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Livro de memórias pouco comum

Boy & Girl

Enquanto lia as 598 páginas e as 2.296 notas em letra pequeníssima de Pessoa Comum no seu Tempo, o livro de memórias de João Freire que a Afrontamento acaba de editar, percebi que partilhava com ele, sendo dez anos mais novo, muitas das referências da infância e da pré-adolescência. O conhecimento directo ou indirecto de muitas das figuras mencionadas, as primeiras e as segundas leituras, os hábitos comuns, determinadas imagens, valores ou maneiras de dizer, provam que, no Portugal das últimas décadas da vida biológica de Salazar, quase tudo permanecia imutável. Recordei também que, tal como o autor embora mais brevemente, passei pela experiência do serviço militar, da deserção, do trabalho operário, da militância na esquerda radical e da vida universitária. Só não estive exilado porque, in extremis, o 25 de Abril me poupou esse incómodo, quando a mala já se encontrava feita e alguns contactos estabelecidos. Estes factores determinaram, assim, uma abordagem do livro que jamais poderia ser «distanciada». Tentarei ser apenas justo.

Começo por anotar dois aspectos que conferem a Pessoa Comum no seu Tempo uma marca absolutamente peculiar. Por um lado, este é um relato de uma meticulosidade, de um pormenor, evidenciando uma tal capacidade de memorização, que, se não o tornam único, pelo menos o inserem no pequeno núcleo de textos memorialistas portugueses capazes de produzirem uma abordagem efectivamente exaustiva do passado vivido pelo autor. Ao mesmo tempo, existe aqui algo de igualmente raro, traduzido numa relação de aparente disparidade entre a vida invulgar que se descreve e uma escrita que se pode qualificar como conservadora, se não mesmo anacrónica, na sua relação com o lugar geracional e o percurso específico do autor. Para além de que lhe falta também um cuidado, no domínio do trabalho literário, que todo o texto memorialista deve conter, de forma a mais facilmente partilhar com o leitor os momentos singulares e os estados de espírito. Detecta-se em muitos momentos uma discursividade enfática, por vezes convencional e socialmente situada, certas vezes quase obsequiosa, que prejudica a fluidez da escrita e lhe retira alguma capacidade para absorver o leitor. Este é, porém, um aspecto que acaba por se revelar de reduzida importância.

Em tudo o mais, de facto, este volume revela-se absolutamente excepcional e, como se verá adiante, de uma grande utilidade. Estrategicamente, reúno os seus seis capítulos em três blocos, cada um dos quais é desenvolvido através de processos diferenciados de codificação semântica que lhe são próprios. O primeiro deles refere-se aos antecedentes familiares, ao meio social de origem, à infância e à adolescência do autor, à sua entrada no meio militar e à sua vida como oficial da Marinha, até ao momento em que decidiu desertar do teatro de guerra em Moçambique, bem como à sua carreira desportiva (capítulos 1, 2 e 3). O segundo bloco respeita à sua intensa vida como exilado político em França e ao percurso político que o haveria de conduzir ao anarquismo (capítulos 4 e 5). O último bloco reporta o trajecto de João Freire (JF) como sociólogo e professor universitário (capítulo 6).[Continua em Passado/Presente>>]

    História, Memória

    Ainda a «terceira via»

    Visao de Stalin

    Acabei de ler Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via, de Raimundo Narciso, editado pela Ambar. O livro apresenta-se como narrativa pormenorizada de um episódio da trajectória pós-Abril do Partido Comunista Português. Começo por aquilo que nele me parece menos positivo. Retive, logo desde as primeiras páginas, a sensação de que este relato talvez merecesse ter sido publicado há mais tempo, contribuindo dessa forma para ampliar o combate político do qual o seu autor foi um dos protagonistas. Cerca de vinte anos depois dos acontecimentos aqui referidos, poderia também ser agora a altura para propor uma leitura interpretativa e historicamente contextualizada dos acontecimentos, o que aqui não foi feito. Além disso, perpassam por todo o volume vestígios de uma certa «língua de madeira», que nos fala ainda a partir de dentro do léxico comunista. E, como se sabe, o distanciamento crítico passa sempre pelo uso de uma linguagem diversa daquela utilizada no universo do objecto estudado. De qualquer forma, Raimundo Narciso incorpora no seu discurso um forte sentido da ironia, o qual tempera bastante a aridez.

