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Lisboa, Luanda e volta

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Publicado originalmente em Os Livros Ardem Mal

Após muitos anos de emudecimento e de pudor impostos pela excessiva proximidade dos acontecimentos e do seu perceptível efeito traumático, multiplicam-se agora em Portugal as publicações que aludem ao passado recente de Angola. Estudos históricos, ensaios sobre a realidade pré-independência, livros de memórias, álbuns fotográficos, romances, reportagens, tomam e retomam, quase sempre sob uma perspectiva europeia, temas durante muito tempo silenciados ou reduzidos ao rumor. A paz podre implodida em 1961, a guerra colonial e as suas circunstâncias, o confronto fratricida de Maio de 1977, os mais recentes anos da guerra civil e da inacabada construção da democracia, são os temas-tempos escolhidos. Mas tem sido ignorada a fase particularmente crítica e conturbada, povoada de intensos dramas humanos, que correspondeu ao período que vai do 25 de Abril à proclamação da independência em Novembro de 1975. Esta ausência acaba de ser parcialmente superada com a publicação, pela Presença, de O Último Ano em Luanda, o mais recente romance de Tiago Rebelo.

Trata-se de uma obra manifestamente realista e assumidamente autobiográfica, integrada na recente voga do romance histórico destinado a um público sedento de narrativas empolgantes – como é sabido, coisa raríssima na literatura portuguesa contemporânea – e escrita sem grandes complexidades estilísticas. De facto, apesar de na sua página da Internet o autor se auto-representar como «um dos romancistas mais importantes das letras portuguesas», trata-se essencialmente de um caso de competente literatura de entretenimento, destinada, não duvido, a ocupar um dos «lugares cimeiros das principais tabelas de vendas nacionais» e a suscitar alvoroço e comoções entre o grande número de portugueses que viveram aqueles longos meses de brasa ou que deles colheram os ecos. Coisa que não constitui defeito, ou serve de atestado de menoridade, diga-se. Não é esse, porém, o aspecto que esta nota de leitura pretende destacar.

Tiago Rebelo propôs-se, como afirma em «nota de autor», «reconstituir essa época confusa e decisiva para o futuro de milhares de portugueses e de milhões de angolanos» (p.470), o que sendo tarefa bem difícil para um historiador, não o é menos para um romancista. Procurou fazê-lo combinando relatos de episódios historicamente verdadeiros e a enumeração de determinados locais de referência localizados em Lisboa ou Luanda, para o que se documentou muito bem. O uso do jargão militar ou do calão urbano lisboeta e luandense conferem também verosimilhança aos fragmentos de vida do universo de Nuno e de Regina, os protagonistas do romance, que muitos portugueses vivos, também eles proprietários de pares de óculos Ray-Ban e camisetas Lacoste, reconhecerão como tendo sido o seu. Ao mesmo tempo, descrições simples e abreviadas, sempre ritmadas e que funcionam como patamares entre diálogos curtos e sincopados – povoados, aliás, dos sempre inevitáveis anacronismos -, asseguram uma leitura rápida, que não requer excessivo esforço de concentração, tal como num romance americano hard-boiled para ler numa viagem de comboio de regresso a casa num fim-de-semana chuvoso.

«Atravessaram o Largo Serpa Pinto e foram caminhando devagar pela Pereira Forjaz abaixo, até à Mutamba, onde no trânsito do final da manhã engrossava sob uma atmosfera pesada. O sol impiedoso reflectia-se no passeio e o brilho intenso feria os olhos. Uma pessoa sentia-se asfixiar com o calor insuportável e o cheiro a combustível queimado. (…) Homens engravatados, a destilarem o calor nos seus casacos formais, de pasta na mão, furavam a massa humana no passeio, apressados para os seus compromissos profissionais.» (pp.163-4)

Aqui e ali, um fumo de outra África, raro mas convenientemente distribuído, modula a paisagem:

«Uma quitandeira com um cesto de fruta à cabeça levava um filho às costas, seguro por um pano étnico enrolado no corpo, a abanar a cabeça adormecida ao ritmo dos passos da mãe.» (p.164)

Este romance é, pois, competente na sua ambição ao mesmo tempo evocatória e nostálgica, recorrendo a personagens pouco complexos, condicionados por amores, ódios, rancores e fidelidades extremos, como que pré-formatado para o guião de uma minissérie televisiva de sucesso imediato. Mas nem por isso – e sobretudo porque retrata apenas o lado que conta para o seu autor, incapaz de dialogar com a paisagem humana que escapa ao batedor europeu em África – deixa de soar a um ajuste de contas. Que sugere cumplicidades com o padrão de leitor, desgostoso ainda pelo fim do Império, ao qual se destina prioritariamente este O Último Ano em Luanda.

