, Luis Cília e Janis Joplin, Léo Ferré e Dylan, Eisenstein e Godard, Murais da Revolução Cultural e Andy Warhol. Uma prova desta duplicidade? Basta seguirem-se os conteúdos de jornais então muito lidos entre a juventude estudantil e urbana, como o «cor-de-rosa» Comércio do Funchal e o Diário de Lisboa, verificar-se qual o seu padrão de leitor e ter-se uma ideia das suas tiragens.

                        Atualidade, História, Memória

                        Deserção (adenda)

                        Na sequência do post anterior sobre a deserção, Vítor Dias interpela-me no seu blogue. Mescla aí, porém, a legítima vontade de ver publicamente esclarecidas algumas das minhas afirmações que considera erróneas com pedidos de esclarecimento acerca do que penso de antigas decisões do PCP. Como no texto em causa procurei não revelar simpatias mas apenas proceder a uma abordagem o mais imparcial que me foi possível, a estes não irei responder aqui. Quanto ao que poderei clarificar a propósito das tais afirmações, creio que será suficiente a leitura de um texto que escrevi em 2001 e que aqui parcialmente disponibilizo (a versão final, da qual não disponho neste momento, inclui pequenas revisões formais e meia dúzia de considerações complementares que hoje me parecem menos relevantes).

                        Admito que a palavra ziguezagueante que utilizei num parágrafo possa não ser inteiramente correcta. Coisas dos blogues, onde se edita quase sem revisão. Sugiro a sua troca por hesitante.

                        Quanto às expectativas, não agradeço, mas obviamente retribuo.

                        Uma nota complementar por causa de referências feitas ao métier que exerço durante a maior parte do tempo: o historiador inquire a História, não a oficia.

                        PS – Em resposta a esta adenda Vítor Dias tece mais algumas considerações, de novo pautadas pela vontade de justificar uma posição unívoca do PCP que este, de facto, nesta matéria nem sempre teve. Apenas faço uma correcção, destinada a quem tenha lido com pouca atenção o artigo para o qual remeti e se fie apenas no que diz Vítor Dias: a posição «hesitante» da abordagem da Guerra nos 2º e 3º Congressos da Oposição Democrática refere-os no seu conjunto. Mas logo adiante se afirma que «no Congresso de 73, todavia, notamos alguma preocupação com o assunto por parte de diversos participantes, sobretudo no que se refere aos sectores mais próximos dos comunistas.» A deturpação é uma arma, como todos sabemos. Já agora: não me limitei a ler sobre o 3º Congresso, estive em sessões de preparação e estive lá, em Aveiro.

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                          Deserção

                          Três textos disponíveis nos respectivos blogues – um de José Pacheco Pereira e dois outros de Vítor Dias (este e mais este) – reconduzem-nos até um dos aspectos da Guerra Colonial dos quais ainda se não falou o suficiente. O relativo silêncio à volta da deserção política como acto de resistência reconhece-a, de facto, como algo que se mantém incómodo. Os conservadores, mesmo aqueles que já tiveram tempo de se converterem à democracia, continuam a evitar um problema que afronta a sua noção de patriotismo e a ética militar. Os socialistas defendem-se de falar de um assunto sobre o qual nunca tomaram uma posição clara e que a maioria dos portugueses hoje com direito de voto jamais compreendeu. Os comunistas contornam a posição ziguezagueante, crescentemente moderada, que foram mantendo sobre o assunto. E muitos dos «arrependidos» da extrema-esquerda preferem não falar de um dos lados do seu antigo combate no qual a radicalidade das atitudes foi mais longe.

                          Apesar do esforço para centrarem os seus discursos em experiências e estados de espírito de natureza essencialmente pessoal, ambos os autores são reconduzidos às posições políticas que mantiveram durante o conflito e que, independentemente das revisões que foram assumindo ao longo da vida, se reconhecem em aspectos da matriz ética que hoje adoptam. José Pacheco Pereira destaca a coragem daqueles a quem «nunca passou pela cabeça fazer a guerra», e que, por esse motivo, optaram por desertar, escolhendo a via do exílio ou da emigração. Vítor Dias fala dos homens para quem desertar significava inevitavelmente um «afastamento do combate em Portugal», optando em consequência por se manterem nas fileiras e por seguirem até aos teatros da Guerra. Sem tirar nem pôr as posições dominantemente mantidas, à época, pela esquerda radical e pelo PCP. A primeira, assentando o seu combate numa atitude de grande radicalidade e de ruptura, de natureza simultaneamente individual e geracional, tanto em relação ao regime quanto em relação aos códigos e valores que o sustentavam. O segundo, mantendo nesta matéria uma posição cautelosa, evitando fracturas que considerava desnecessárias e procurando justificar uma política que visava gerir riscos, não contrariar a política de aproximação interclassista «de todos os portugueses honrados» e tentar subverter o aparelho militar do regime a partir de dentro.