    O livro, sublinhe-se, é um testemunho notável, que permite reconhecer alguns dos meandros de um período importante da história interna dos comunistas portugueses. Uma história que, como sempre aconteceu, o aparelho do PCP se continua a esforçar por tornar opaca, repleta de silêncios e de silenciamentos, e de meias-verdades das quais será sempre prudente desconfiar um pouco e que a ninguém beneficiam. Ao longo destas duas centenas de páginas, que se lêem muito rapidamente, como quem lê uma boa reportagem, o leitor penetra num ambiente reconhecidamente «pesado», por vezes de cortar à faca, repleto de instantes de tensão e de desconfiança, vindos do interior de uma organização política que experimentava uma visível dificuldade em aceitar as regras de funcionamento dos partidos democráticos, e na qual a figura de Álvaro Cunhal se destacava ainda como árbitro e tutor, a um tempo inteligente e inflexível. A baixa intensidade de um efectivo debate político interno, essa apenas surpreenderá quem não conhecer a história dos partidos comunistas e a pesada herança leninista-estalinista do «centralismo democrático».

    Dirão alguns que esta é apenas uma versão da história e que o seu autor, apesar da profusão de dados e de documentos que revela, estará, afinal, a contar as coisas à sua maneira. É verdade que todos os relatos de acontecimentos vividos pronunciados na primeira pessoa contêm algo de subjectivo e de parcial. Mas, neste caso, os críticos têm bom remédio: que contem então a sua própria versão e confrontem aquela que agora é tornada pública. Todos nós ganharíamos, pois ficaríamos assim a conhecer, de modo mais completo e mais complexo, um momento importante para a história da esquerda em Portugal. Nada acontecerá, muito provavelmente: o PCP já ultrapassou há muito a batalha da qual nos fala agora Raimundo Narciso e limitar-se-á a depreciá-la, enquanto parte dos seus actores vivem hoje outras vidas ou já cá não estão para contarem também como foi.

    Adenda: Algumas úteis notas sobre este livro e as suas circunstâncias, escritas por João Tunes, podem ser encontradas aqui.

      História, Memória

      Os católicos contra a ditadura: a vez da voz

      Católicos contra

      Só recentemente se começaram a reconhecer de um modo sistemático as formas da oposição ao salazarismo organizadas à margem da actividade do Partido Comunista ou dos seus aliados tácticos e companheiros de jornada. A capacidade de organização e a tenacidade combativa dos comunistas, associadas às consequências da demonização que deles fazia o regime anterior, contribuíram em larga medida para fazer passar à condição de figurantes as outras formas e os outros espaços de resistência. Sem questionar a importância decisiva do PCP no combate contra a ditadura, é preciso reconhecer que se encontra ainda por estudar, por exemplo, a definição de uma «oposição cultural» crescentemente alargada e diversificada ao longo dos últimos vinte anos do Estado Novo, capaz de definir vivências e imaginários alternativos traduzíveis numa desafectação crescente de parte importante da juventude universitária e urbana, dos sectores artísticos e intelectuais e de muitos elementos das profissões liberais e da classe média. Por sua vez, a dissidência individual, inevitavelmente menos notória, permanece em larga medida por reconhecer, se exceptuarmos referências pontuais surgidas neste ou naquele obituário, ou então em homenagens públicas mais ou menos tardias.

      Os grupos organizados têm também permanecido quase na penumbra. A corrente socialista ainda não possui um estudo detalhado sobre a sua génese e desenvolvimento (um livro de Susana Martins constitui uma primeira tentativa). A esquerda radical só recentemente começou a ser objecto de estudo sistemático (principalmente com José Pacheco Pereira e Miguel Cardina), enquanto a actividade dos sectores católicos de oposição, apesar de recorrentemente mencionados e hoje publicamente «representados» na intensa acção cívica de muitos dos seus antigos activistas, continua por conhecer. Se exceptuarmos alguns textos de António Alçada Baptista e de João Bénard da Costa, a importância deste grupo tem sido recordada apenas em evocações episódicas, por vezes de pendor algo nostálgico, como aconteceu na comemoração dos quarenta anos da fundação da revista O Tempo e o Modo.

      Um contributo novo e relevante para alterar este estado de coisas acaba, entretanto, de ser proporcionado por Joana Lopes, autora de Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura, publicado pela Ambar. [continua em Passado/Presente]

        História, Memória

        Regresso ao passado

        Mao por Warhol

        A história da esquerda radical em Portugal começa a ser feita. Exceptuando estudos ainda dispersos e preambulares, a regra, porém, tem sido a produção de generalidades, introduzidas em obras de referência, e de reportagens, de teor mais ou menos anedótico ou sensacionalista, sobre o «glorioso passado revolucionário» de ministros, deputados e outras figuras públicas. E se as abordagens compreensivas daquele universo são raras, mais raros ainda são os testemunhos fornecidos pelos seus actores directos. A publicação de Conquistadores de AlmasMemórias de uma militância e prisões políticas (1970-1976), da autoria de Pinto de Sá (Guerra & Paz, 2006), sugere uma mudança neste panorama.