A fechar, uma precisão histórica que importa, uma vez que Tiago Rebelo insiste numa afirmação, destacada no texto da contracapa, que alimenta um mito circulante entre muitos dos portugueses regressados em 1975 ao rectângulo europeu. Segundo este mito, os três movimentos de libertação «estavam derrotados» quando ocorreu em Portugal a queda de Marcello Caetano. Não sei de onde é possível inferir tal «informação» para que ela possa ser recorrentemente utilizada como verdade indesmentível. Todos sabemos, todavia, onde se pretende chegar através da repetição da fábula. Ainda que ela aqui ocorra mediada por uma estratégia narrativa que se maquilha de ficção.

    Memória

    Reprise (1)

    [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=nE-yWpc91_A&feature=related]

    Completam-se hoje precisamente 45 anos sobre o lançamento de Please Please Me, o primeiro álbum dos Beatles, gravado numa única sessão de 15 horas em 11 de Fevereiro de 1963. O valor simbólico deste momento na cultura popular do século XX tem sido desvalorizado por quem não possui uma clara memória da época ou tende a menosprezar o impacto da então nova cultura juvenil. A ingenuidade quase pueril das letras dos primeiros temas, a linearidade dos arranjos iniciais, a forte concorrência transgeracional dos mais longevos Stones (cujo álbum inaugural saiu apenas um ano depois), bem como a complexificação posterior do rock, contribuíram também para a instalação de um certo desinteresse pelos primeiros tempos dos fab four junto das gerações mais recentes. Olhando este vídeo, percebemos que existia uma nova energia no ar.

      História, Memória, Olhares

      Maldita Sexta-Feira

      A memória recuada que tenho da Sexta-Feira Santa remete-me para uma memória de medo seguida de perto por um sentimento de revolta. O medo era o da criança de educação católica a quem contavam dos raios e dos coriscos reservados, a par de um lugar no Inferno, a quem ousasse comer carne (embora quem pudesse enchesse a boca de amêndoas e coelhos de chocolate). E como eu sentia vontade, principalmente naquele dia, de comer um enorme bife, com ovo estrelado a cavalo e montanhas de batatas fritas! A revolta sobreveio anos mais tarde, quando as quatro estações da rádio e o canal único de televisão iniciavam quarenta e oito horas de uma programação apenas preenchida com vias-sacras, prédicas, penitências, mensagens do patriarcado, peças de Schumann e de Brahms, e cantorias de igreja de qualidade muito duvidosa, não me deixando, como sempre, entrar em órbita com o programa Em Órbita, minha escola e santuário. «Ao terceiro dia», o domingo de Páscoa emergia como tempo de júbilo e um regresso à vida.

        Etc., Memória

        Montparnasse deles

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        Não li na devida altura (1985) Montparnasse, mon village, de Vasco de Castro. Sim, o Vasco cartoonista que fez outras coisas também. Tratava-se de um exercício de revisitação pela via da memória ao exílio parisiense vivido pelo autor entre 1961 e 1974. Há muito esgotado, o livro acaba de sair em edição revista e aumentada da Campo das Letras, com o título Montparnasse. Até ao esgotamento das horas. Bem sei que aquilo que está a dar é a bastardização de soixante-huitiards mais ou menos assumidos como Vasco e outros que tal (alguns deles, aliás, merecidamente execrados pela folclorização ou pela manipulação que fazem do seu próprio trajecto). Mas não deixa de se revelar empolgante para muitos dos putativos leitores o reconhecimento de uma experiência de elaboração romanesca, contada na primeira pessoa, da solidão, da penúria e do estado de revolta em cenários de invejável felicidade juvenil. Revigorará almas carentes de tal coisa, que as há, que as há. Outras lamentarão com uma furtiva lágrima a usura do tempo. Outras ainda encolherão os ombros e passarão à frente. C’est beau, la vie.
        Voz de Jean Ferrat

          Apontamentos, Memória

          Serviço público

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          Ainda que continue a sonegar informação crucial para o conhecimento público da história de Portugal no século XX e para o estudo do seu próprio passado – as memórias de Gabriel Pedro, por exemplo –, o PCP acaba de emitir um sinal positivo que talvez possa significar o princípio do fim de uma incompreensível política de secretismo: já se encontram disponíveis em linha e pesquisáveis todos os números do Avante! clandestino (1931-1974).

