Arquivo de Categorias: Memória

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Foi há tanto tempo e não parece ter acontecido há tanto tempo. Recordo bem as oito em ponto no relógio de pulso daquela manhã de sol gelada à porta de armas do quartel. E de uma mistura suada de raiva, estranheza e expectativa. Era já um outro eu, de certa forma diminuído, pois no dia anterior, para não sofrer os horrores da máquina zero, havia reduzido o cabelo àquele humilhante mínimo regulamentarmente exigido a um militar no ativo. Não, não contava que aquilo acontecesse tão depressa, embora devesse esperar que alguma coisa pudesse acontecer depois de alguns meses antes ter sido detido durante uma manifestação estudantil contra a guerra, metido em grupo numa infeta ramona, enfiado numa cela e interrogado por um tenente-coronel do exército que viria muito depois a ser meu aluno. Era previsível uma incorporação compulsiva e ela de facto sucedeu, adiando a universidade e abrindo um enorme parêntesis na minha vida. Foram trinta e dois meses muito fortes, exaltantes algumas vezes, durante os quais se sucederam episódios previsíveis, outros completamente inesperados e um com o qual sempre contara: aconteceu na madrugada de 24 para 25 de abril de 1974 e fez daquela vida uma outra vida. Completam-se hoje precisamente quarenta anos sobre o dia em que assentei praça como «soldado-instruendo 06137973» no Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha. Foi há tanto tempo e não parece ter acontecido há tanto tempo.

    Apontamentos, Memória, Olhares

    Avantesmas em pedra

    Para além dos edifícios oficiais imensos, feios e inóspitos, uma das marcas mais impressionantes da arte pública associada à estética do realismo socialista é a representada pela estatuária monumental. Durante décadas, dispersa por praças, ruas, jardins e até no interior de edifícios, a vitória do «socialismo realmente existente», a glória das suas figuras de proa e a apoteose dos seus valores e símbolos essenciais foi celebrada em estátuas gigantescas, de péssimo gosto, que se impunham de uma forma medonha em cenários frequentemente vazios, pobres e deprimentes. Existe até, na cidade lituana de Druskininkai, a 130 quilómetros de Vilnius, um espaço museológico parcialmente ao ar livre, o Grūto Parkas – conhecido localmente como «O mundo de Estaline» –, no qual se expõem, sob a forma de pesadelo vivo, centenas de exemplares deste universo absurdo de bronze e granito. Na Coreia do Norte subsiste a extravagância, tendo ainda recentemente sido inaugurada em Pyongyang, ao lado da conhecida estátua colossal de Kim-Il-Sung, o «líder eterno», outra equivalente, representando o seu filho e «querido líder» Kim-Jong-Il. Pois agora, o costume regressa à Polónia, ainda que subordinado a uma orientação ideológica algo diversa: neste domingo começou a ser erguida na cidade silesiana de Czestochowa, o maior centro católico do país, uma estátua gigantesca do papa João Paulo II. Desta forma tornará à região a tradição pavorosa das avantesmas em pedra.

      Apontamentos, Artes, História, Memória

      Ainda «o lado brilhante da vida»

      Christopher Hitchens

      Não sei se existe alguma dissertação académica sobre o tema, mas é muito provável que sim, apesar dele requerer uma disposição psicológica especial. A «literatura de estado terminal», a escrita de leito de morte, é um género que se impõe por si mesmo, uma vez que os escritores, os críticos, os historiadores, os jornalistas, também morrem, e, por certo, a maioria daqueles que perto do fim estejam em condições físicas e com discernimento para o fazerem terá sempre a tentação, por vezes transformada em ato, de escrever, de escrever uma vez mais, talvez pela derradeira vez. Agora sobre essa experiência única pela qual está a passar, do convívio com o fim iminente da própria vida no limite da capacidade de se fazer ouvir. Walt Withman terá sido um dos que foi mais longe, ao completar em 1892, já muito perto da morte e totalmente dependente dos outros, a derradeira versão de Leaves of Grass, declarando-a como a única fidedigna e completa. (mais…)

        Apontamentos, Memória, Olhares

        Desmantelando fronteiras

        O que pode aproximar num manifesto comum pessoas com trajetos políticos tão diametralmente opostos como aqueles protagonizados pelos deputados europeus Daniel Cohn-Bendit (n. 1945), antigo libertário e atual copresidente do Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, e Guy Verhofstadt (n. 1953), do Grupo Democrata e Liberal, primeiro-ministro da Bélgica durante quase uma década? De forma condensada mas nem por isso mutilada, pode responder-se a esta pergunta falando de uma constatação e de uma proposta. A constatação é imposta por uma imagem que hoje poucos terão coragem de negar: «a Europa é um edifício que vacila nos seus alicerces», imersa numa crise profunda e assustadora, simultaneamente económica, demográfica, ecológica, política e institucional, pela qual europeu algum passa incólume e que questiona um paradigma de desenvolvimento, de bem-estar, de cooperação e de liberdade que ainda há pouco parecia robusto e irreversível. (mais…)