        Trata-se de um volume demasiado extenso para aquilo que tem para dizer, povoado de detalhes e de redundâncias que, por vezes, só não se tornam irrelevantes porque o livro se assume como um esforço confessional, exaustivo, que se pretende documentado, de ajuste de contas com o passado. Certos aspectos transformam-no, porém, em obra que merece ser lida com alguma atenção.

        Desde logo um factor perturbante: estas são as memórias de um «traidor». Alguém que integrou uma franja da oposição ao Estado Novo, mas que, confrontado com a prisão e o interrogatório da PIDE, rapidamente transigiu com os valores que defendera, fornecendo à polícia informações que possibilitaram outras prisões e o transformaram num seu informador activo e diligente. Facto que Pinto de Sá (PdS) tenta explicar pela interferência de uma capacidade de «conquista das almas» e de «massacre de personalidades» que a PIDE teria mantido. Esta experiência corresponderá a um fragmento do passado que outros portugueses partilharam e que não deixa de integrar o nosso lastro histórico. De facto, nem todos possuíam a mesma capacidade física, emocional e política para resistir à polícia: muitos sobreviveram a essa provação renegando as convicções e integram hoje a nossa sociedade democrática. Mas nem por isso a sua memória deve ser apagada.

        Parte da originalidade do livro encontra-se também na forma como este testemunha o processo de politização de um estudante universitário comum, quase sem referências políticas e culturais prévias. Mostram-se traços do início do processo de revolta que são comuns a grande parte da juventude urbana que emergiu nos anos 60 («a minha idade de contestação começou um dia em que ouvi na rádio o “Satisfaction” dos Rolling Stones», p. 18). Mas o mais importante é, neste aspecto, a descrição pormenorizada da gestação e nascimento de um «jovem maoísta», que ia balançando entre leituras apressadas e nem sempre compreendidas de alguns textos clássicos do marxismo e do leninismo, a imersão num activismo frenético e muitas vezes sem norte, e um desejo de aproximação às «massas» e ao «povo», sempre distantes e fortemente idealizados.

        Esta situação terá suscitado situações inquietantes, das quais é um bom exemplo a de PdS. Aquilo a que ele chama de «estado de paranóia” (p. 149) constitui, de facto, algo de notável no processo de formação da esquerda radical – e em particular na sua vertente maoísta – durante as décadas de 1960-70. A partir da experiência pessoal, aborda a discrepância entre a forma triunfalista como os jovens radicais imaginavam o desejo de mudança das «massas», o estado organizativo daquela que se considerava parte da sua suposta vanguarda, e a efectiva realidade sociológica e política. À compreensão deste aspecto associa, aliás, uma parte da argumentação que usa para explicar a sua traição, uma vez que, a dado momento, se apercebe finalmente do isolamento: «contrariamente aos elementos do PCP, (…) que se sentiam parte de metade da Humanidade e em regra tinham muitos laços afectivos e familiares com tradições de oposição ao regime, eu estava só» (p. 189).

        Deste distanciamento parte também a crítica que faz da atitude de crença no derrube da ditadura por parte de um sector que partilhava igualmente de uma outra concepção ditatorial do exercício do poder, partilhando «ideologias que foram em grande parte responsáveis pelo século mais sangrento da História» (p. 302), minimizando PdS essa vertente da oposição ao regime salazar-marcelista. Fica pois, no ar, a ideia de que todo aquele numeroso grupo de jovens – já agora, eles eram muitos mais do que aqueles que invoca, pois o grupo ao qual pertencia (o CCR-ML) foi porventura um dos mais circunscritos dos agrupamentos maoístas – ter-se-á batido por uma causa sem sentido e condenada a ser execrada pela História. Prestando maior atenção às circunstâncias do processo histórico PdS perceberia que, podendo ser essa uma leitura contemporânea, no tempo e no meio em que emergiu ela correspondeu a uma forma empenhada e generosa de combater a ditadura. Contribuindo, ainda que em escala reduzida, para adensar uma rejeição que o 25 de Abril levou depois às últimas consequências.

        Com alguma solidez interpretativa, com investigação suplementar sobre movimentos congéneres e sobre a própria realidade estudantil, com uma escrita mais cuidada e menos repetitiva, PdS teria, por certo, produzido um livro bastante mais útil e interessante. O que não significa que, enquanto testemunho vivido e sincero de uma época, deixe de ter utilidade. Servindo ainda, provavelmente, para exorcizar alguns fantasmas.

          Memória