            História, Memória

            Da beleza e do medo

            Robert Capa
            Capa na frente de Segóvia (1937) – Gerda Taro, ©International Center of Photography

            Originalmente em Os Livros Ardem Mal

            Uma notícia sobre a descoberta de mais uma «mala mexicana» dentro da qual, ao longo de décadas, permaneceram guardados numa caixa de bombons 127 rolos de negativos de Robert Capa contendo cerca de 3500 fotografias que se julgavam perdidas, leva-nos a um dos temas recorrentes entre as representações visuais da história europeia dos últimos setenta anos. Mas a Guerra Civil de Espanha não legou apenas a memória dos seus episódios mais ou menos determinantes, mais ou menos dramáticos, ela alimentou também um lastro estético que se manteve perene no imaginário político das democracias e que, aparentemente sem evidenciar sintomas de fadiga, retorna a todo o momento. As canções de combate, os cartazes de propaganda, os documentários das actualidades cinematográficas, as fotografias que nos chegam, enunciam um pathos heróico, acentuadamente sedutor, que só a nostalgia de um tempo de causas vividas até ao limite e de convicções profundas de alguma forma justifica. E mesmo as imagens de dor e de ódio, tanto quanto as representações de um arrebatamento juvenil que ainda assombra, suscitam esse efeito. Por isso os resíduos do trabalho de Capa agora encontrados permanecem de alguma forma encantadores e capazes de intimarem a nossa atenção. E por isso também perturba um livro como Desertores. La Guerra Civil que nadie quiere contar, do jornalista e investigador Pedro Corral, construído, a contracorrente, sobre as recordações e os vestígios daqueles que de ambos os lados do conflito nos deixaram a percepção de um medo sem limites e de uma intensa vontade de sobreviver, que não ficaram até ao fim, que fugiram e se calaram para sempre. Desvela uma Guerra Civil destituída desse sentido épico e dessa dose de idealismo esteticizado que as velhas e as «novas» imagens do fotógrafo húngaro ainda parecem comunicar-nos.

              História, Memória

              O mulato O.

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              Utilizado no português, de acordo com o Houaiss, pelo menos desde 1557, o substantivo e adjectivo mulato aplica-se àquele «que é filho de pai branco e de mãe preta (ou vice-versa)», «que apresenta traços das raças negra e branca», ou que possui uma visível «cor parda, acastanhada». Omnipresente nos territórios colonizados pelos europeus, o tipo encontra-se hoje em expansão numa Europa crescentemente multiétnica e miscigenada. Mas a designação, historicamente recorrente no léxico da lusofonia, é hoje muito menos utilizada do que o era há vinte ou trinta anos atrás. Pelas razões mais diversas. Por um lado, a decadência do conceito de raça, actualmente trocado pelo de etnia, tem levado a que se evitem designações determinadas pelos traços físicos. Ao mesmo tempo, e apesar de valorizar a mestiçagem e a hibridez, a nova tradição pós-colonial tende frequentemente a escamotear o legado do colonizador, incluindo-se neste o seu contributo genético. Aliás, foi já nesta linha que, a partir dos tempos de definição do conceito de negritude e de constituição das correntes emancipalistas, uma parte das novas elites africanas começou a depreciar um pouco o lugar e o papel do mulato. A partir dos anos 50/60, a crítica do lusotropicalismo não deixou, também ela, de intervir neste processo.

              Entre nós, porém, o eclipse parcial da palavra ficou a dever-se ainda à influência global do discurso dominante dos media americanos. Nos quais o conceito de negro possui uma amplitude que os falantes nativos do português até há bem pouco tempo praticamente excluíam. Por isso, para a América, o mulato Barack Obama é um negro. E é a partir da afirmação desta condição que tem definido o seu trajecto político e poderá vir a construir a sua vitória eleitoral. O que não podemos senão compreender. Mas já me parece um sintoma de passividade perante a aculturação que os meios de comunicação europeus, e muito em especial os portugueses, se lhe refiram sistematicamente como «negro». O que fizemos nós afinal, e em tão pouco tempo, da memória partilhada desse passado de trocas que produziu o mulato?