          Atualidade, Memória, Opinião

          O passado, de visita

          Maio de 1968

          Merece um post detalhado que escreverei adiante. No entanto, chamo desde já a atenção para a saída de As Armas de Papel, de José Pacheco Pereira (ed. Temas & Debates – Círculo de Leitores), grosso volume que funciona como um dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política emergentes na década que antecedeu o 25 de Abril. Interessará em primeiro lugar aos historiadores e a um público empenhado em conhecer de forma mais completa e menos unívoca a atividade dessa parte da oposição política ao anterior regime que teve, desde o início, o objetivo de transformar a queda deste no lançamento de uma alternativa revolucionária ao capitalismo indígena e ao sistema colonial que o sustentava. Mas, mais do que isso, oferece aos olhos de quem o não conheceu, ou dele na época teve uma visão parcial e sectária, o retrato de um mundo dinâmico e alternativo, que tinha rompido completamente o cordão umbilical com o universo mental do salazarismo e também com o da oposição mais ortodoxa ou reformista. Produzindo ao mesmo tempo um microcosmo incandescente que influenciou, de uma forma ou de outra, parte significativa da elite política e cultural portuguesa das últimas décadas. Não se trata de perceber a ligação de tudo isto com aquilo em que, cerca de meio século depois, esses largos milhares de pessoas se transformaram, mas sim de ver, com a mão em muito dos papéis que as moldaram politicamente e deram sentido aos seus combates de então, o caldo de cultura de distanciamento radical com o país antigo e «habitual» que estes documentos bem ilustram. Para os conhecermos depois em maior detalhe existem os arquivos físicos e digitais, naturalmente, mas esta é uma boa introdução ao tema. De caminho, uns quantos revisitarão ainda, através destas páginas, uma parte do seu passado que também é nosso.

            História, Memória

            O inútil caminho do ódio

            O ódio contra alguém começa devagar, mas se não é atalhado não para de crescer. Ele parte de uma aversão nebulosa, alimentando-se do rancor e jogando-se na inimizade e na repulsa que afastam até um ponto de não retorno. Mas não é meramente passivo: o ódio leva quem o vive a tentar isolar, a procurar destruir, a tudo fazer para abalar as ideias, a forma de estar, o passado, o presente e o futuro de quem tanto se detesta. É um sentimento mórbido, que cega sem remissão, que avilta, que nada produz, que coage a liberdade e tiraniza quem o vive. Além disso, raramente age de forma frontal: por regra denigre, insinua, alimentando-se de rumores, de meias-verdades e de mentiras. Nada tem a ver com o reconhecimento da diferença ou com o combate limpo contra as ideias da pessoa da qual se discorda, de quem não se gosta e que se rejeita. (mais…)

              Democracia, Memória, Opinião

              Portugal numa biografia

              Jorge Sampaio

              Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições. (mais…)

                Biografias, História, Memória

                A outra China

                Ao lado dos campos de batalha das duas Guerras Mundiais e das campanhas de extermínio levadas a cabo pelos grandes regimes totalitários, as principais mortandades do século passado já não foram determinadas por epidemias, como acontecera recorrentemente em tempos mais recuados, mas antes pela fome. O mais doloroso e inaceitável é que elas ocorreram como consequência de uma política consciente e deliberada de governos que teriam, supostamente, a obrigação de prevenir, ou no mínimo de reduzir, o seu impacto. Estima-se que o Holodomor, a fome de caráter genocidário, hoje já bem conhecida nas circunstâncias e nos números, que devastou a Ucrânia em 1932-1933, enquanto em Moscovo se proclamavam as «vitórias», quase todas fictícias, do 1º Plano Quinquenal, de acordo com as estimativas menos pessimistas terá feito entre 5 e 6 milhões de vítimas. Nada de comparável, porém, à Grande Fome, que na China sobreveio entre 1958 e 1962, durante a qual o número de pessoas mortas devido aos seus efeitos terá muito provavelmente rondado os 45 milhões. (mais…)

