Lisboa, Luanda e volta
Publicado originalmente em Os Livros Ardem Mal
Após muitos anos de emudecimento e de pudor impostos pela excessiva proximidade dos acontecimentos e do seu perceptível efeito traumático, multiplicam-se agora em Portugal as publicações que aludem ao passado recente de Angola. Estudos históricos, ensaios sobre a realidade pré-independência, livros de memórias, álbuns fotográficos, romances, reportagens, tomam e retomam, quase sempre sob uma perspectiva europeia, temas durante muito tempo silenciados ou reduzidos ao rumor. A paz podre implodida em 1961, a guerra colonial e as suas circunstâncias, o confronto fratricida de Maio de 1977, os mais recentes anos da guerra civil e da inacabada construção da democracia, são os temas-tempos escolhidos. Mas tem sido ignorada a fase particularmente crítica e conturbada, povoada de intensos dramas humanos, que correspondeu ao período que vai do 25 de Abril à proclamação da independência em Novembro de 1975. Esta ausência acaba de ser parcialmente superada com a publicação, pela Presença, de O Último Ano em Luanda, o mais recente romance de Tiago Rebelo.
Trata-se de uma obra manifestamente realista e assumidamente autobiográfica, integrada na recente voga do romance histórico destinado a um público sedento de narrativas empolgantes – como é sabido, coisa raríssima na literatura portuguesa contemporânea – e escrita sem grandes complexidades estilísticas. De facto, apesar de na sua página da Internet o autor se auto-representar como «um dos romancistas mais importantes das letras portuguesas», trata-se essencialmente de um caso de competente literatura de entretenimento, destinada, não duvido, a ocupar um dos «lugares cimeiros das principais tabelas de vendas nacionais» e a suscitar alvoroço e comoções entre o grande número de portugueses que viveram aqueles longos meses de brasa ou que deles colheram os ecos. Coisa que não constitui defeito, ou serve de atestado de menoridade, diga-se. Não é esse, porém, o aspecto que esta nota de leitura pretende destacar.
Tiago Rebelo propôs-se, como afirma em «nota de autor», «reconstituir essa época confusa e decisiva para o futuro de milhares de portugueses e de milhões de angolanos» (p.470), o que sendo tarefa bem difícil para um historiador, não o é menos para um romancista. Procurou fazê-lo combinando relatos de episódios historicamente verdadeiros e a enumeração de determinados locais de referência localizados em Lisboa ou Luanda, para o que se documentou muito bem. O uso do jargão militar ou do calão urbano lisboeta e luandense conferem também verosimilhança aos fragmentos de vida do universo de Nuno e de Regina, os protagonistas do romance, que muitos portugueses vivos, também eles proprietários de pares de óculos Ray-Ban e camisetas Lacoste, reconhecerão como tendo sido o seu. Ao mesmo tempo, descrições simples e abreviadas, sempre ritmadas e que funcionam como patamares entre diálogos curtos e sincopados – povoados, aliás, dos sempre inevitáveis anacronismos -, asseguram uma leitura rápida, que não requer excessivo esforço de concentração, tal como num romance americano hard-boiled para ler numa viagem de comboio de regresso a casa num fim-de-semana chuvoso.
«Atravessaram o Largo Serpa Pinto e foram caminhando devagar pela Pereira Forjaz abaixo, até à Mutamba, onde no trânsito do final da manhã engrossava sob uma atmosfera pesada. O sol impiedoso reflectia-se no passeio e o brilho intenso feria os olhos. Uma pessoa sentia-se asfixiar com o calor insuportável e o cheiro a combustível queimado. (…) Homens engravatados, a destilarem o calor nos seus casacos formais, de pasta na mão, furavam a massa humana no passeio, apressados para os seus compromissos profissionais.» (pp.163-4)
Aqui e ali, um fumo de outra África, raro mas convenientemente distribuído, modula a paisagem:
«Uma quitandeira com um cesto de fruta à cabeça levava um filho às costas, seguro por um pano étnico enrolado no corpo, a abanar a cabeça adormecida ao ritmo dos passos da mãe.» (p.164)
Este romance é, pois, competente na sua ambição ao mesmo tempo evocatória e nostálgica, recorrendo a personagens pouco complexos, condicionados por amores, ódios, rancores e fidelidades extremos, como que pré-formatado para o guião de uma minissérie televisiva de sucesso imediato. Mas nem por isso – e sobretudo porque retrata apenas o lado que conta para o seu autor, incapaz de dialogar com a paisagem humana que escapa ao batedor europeu em África – deixa de soar a um ajuste de contas. Que sugere cumplicidades com o padrão de leitor, desgostoso ainda pelo fim do Império, ao qual se destina prioritariamente este O Último Ano em Luanda.
A fechar, uma precisão histórica que importa, uma vez que Tiago Rebelo insiste numa afirmação, destacada no texto da contracapa, que alimenta um mito circulante entre muitos dos portugueses regressados em 1975 ao rectângulo europeu. Segundo este mito, os três movimentos de libertação «estavam derrotados» quando ocorreu em Portugal a queda de Marcello Caetano. Não sei de onde é possível inferir tal «informação» para que ela possa ser recorrentemente utilizada como verdade indesmentível. Todos sabemos, todavia, onde se pretende chegar através da repetição da fábula. Ainda que ela aqui ocorra mediada por uma estratégia narrativa que se maquilha de ficção.