                Atualidade, Memória, Olhares

                «Até se lhe embrulhava o estômago»

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                Publicado originalmente em Os Livros Ardem Mal

                Em Os Amores de Salazar, Felícia Cabrita procurou desenhar para o austero ditador o reverso do familiar perfil fradesco. Uma «vida de D. Juan» feita de indícios, de suposições, de artifícios de imaginação, e, claro, também de uma dose de verdade que se perde na efabulação. Apresentado como remate de uma investigação de raiz, o livro mereceu mesmo, de Diogo Freitas do Amaral, um prefácio elogioso que o fez passar por obra reservada aos «historiadores imparciais» do futuro. E transformou-se rapidamente num êxito editorial.

                Apresentado como resultado de década e meia de experiência jornalística vivida no contacto directo da autora com as parcelas das antigas colónias portuguesas, Massacres em África segue uma estratégia de construção aparentemente distinta. Mas cujo resultado prático acaba por se lhe assemelhar.

                O livro aproxima alguns dos momentos mais sangrentos da história recente da África que se entende em português. Desde os massacres de Batepá, São Tomé, e da chacina da UPA, em 1961, ao de Wiriyamu, Moçambique, e aqueles que se seguiram ao golpe angolano de 1978, incluindo-se ainda informações sobre a morte violenta e inglória de Jonas Savimbi. Felícia Cabrita refere-os recorrendo a algum material de arquivo e a um conjunto de entrevistas, concedidas por testemunhas directas, sobreviventes e também executantes. A estes se refere quase sempre, aliás, com alguma compreensão, associando-os a actos que circunstâncias passadas determinaram mas que, de alguma forma, o tempo entretanto decorrido libertaria da responsabilidade histórica.

                A escrita é fluente mas fácil, reconstruindo sem aparentes inibições os espaços sobre os quais a jornalista não possui informações. A busca do efeito melódico, a procura do impacto imediato da frase em prejuízo da sua beleza ou do seu rigor, definem um tom que prolonga o do livro sobre o Salazar «parte-corações». E o testemunho oral, veículo essencial para a construção de uma obra desta natureza que materializa a parte mais substancial do trabalho apresentado, resulta insuficiente, pois permanece imperfeitamente identificado, localizado e datado. Confrontado com estas falhas, o leitor vê-se então forçado a confiar plenamente na versão que lhe é contada. Coisa que, como é sabido, só por si não chega para aquilatar do valor documental de um determinado texto. Muito menos de um texto como este, que se reporta a uma das áreas mais sensíveis da memória e do rastro do nosso passado colonial

                Pena é que a maior parte das pessoas que os irão ler julgará este livro, tal como aconteceu com o anterior, como um livro de história. Que de facto o não é: trata-se de uma compilação de reportagens aligeiradas sobre um tema que merecia maiores cuidados, inclusive do ponto de vista jornalístico. Talvez resulte razoavelmente como guião de um documentário concebido para a televisão ou para circular em DVD, e para ver apenas uma vez. Mas não como um livro para ficar.

                  História, Memória

                  O passado é agora

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                  Um pequeno post d’A Origem das Espécies chama a atenção para um apontamento saído no El País. Nele se refere um inquérito a 3.000 cidadãos, efectuado em Inglaterra pela cadeia de televisão UKTV Gold, o qual revelou estarem 23% deles convencidíssimos que Winston Churchill é um personagem de ficção e que nunca foi primeiro-ministro, enquanto 58% acreditam sem quaisquer problemas que Sherlock Holmes existiu de facto. 47% dos inquiridos considerou também que Ricardo Coração-de-Leão apenas existiu nos livros. Julgo que nenhuma pergunta se referia à existência – real ou imaginada – de Robin Hood e do Xerife de Nottingham. A reinvenção acelerada do passado é realmente um fenómeno deslumbrante. Como o é também a manipulação do passado na criação do presente.