                          Como Pacheco Pereira reconhece, em adenda ao texto escrita após ter sido interpelado por Vítor Dias, não é possível estabelecer aqui um grau de «medição de coragens». É a pura verdade, claro: como comparar os graus de bravura dos soldados dispostos em diferentes trincheiras e distintas frentes, ainda que de uma mesma batalha? Mas é possível entrever nesta troca de posições, e de recordações, duas atitudes, dois modelos, duas formas de entender a mudança em Portugal e no mundo, a dos esquerdistas e a dos comunistas, que então não só divergiam profundamente como se confrontavam no terreno.

                          Resta dizer, para evitar sugestões de ligeireza e já que tanto José Pacheco Pereira como Vítor Dias invocaram o seu percurso pessoal para esclarecerem a sua posição sobre o assunto, que o autor destas linhas tem uma parte da sua vida ligada a esse universo agora distante. Detido durante uma manifestação contra a Guerra Colonial, viria por tal motivo a ser compulsivamente incorporado no exército onde fez trabalho político e foi alvo de uma segunda detenção, tendo desertado quando foi confirmada a sua mobilização para África. Após viver algum tempo na clandestinidade, seria reintegrado depois do 25 de Abril nas forças armadas, acabando por cumprir ainda, já na fase de transição para a independência, uma comissão de serviço em Angola. Muitos anos depois viria a escrever um pequeno trabalho académico sobre o lugar ocupado pelas diversas esquerdas na resistência interna à Guerra.

                          Ver: Rui Bebiano, «As Esquerdas e a Oposição à Guerra Colonial» (2002), em A Guerra do Ultramar: Realidade e Ficção. Actas do II Congresso sobre a Guerra Colonial. Lisboa: Editorial Notícias – Universidade Aberta, pp. 293-313.

                          Ler a Adenda »»

                            Atualidade, História, Memória

                            Reescritas

                            Apontamentos do Maio – 2

                            Tomo conhecimento, através do blogue de Vítor Dias, da saída de um número especial do L’Humanité dedicado à celebração dos quarenta anos passados sobre o Maio de 68. Vou tentar adquiri-lo, até porque fico bastante curioso a respeito da inevitável reescrita, por parte dos sectores intelectuais ligados ao PCF, da posição reaccionária e depois seguidista que os comunistas franceses (e não só) mantiveram na altura sobre os acontecimentos do Maio que ainda não era «o Maio». E que hoje, muito naturalmente, farão por rever. Reescrevendo a história para fazerem o elogio do movimento que na altura rejeitaram. Mas não há como ler para crer.

                              Atualidade, História, Memória

                              Esquecer Maio para o Maio não morrer

                              Apontamentos do Maio – 1

                              Durante algumas semanas, Dany «Le Rouge», o libertário, foi para o Ministério do Interior «judeu alemão» e para o PCF «anarquista alemão». Hoje permanece inclassificável, com atitudes que desagradam à esquerda e à direita. Em 2001, a defesa pública da intervenção armada anti-taliban retirar-lhe-ia a simpatia política de muitos dos antigos correligionários e desacreditá-lo-ia junto daqueles que jamais aceitarão o mais pequeno pacto com o arquivilão americano. A leitura que Daniel Cohn-Bendit (DC-B) tem vindo a fazer do Maio de 68 e do seu rastro tem alargado ainda mais o círculo da rejeição.

                              Em Forget 68, um pequeno livro das Éditions de l’Aube que transcreve uma conversa mantida com o jornalista Stéphane Paoli e o sociólogo Jean Viard, DC-B indica aquelas que considera serem as duas grandes incompreensões mantidas a propósito do significado do movimento. A primeira, afirma, «é a de Sarkozy e da direita, para quem todos os males da França de hoje derivam de 68», a segunda residirá «nessa fábula da extrema-esquerda para quem concluir 68 se mantém na ordem do dia» (p. 123-4). Contra a depreciação ou o maravilhamento, admite a derrota política do Maio, mas destaca a sua vitória a longo prazo, determinada principalmente pelo impacto das ideias e das vivências que o acompanharam.

                              Deve dizer-se que DC-B não partilha com muitos dos seus contemporâneos de uma visão nostálgica do movimento do qual continua a ser o rosto mais visível. E faz questão de afirmá-lo. Sublinha sempre o seu carácter episódico, datado, e a sua manifesta incapacidade para produzir na sociedade francesa uma qualquer ruptura de carácter revolucionário. Destaca também a sua inclusão na vaga de revolta que cruzou uma grande parte do planeta nos anos 60, representando um dos seus mais importantes momentos. Mas sublinha principalmente a sua dimensão simbólica como instante no decorrer do qual passaram para primeiro plano práticas e propostas que questionaram a ordem política e moral da burguesia, ao mesmo tempo que revelavam a inadequação das ortodoxias da esquerda a um universo social emergente.