                  História, Memória

                  O elétrico vermelho

                  Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

                    Apontamentos, Memória, Olhares

                    A vida de Ricardo

                    Antes ainda de ser vertida para o inglês, Ryszard Kapuściński: A Life, a biografia do jornalista e escritor polaco nascido Pinsk, na Bielorrússia, em 1932, e falecido em Varsóvia no ano de 2007, escrita por Artur Domosławski, seu antigo colaborador e também jornalista, tinha já algum impacto mundial. Não é difícil perceber os motivos desse rápido eco. Ryszard Kapuściński foi um jornalista experiente e respeitado, conhecido por ter entrevistado centenas de atores políticos de primeira linha e calcorreado este mundo e o outro. Traduzido em muitas línguas sempre com apreciáveis tiragens, tinha e conserva a reputação de homem corajoso, aventureiro, sedutor e inteligente, e que ainda por cima escrevia muito, muito bem, de uma forma literária, assumidamente poética, rara no seu meio profissional. Mas do qual, talvez devido à nacionalidade e à língua periféricas, bem como aos longos anos de relativa discrição, pouco se sabia. Por isso, poder saber-se mais, e logo num grosso volume atulhado de episódios e de revelações, transformou-se rapidamente em fator de interesse. (mais…)

                      Biografias, História, Memória

                      As faturas e a apoteose do ridículo

                      Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.

                        Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

                        De um Portugal português

                        Enquanto este blogue respira uns dias para ganhar outro balanço, aqui vai um post publicado há um pouco mais de quatro anos. Talvez não esteja muito desatualizado.

                        Portugal Anos 50Numa tarde destas, enquanto me esforçava uma vez mais por dar algum sentido aos livros acumulados sem grande nexo, reencontrei um conjunto de postais reproduzindo fotografias de Gérard Castello Lopes tiradas ao Portugal dos anos 50. Foram editadas em 1999 na companhia de pequenos textos de dois Antónios. «Outros tempos, outros lugares», sublinhava um deles, o Tabucchi, na contracapa. O outro, o Barreto, falava de um país passado que Castello Lopes revirou e nos ofereceu contrariando uma quase crónica escassez de imagens. Mas será realmente assim? Estaremos a olhar aqui para um país inteiramente outro, mergulhado num sono coletivo e prolongado do qual só na década de 1960 teria sido possível despertar? Revejo as imagens e encontro em quase todas elas vestígios de um Portugal que me parece o de sempre, diverso daquele que hoje habitamos mas nem por isso imóvel, nem por isso falho do movimento que é parte da memória comum. Na qual continua a apoiar-se aquilo que nos aproxima, ajudando a desenhar a comunidade que imaginamos. (mais…)

                          Atualidade, Fotografia, História, Memória

                          Memória da esquerda da esquerda

                          Mao e o Lótus Azul
                          Mao e o Lótus Azul

                          Nos últimos anos tem vindo a crescer o  volume de estudos e de testemunhos de caráter autobiográfico sobre os trajetos da «extrema-esquerda» em Portugal nos tempos que precederam ou se seguiram à Revolução dos Cravos. Esta tendência tem ajudado a superar dois equívocos que durante algum tempo integraram a «lenda» pública construída a propósito desse setor da oposição ao antigo regime. Um deles, talvez o mais conhecido, é o proposto de um modo quase sempre ligeiro e sensacionalista por alguma comunicação social, mais interessada em explorar os «pecadilhos» juvenis desta ou daquela figura pública cujo trajeto de vida passou por ali do que em compreender historicamente o seu compromisso. O outro, mais profundo, assenta na perspetiva divulgada pelos setores que os militantes dessa área consideravam então reformistas, ou «revisionistas», e que ainda hoje não convivem bem com o facto de, apesar da sua «doença infantil» (seguindo o diagnóstico de Lenine) ou do seu «radicalismo pequeno-burguês», as organizações «esquerdistas» terem crescido e protagonizado sob o marcelismo importantes lutas contra o regime e a Guerra Colonial. Desempenhando também, apesar de confinadas aos meios estudantis e intelectuais, e ainda a estreitas franjas da juventude operária, um manifesto papel de catalisador no teatro político do imediato pós-25 de Abril. (mais…)

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                            A Voz da rádio

                            No velho Programa 1 da Emissora Nacional, do tempo pré-Abril, existia uma rubrica, típica da Guerra Fria, que continha essencialmente propaganda anticomunista e se destinava a reforçar o semblante psicologicamente atemorizador da «Cortina de Ferro». Encerrava sempre o arrazoado em tom autoritário com a mesma frase, bradada por voz masculina, que dava até o título ao programa: «A verdade é só uma, Rádio Moscovo não fala verdade.» A verdade a que os portugueses tinham direito era então determinada pelo controlo ou pela vigilância das quatro estações de rádio em onda média, curta ou FM permitidas pelo regime. Do outro lado do continente, pela mesma época, para a imensa maioria dos cidadãos a questão punha-se de uma forma muito idêntica: apenas podiam ouvir rádio, em casa, nas lojas, nas cantinas ou nos locais de trabalho, através de aparelhos como este, construídos sem sintonizador, com um só botão para ligar/desligar e para aumentar ou diminuir o volume. Desta forma forçados a ouvir sempre a mesma voz. Como aquela que se podia ouvir deste lado, apresentada como certa, segura e rigorosamente indiscutível. A pesada Voz da Verdade.