                    Atualidade, História, Memória

                    Eles já chegaram

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                    Vêm aí os Russos! (The Russians Are Coming, The Russians Are Coming, realizado por Norman Jewison e estreado em 1966) foi um dos produtos fílmicos da Guerra Fria mais divulgados no mundo ocidental há cerca de quarenta anos atrás. Em registo de paródia, ele partia da presunção, então espalhada no ocidente, de um carácter insuportavelmente maléfico de qualquer cidadão soviético vivo e das acções do governo que lhes orientava os passos. Ainda que, no filme, o pavor dos habitantes do Massachusetts que inesperadamente viram chegar os marinheiros russos fosse desproporcionado em relação às suas intenções não-agressivas. Tenho a impressão de voltar a sentir alguns dos fumos desse tempo de medos quando vejo, oiço e leio algumas das notícias sobre os exercícios militares navais que, neste momento, a marinha de guerra russa realiza nas águas do Mediterrâneo e do Atlântico.

                      Atualidade, História, Memória

                      «Éramos vinte ou trinta nas margens do Sena»

                      «Para mim, todos os justos, bem como todos os heróis, só em França se produziam na perfeição, como os espargos». A asserção de Eça terá sido produzida por volta de 1887, mas oitenta anos e várias gerações depois era ainda a partir das coordenadas da França, e em língua francesa, que muitos portugueses de leituras – dos que se não ajustavam ao «doce viver habitualmente» apetecido pelo eminente saloio do Vimieiro – olhavam o mundo e as suas mutações. É provável até que eu próprio pertença à última geração que aprendeu a dizer táble muito antes de saber pronunciar têible, mas cá me fui adaptando, embora de vez em quando possa deixar fugir le pied pour le chausson. Um pouco como aconteceu com o «Ministro do deserto» e esse repentino jamais que os jornais – onde proliferam licenciados em jornalismo que «não fazem a mínima» sobre quem foi Émile Zola ou Jean-Paul Sartre – verteram sem problema algum para jamé. Apesar de não ser de aceitar a condescendência das chefias de redacção com tal coup de pied no dicionário, temos de admitir que o episódio não passa de um pequeníssimo sintoma do trambolhão da língua e da cultura francesas que se tornou irreversível a partir dos anos 80. E não há Sarkozy, com elas ou sem elas, que lhe possa dar a volta. Quel dommage!

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                        So long, Bobby

                        Bobby Fischer

                        Morreu Bobby Fischer o «excêntrico, arrogante, insano, incomparável e genial» ex-campeão mundial de xadrez. Morreu hoje em Reiquiavique, na Islândia, o seu último e escolhido lugar de repouso e de exílio. Com ele desaparece também uma parte central da memória mais intensa da Guerra Fria (1234). O xadrez, dizem, foi apenas um pretexto.

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                          Segundo plano

                          Não conheci Simone de Beauvoir logo através dos livros. Na viragem para a década de 1970 apenas tinha acesso a uma imprensa mais ou menos generalista que se lhe referia de uma forma quase sempre superficial – «a existencialista», «a defensora do amor livre», «a companheira de Sartre» – e que já então oscilava entre o reconhecimento do seu papel pioneiro no campo do feminismo e a revelação de um feitio difícil. Associado, talvez demasiado livremente, à relação complicada que mantinha com o filósofo. Aquele penteado antiquado com o qual aparecia em todas as fotografias, o raríssimo sorriso, o ar reservado ou colérico, reforçavam ainda uma silhueta que parecia muito distante. Bem mais distante que Paris e o quartel-general de Saint-Germain-des-Prés.

                          A outra Simone, anunciadora, ainda nos anos 40, de um feminismo «de segunda vaga», só a encontrei anos depois, ao procurar pôr em dia as leituras das quais falavam as pessoas da geração imediatamente anterior à minha. Mas rapidamente percebi que a frase-epítome do Segundo Sexo (1949) – «não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres» – tinha entretanto sido apropriada por uma esquerda que procurava conciliar a «emancipação da mulher» com a emancipação mais geral do proletariado, rumo a uma sociedade-outra na qual, então sim, fosse possível construir uma efectiva situação de «igualdade» (ou, mais exactamente, de paridade). Até lá, pois, a tarefa fundamental seria o derrube da ordem estabelecida, jogando com as «capacidades objectivas e subjectivas» existentes na sociedade a fazer tombar, as quais admitiam uma situação de efectiva diferença ao nível dos papéis sociais.