                              Nesta direcção, pode aproximar-se parcialmente a posição de DC-B da expressa logo em 1970 por António José Saraiva, para quem, em Maio e a Crise da Civilização Burguesa, os acontecimentos de 68 teriam sido «obra de uma mudança espiritual». Mas, tal como o fez recentemente a americana Kristin Ross em May’68 And Its Afterlives, recusa também a leitura inócua de um Maio puramente festivo, reconhecendo-o sem equívocos como momento de aproximação das esperanças e da contestação dos intelectuais à luta dos trabalhadores e dos sectores anticolonialistas e anti-imperialistas que se incorporaram no movimento. Diversamente de Ross, porém, DC-B considera-o também como momento dotado de um significado simbólico que o tempo ampliou, acabando por ganhar vida própria ao materializar uma espécie de vitória a longo prazo, e de desforra, da geração derrotada pela polícia e pelos gaullistas nas ruas de Paris.

                              Propõe esquecer 68, mas apenas na medida em que a excessiva e recorrente lembrança tem servido para que os seus inimigos «em diferido» lhe atribuam um sentido perverso. E para que os seus partidários passadistas se não continuem a servir da sua memória oficial como obstáculo ao lançamento desse esforço de «recomposição do pensamento», associado «a uma exigência de liberdade e de autonomia tanto colectivas quanto individuais» (p.85), que se revela hoje indispensável, como um desafio, na procura de soluções para os ventos de mudança que varrem um mundo radicalmente outro.

                              Não se encontrará nada de substancialmente novo nem de particularmente original neste pequeno livro. Mas o discurso enérgico que percorre Forget 68 ajudará a pensar o Maio francês, o seu tempo e a sua posteridade sob perspectivas que não sejam a da rejeição liminar sugerida pelas palavras de Sarkozy, ou a da nostalgia de um mundo carregado como um fardo por todos esses soixante-huitiards que num dado momento das suas vidas deixaram de dar corda aos relógios. Esquecer para, talvez, melhor lembrar.

                                História, Memória, Opinião

                                Na tradição da contestação

                                Há 39 anos, precisamente na manhã do dia 17 de Abril de 1969, teve lugar em Coimbra o episódio que levou ao rubro o conflito conhecido na história e na memória do movimento estudantil português como «a crise de 69». Nos anos que se seguiram, mas principalmente após a instauração da democracia, a data passou a ser celebrada como um momento de profundo significado simbólico para a vida associativa coimbrã, a sua autonomia e o seu impacto no país. Porém, tal como acontece com todas as celebrações que não são acompanhadas de uma atitude crítica e interpretativa que as explique e actualize, esta lembrança tem vindo a transformar-se num ritual, integrando discursos pontuados por clichés, e até a exibição repetitiva de alguma iconografia, cuja leitura se revela progressivamente limitada. Principalmente para as novas gerações, mas também para muitos daqueles que participaram daquele «evento fundador» e que de forma alguma se revêem na dimensão litúrgica e celebratória da sua evocação.

                                Esta redutora simplificação vai-se tornando perceptível durante a leitura de A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo, de Miguel Cardina (MC), que a Angelus Novus acaba de editar. Resultante da tese de mestrado que o autor defendeu em 2005 mas entretanto actualizou, este livro cumpre desde logo uma importante função: bem documentado e reflectido, ajuda-nos a diluir algumas formas de ver o movimento estudantil, desde os finais da década de 50 até 1974, mas em particular durante os anos da governação marcelista, que são imperfeitas porque fundadas em leituras do passado mais apoiadas em generalizações e no rastro nostálgico de determinados momentos do que no estudo e na reflexão crítica.

                                Contribui também para mostrar de que forma narrativas pré-formatadas do passado do movimento têm servido como instrumento destinado a evocar instantes e gestos reputados como exemplares ou heróicos (como é o caso do referido episódio do 17 de Abril), que promovem um território de legitimidade e de reconhecimento público adequado à aceitação dos processos reivindicativos e das vozes do associativismo estudantil no presente. Deste modo, pode dizer-se que este livro relativiza uma leitura passiva, que reduz o movimento estudantil à evocação oficial de determinadas datas, limpando-o da poeira comemorativista que tende a esvaziá-lo da sua complexidade ou a transformá-lo numa caricatura de recorte mais ou menos nostálgico.