                              Apontamentos, Etc., Memória

                              Oshima e a educação sexual

                              Morreu ontem aos 80 o realizador japonês Nagisa Oshima, a quem, no obituário, o Público chama com justiça «um dos mais importantes cineastas do corpo». Todavia, em Portugal, para muitas pessoas o cinema de Oshima permaneceu na memória devido apenas à exibição pela RTP, numa noite de 1991, do seu O Império dos Sentidos. O erotismo do filme, focado na relação obsessiva entre a prostituta Sada e Kichizo, o dono do bordel, gerou algum escândalo e teve destaque de primeira página, com o arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, a insurgir-se contra a inclusão da obra na grelha do canal público. Ficou para o futuro a sua frase sobre o que vira: «Aprendi mais em dez minutos deste filme do que no resto da minha vida». À volta da exibição de O Império dos Sentidos, tenho aliás para contar uma história igualmente curiosa, ainda que um pouco mais antiga. O filme foi estreado em Portugal em 1976, o ano de produção, e vi-o no meio de um tumulto. Dado o erotismo patente nos fotogramas que acompanhavam a sua divulgação, no cinema onde o pude ver – o velho Avenida, de Coimbra – o público era composto por uma estranha mescla de pessoas interessadas em «cinema de autor» e outras, menos dadas às artes e desinteressadas da crítica, que acreditavam tratar-se simplesmente de mais um filme pornográfico. Como não era obviamente o caso e as cenas se arrastavam sem qualquer exibição de sexo explícito, gerou-se rapidamente um tumulto, com os amantes do hardcore a manifestarem a sua indignação, abandonando a sala e exigindo aos berros a devolução do dinheiro do bilhete. Nunca soube em que ficou o episódio, uma vez que fui dos que permaneceram sentados e viram o filme até ao fim. Ainda que sem o proveito pedagógico que teria mais tarde o arcebispo de Braga.

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                                Nós, albaneses

                                Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. (mais…)

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                                  A capital e o país nos anos 60

                                  A historiografia que se ocupa da fase final do Estado Novo tem enfatizado, entre as condições que conduziram à queda do regime, os fatores políticos, militares, diplomáticos, económicos e sociológicos que foram limitando a sua capacidade para se renovar ou mesmo para se manter de pé. Tem sido destacado, com toda a justeza, o papel das oposições organizadas na construção do espaço de resistência e favorável à sublevação que tornou possível, ou inevitável, o 25 de Abril. O que raras vezes tem sido mostrado é que essa dinâmica de mudança teve uma outra componente, ao mesmo tempo subterrânea e aparatosa, traduzida na importação de valores e de hábitos internacionais, já em curso nos países industrializados, na afirmação da uma nova cultura juvenil e na introdução de práticas de consumo capazes de abalar a fortaleza política e moral que, desde a sua já distante génese, o salazarismo e a propaganda do regime tinha procurado defender e apresentar como modelar. (mais…)

                                    História, Memória, Olhares

                                    As escolhas

                                    Quanto mais difíceis, incertas e dramáticas são as épocas e as situações, mais facilmente se reconhecem as grandes qualidades e os piores defeitos daqueles que as vivem. Aquilo que de melhor e de pior todos nós temos. E isso acontece mesmo em situações-limite, quando o medo do sofrimento, da exclusão e da morte pode fechar cada um sobre si próprio, aparentemente impenetrável e dúctil, ocupado com as tarefas mais elementares da sobrevivência. Calar-se, não ver, passar ao lado, sair dali, é então a atitude mais comum. No entanto, os relatos dos que sobreviveram ao internamento nos campos de concentração e de extermínio recordam, com insistência, que mesmo nos limites mais extremos da barbárie dos carcereiros e da desumanização dos detidos foi possível, em instantes fugazes, aparentemente impercetíveis, mas muito intensos, encontrar sinais de compaixão e de coragem, bem como, ao invés, marcas indeléveis de impiedade e traição. (mais…)

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