                          Esta interpretação, associada no caso português à persistente secundarização que o salazarismo impôs à mulher, fazendo recuar o seu lugar social a um nível de subalternidade anterior ao verificado durante a Primeira República, tornou inevitável a sua depreciação prática, tão atávica quanto assumida, na própria lógica de organização das diversas facções da oposição de matriz marxista. Isto apesar da introdução gradual, ao longo da década de 1960 e nos ambientes estudantis universitários e urbanos, de uma situação mais «permissiva». Independentemente do reconhecimento teórico da importância do seu papel – que os sectores conservadores recusavam liminarmente –, na prática as mulheres da esquerda foram quase sempre mantidas, de acordo com um modelo que só nos anos 90 começou a recuar de forma visível, num lugar de segundo plano, enquanto retaguarda da luta pela mudança na qual deveriam trabalhar os seus homens.

                          Tantos anos depois, essa é ainda uma marca patente no conservadorismo moral de muitas das mulheres associadas ao referido quadrante político e cultural, e também uma das causas da sua quase-ausência nos rostos visíveis e com protagonismo da geração agora no poder. A verdade é que, em Portugal, a «segunda vaga» do feminismo, beauvoiriana, quase não existiu, para além de algumas manifestações mais ou menos folclóricas e de experiências pessoais isoladas, muitas vezes de «estrangeiradas». E a «terceira», propondo uma mais eficaz desconstrução das diferenças, apenas agora – globalização oblige – começa a fazer-se sentir. Mas antes tarde que nunca.

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                            Uma entrevista inútil

                            Parece-me escusada a entrevista que Maria Eugénia Neto, a viúva de Agostinho Neto, deu ao Expresso. E não gostei de ver o Expresso publicar uma entrevista que apenas serve para desvalorizar a personalidade da entrevistada e nada acrescenta a nada. As suas posições são ambíguas, fugidias, estão mal explicadas ou mostram algo que não se percebe muito bem se é astúcia ou simples dislate. A informação que oferece é nula: a entrevistadora parece até melhor informada que a entrevistada sobre os assuntos que esta supostamente deveria conhecer. E os comentários que Maria Eugénia faz aos momentos e episódios mais dramáticos da história angolana dos últimos 35 anos são sempre esquivos e irrelevantes: «não sei como foi», «não me apercebi», «são coisas em que não meti o nariz», «não quero entrar em pormenores», «estou-lhe a dizer que não sei», «não quero falar disso», [Neto] «não devia saber», [em casa] «não falava de coisas políticas». Para além das referências às circunstâncias dos primeiros anos da sua vida com Agostinho Neto, a parte mais afirmativa da entrevista ocorre quando, ao referir-se a Dalila Cabrita Mateus (co-autora do livro Purga em Angola, no qual se redescobre o golpe sangrento de 27 de Maio de 1977), considera que esta «é desonesta, é mentirosa». Porém, quando a jornalista pergunta, a propósito das informações avançadas no livro, «então quantas pessoas morreram?», a resposta daquela que era então a mulher do principal responsável do MPLA e do Estado angolano é tristemente esclarecedora: «Não sei, não estava dentro de nada. Mas isso é mentira».

                              História, Memória

                              Português nada suave

                              Pacheco
                              Luiz Pacheco, 1925-2008

                              «Os Amigos são: simpáticos, afáveis, delicados, escondem-nos as verdades-verdadinhas, poupam-mos com hipocrisias e blandícias, são ambíguos às vezes, cobiçam-nos a fêmea (…). Os mesmos Amigos ouvem-nos com paciência, com ironia, disfarces, facadas ou bonacheiradas, promessas depois fáceis de não cumprir (esquecer ou iludir com outras inda mais tentadoras), fiteiros de uma figa que nos lixam na nossa máxima fraqueza ou dor como se, sim (e para dizer tudo), sim, como se a nossa queda desamparada na miséria ou no vício lhes servisse a eles, ou justificasse a eles, os auxiliasse a eles a vencer a eles nalguma coisa. Escutam. Fingem às vezes que acreditam. Com toda a compreensão.»
                              «Os Amigos. Os Bambinos», Exercícios de Estilo, Estampa, 1971

                                Memória, Recortes

                                STASI minds

                                Os resultados de um inquérito realizado pela Universidade Livre de Berlim, tendo como universo de respondentes cerca de 5.000 alunos alemães com idades compreendidas entre os 15 e os 17 anos moradores na Renânia do Norte-Vestefália, na Baviera, em Berlim e no Brandeburgo, foram encarados pelo Le Monde com bastante alarme. O diário francês considerou-os inquietantes e um claro sinal das graves lacunas na informação sobre a história recente do seu próprio país que muitos desses jovens possuem.