                                Este problema é visível no processo de hipervalorização, aqui comentado, da «crise de 69». Não se contesta que esta tenha correspondido a um momento central da história do movimento estudantil português e que foi decisiva para o aprofundamento do processo de decadência e crise do regime que desabou em Abril de 1974. No entanto, ela tem sido vezes de mais anotada como um «acontecimento em si», espécie de clímax antes do qual dominara o conformismo e depois do qual se estabelecera uma fase de refluxo, ou de esmorecimento, da iniciativa estudantil, que, de acordo com essas leituras, teria sido apanhada algo adormecida pela Revolução dos Cravos.

                                A verdade, mostra MC, é que o período que preparou a «crise», a «crise» em si, e os anos que se lhe seguiram, estabeleceram antes um continuum que incorporou, entre outros aspectos, transformações vivenciais (com a rápida desvalorização das praxes académicas), alterações culturais (com uma abertura rápida aos valores comuns à cultura juvenil internacional dos anos 60), e principalmente um alargamento muito grande da participação cívica estudantil, crescentemente politizada no sentido de integrar o activismo e as suas reivindicações nos processos mais gerais de transformação da sociedade portuguesa da época e na sua própria vida. A Tradição da Contestação mostra assim, com nitidez, que a «crise» não correspondeu ao apogeu do movimento, mas antes a um momento de mudança e de viragem.

                                De facto, a rápida e acentuada politização, notada sobretudo junto dos universitários comunistas e da esquerda radical – que apesar de ilegalizada e minoritária desenvolvia uma intervenção cada vez mais notória -, mas também entre os estudantes comuns, maioritariamente empurrados para um lugar de visível oposição ao regime e à sua guerra colonial, constituiu um das marcas mais salientes do movimento nos anos de 1971/1974, que MC aborda com particular detalhe. Essa politização extrema, associada a factores como o encerramento compulsivo da AAC, levou à perda de relevância da intervenção de índole essencialmente associativa, e formalmente reformista, que até essa altura dominara a actividade reivindicativa estudantil, traduzindo também o aprofundamento de um clima geral de desafectação em relação ao que restava do Estado Novo e aos seus intérpretes. Clima do qual apenas era possível excluir os então ultraminoritários sectores da direita estudantil.

                                Foi também ao longo destes anos estudados por MC que foram chegando os ecos do Maio de 68, traduzíveis em influências bastante mais amplas do que aquelas materializadas apenas no comprometimento político ou no revigoramento da reivindicação estudantil. Se é verdade que os acontecimentos de França ecoaram rapidamente no ambiente universitário de Coimbra – como ecoaram por quase todo o mundo – foi apenas nos anos seguintes que o sentido mais profundo do movimento, traduzido num recuo da esquerda ortodoxa, na visibilidade da extrema-esquerda e na construção de uma nova abordagem da política, da cultura, da moral e dos estilos de vida entre os sectores estudantis universitários, chegou a Portugal, e particularmente a Coimbra. E é esta mudança que MC mostra de uma forma aliciante.

                                A Tradição da Contestação evoca ainda uma imagem estereotípica da cidade de Coimbra, onde a palavra «tradição» se continua a cruzar com algumas referências recolhidas de um passado mais ou menos remoto, mas remete também para os ecos de uma vida estudantil até há bem pouco tempo ainda essencialmente masculina e boémia, feita de hierarquias, de praxes académicas e de formas inócuas de uma autoproclamada «irreverência», que nunca chega a sê-lo quando não assume uma dimensão participativa. Este livro mostra-nos que, afinal, existe também uma outra tradição possuidora de lastro histórico, provindo pelo menos da época das lutas liberais mas acentuado nos anos 50 e 60 do século XX, que é a da intervenção activa. Revela-nos uma outra Coimbra, mais plural, emancipada da imagem do lente inquisidor e do estudante truculento, mergulhada numa tradição de cidadania que integra o património identitário da própria cidade.

                                O livro de Miguel Cardina funciona pois como uma lição que os actores e os agentes da Coimbra de hoje não devem deixar de conhecer. E mostra a todos os leitores que, na história do movimento estudantil, como na história de qualquer movimento social, os episódios sonantes, por mais visíveis e mediáticos que se mostrem, representam apenas a ponta do iceberg.

                                Entrevista a Miguel Cardina aqui e aqui.

                                  Coimbra, História, Memória

                                  Reprise (2)

                                  [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=F5fsqYctXgM]

                                  Perfazem-se hoje 54 anos sobre a data da gravação num estúdio de Nova Iorque, por Bill Halley & His Comets, de Rock Around the Clock, o primeiro tema de rock’n’roll a chegar ao topo das vendas de discos nos Estados Unidos. No ano seguinte (1955), a canção já não saía das cabeças e dos pés de milhões de teenagers de ambos os lados do Atlântico. E a paisagem social mudava com eles.

                                    História, Memória