                                Perto de 37 por cento deles, por exemplo, considerou que a STASI, o eficientíssimo órgão de segurança e de contra-informação do Estado da ex-RDA – que se autodesignava como «Escudo e Espada do Partido» e integrava milhões de agentes e informadores –, era «um serviço de informações como outro qualquer». 54,4 por cento dos inquiridos não tinha conhecimento do ano de construção do Muro de Berlim nem sabia que este foi erguido por iniciativa do governo comunista alemão. E 40 por cento entendia que o regime democrático no qual actualmente vive não é melhor que a anterior ditadura comunista, valorizando alguns factores de segurança no emprego que esta parecia assegurar.

                                O singular é que um artigo não-assinado do Avante! («O sonho do socialismo») põe de lado as inquietações do Le Monde e não disfarça a felicidade e o contentamento pela desculpabilização do antigo regime leste-alemão que parece revelar a débil memória histórica dos jovens inquiridos. Fala rancorosamente, e com uma dose notável de ignorância e parcialidade, sobre «a verdadeira história do muro de Berlim e as pesadas responsabilidades das três potências administrativas ocidentais, que impuseram a divisão da Alemanha no pós-guerra contra a vontade da União Soviética»(*), e aponta alegremente para o facto de 32 por cento dos inquiridos não se importarem de regressar a um sistema no qual fosse possível recuperarem as «vantagens daquela sociedade», aceitando «restringir as suas liberdades individuais» para o conseguirem. As frases transcritas em itálico são do Avante!.

                                (*) Disponível nas livrarias uma investigação sólida escrita num registo invulgar: O Muro de Berlim. 13 de Agosto de 1961 – 9 de Novembro de 1989, de Frederick Taylor (Tinta da China).

                                  Atualidade, Memória

                                  Escritores da Liberdade

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                                  No âmbito de uma das correntes que neste momento deslizam entre os blogues que se expressam em português, Joana Lopes considerou-me merecedor do «Prémio Escritores da Liberdade». Agradeço a lembrança e a simpatia, perdoando-lhe o exagero óbvio. Desta vez, porém, não me sinto capaz de manter a esperada sequência. Procurando não ser demasiado verboso – e menos ainda um grande chato – tento explicar porquê.

                                  Como poderemos encontrar, no universo dos blogues, um «escritor da liberdade»? Um dos critérios será, naturalmente, seguir a trajectória do blogger, confirmando tanto quanto possível o seu papel, pela escrita e pela acção, e em todas as circunstâncias, na defesa da democracia e na afirmação da liberdade de expressão. Não vale, por exemplo, um resistente antifascista que no passado tenha fechado ou que hoje feche os olhos a múltiplas formas de coação da livre expressão da palavra. Esse jamais será um «escritor da liberdade».

                                  Outro critério, mais lato e difícil de definir, situá-lo-á como aquele que actualmente seja capaz de pensar de forma autónoma e de exercer o direito à crítica sem pensar se aquilo que escreve ou diz se conforma com este ou aquele modelo. Chamemos-lhe escritor-herói: o que sistematicamente utiliza os instrumentos que tem à mão – um blogue, por exemplo – para escapar à lógica de padronização e de conivência que domina hoje a política e a comunicação social mainstream. E, mesmo de entre estes, só poderão verdadeiramente contar aqueles que forem capazes de exercer até ao fim a responsabilidade e a convicção do seu gesto, dando o nome, um contacto, e, quando necessário, também a cara. De outra forma, a sua ousadia facilmente se transforma em nada.

                                  Nestas condições e feitas as contas – que não consideram muitos dos que já foram premiados, entre eles alguns dos nossos comuns amigos –, peço desculpa mas confesso-me incapaz de apontar mais do que dois ou três bloggers que conheço suficientemente bem para garantir a justeza do distintivo. Como julgo que eles pensam mais ou menos como eu, prefiro não os desafiar.

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