Num tempo no qual se repetem, uma vez mais, as tentativas sistemáticas de representar Israel e o sionismo como um universo unívoco, parte integrante de um odioso «império do mal», sem se ter em conta, por ignorância, casmurrice ou má-fé, a diversidade e as contradições que separam, por vezes profundamente, os cidadãos israelitas e as distintas formas de sionismo, retomo, quase três anos depois, um fragmento da entrevista ao escritor Amos Oz, conduzida por Alexis Lacroix, que saiu no nº 494 do Magazine Littéraire, de Fevereiro de 2010. (mais…)
Sábado. Dia das compras da semana. No hipermercado deparo com brigadas do Banco Alimentar Contra a Fome. Estranhamente, por comparação com outros anos, muito menos pessoas param, aceitam os sacos vazios para encher de alimentos para quem precisa, oferecem o que podem com um sorriso de compreensão. Não sei se será consequência do agravamento das condições de vida da classe média, de onde provinha a maioria dos doadores, se será resultado das infelizes declarações da presidente do Banco, ou se advirá de ambas as coisas. Por um acaso, quando no final da manhã entrei num quiosque, dei de caras com este texto, incluído na reimpressão em fac-simile de um Livro de Leitura da 1ª Classe editado em 1957. Também a mim, como a Isabel Jonet, com quem neste particular concordo, dói a possibilidade da miséria e da fome em Portugal poderem chegar ao nível do que acontece atualmente na Grécia. Mas não me doerá menos ver o meu país a regredir até ao passado infame e desditoso que este texto apresentava como natural.
Um amigo que sem querer perdi algures disse-me uma vez que a música mais noturna que conseguia conceber era a de Bill Evans. Mas nunca se explicou, não teve tempo ou alguma coisa nos separou antes desse tempo chegar. Talvez ele a associasse, imagino-o agora, à sombra longínqua da cave nova-iorquina onde nunca estivera, ao ruído dos copos cheios e vazios por cima das conversas que ouvira em filmes, ao fumo denso dos cigarros exibidos nas capas dos discos. Nunca o contrariei, embora tivesse uma outra percepção, bem mais diurna e próxima do piano de Bill. Tardes quentes da infância com os febrões próprios da infância. O termómetro a subir e os lençóis frescos, mudados de fresco. Uma mosca a espiralar. A luz filtrada pelas cortinas da casa que um dia foi a minha. Os passos suaves da minha mãe na escada exterior. A porta entreaberta e, vindo lá do fundo do fundo do corredor, aquele timbre singular no velho rádio de onda média. Um Bill febril a chegar com a luz do dia.
Sob a pressão dos muitos milhares de manifestantes da antiga RDA que exigiam nas ruas e praças do país democracia, liberdade e pares de jeans, o Muro de Berlim caiu na noite de 9 de novembro de 1989. O episódio representa, a par das passadas de Neil Armstrong na Lua e do derrube das Torres Gémeas, um dos três acontecimentos a que assisti e de que tenho memória nos quais tive a imediata perceção de viver em direto um «momento histórico». A Queda do Muro teve aliás um impacto brutal em quem, por essa época, tinha passado alguns anos no clima pantanoso e sombrio da Guerra Fria. No que me diz respeito, a intervenção da propaganda – associada a um visionamento talvez demasiado precoce de Cortina Rasgada, de Alfred Hitchcok – levara-me em criança a imaginar que a Cortina de Ferro era mesmo uma pesada rede metálica, eletrificada, impenetrável e letal, separando para sempre o Bem do Mal em dois mundos antagónicos. E ainda em 1975, no contacto breve mantido por motivos fortuitos com dois cidadãos soviéticos, tive a estranha sensação de lidar na Quinta Dimensão com uma parelha de perigosos alienígenas. Mais do que uma alteração do equilíbrio do mundo, da qual continuamos a sofrer as fortes e imprevisíveis ondas de choque, foi pois uma mudança radical na perceção que então era possível ter desse mundo que a Queda do Muro começou por impor. E é principalmente a memória desse espanto de ver a vida toda a mudar em poucas horas que permanece em quem passou, incrédulo e sem conseguir dormir, essa intensa noite berlinense pregado ao televisor. Foi há 23 anos.
O trabalho do britânico Ian Kershaw tem sido ocupado principalmente com a história alemã do Terceiro Reich e o trajeto pessoal e político de Adolf Hitler. Em Até ao Fim aborda os últimos dez meses da existência do regime nazi, aqueles que vão da tentativa de assassinato do Führer, em 20 de julho de 1944, até à rendição do regime, ocorrida em maio do ano seguinte. Fá-lo procurando obter uma resposta para uma pergunta posta logo no início do livro: o que terá feito com que a Alemanha, cuja derrota já então se mostrava inevitável, optasse por combater até ao fim? Afinal, mesmo nas guerras mais mortíferas do passado, sempre ocorrera um momento no qual os comandantes vencidos reconheciam a derrota e chegavam a um compromisso com os vencedores, na tentativa de evitar males maiores ou de salvar a própria pele. Todavia, com a Alemanha de Hitler nada disto aconteceu, tendo o território germânico de ser conquistado aldeia a aldeia, rua a rua, cidade a cidade, numa espiral de violência que fez com que na classificação macabra das baixas civis e militares da Segunda Guerra Mundial os alemães tenham ficado num macabro segundo lugar, logo após os soviéticos. A larga maioria das vítimas, incluindo cerca de metade dos soldados alemães mortos na guerra, pereceu no entanto, justamente, nesses derradeiros meses, sobretudo como consequência dos bombardeamentos maciços dos Aliados e do avassalador avanço do Exército Vermelho. (mais…)
Durante um quarto de século, o passado das centenas de milhares de portugueses chegados ao Portugal europeu com a descolonização pareceu ter sido apagado. A integração foi dramática, difícil e em larga medida incompleta, mas se o seu futuro continuou a preocupar, o que ficara para trás parecia «merecer» o completo apagamento. Foi só quando a normalização possível da situação dos «retornados» deixou de ser um problema coletivo que estes adquiriram uma nova visibilidade. Esta foi conquistada recentemente e de um modo muito lento, apenas projetada no interesse público, aliás, numa fase bem posterior à abordagem da própria Guerra Colonial, também ela silenciada e só a partir da década de 1990 em condições de começar a ser objeto de um grande número de leituras de natureza crítica, jornalística, histórica, política ou ficcional. Neste caso, afora a publicação de alguns romances (como o recente O Retorno, de Dulce Maria Cardoso) e de textos de natureza memorialística e nostálgica, poucos livros abordaram o tema do regresso de uma forma equilibrada, sem com isso querer dizer desvinculada da emoção invocada pela memória e da mágoa imposta pelo silêncio. Mas é isto que procura e consegue Voltar, da autoria da jornalista Sarah Adamopoulos. (mais…)
Em 23 de outubro de 1956, há exatamente 56 anos, uma manifestação estudantil ferozmente reprimida pela polícia política em Budapeste tornou visível, mais de uma década antes da «Primavera de Praga», a primeira tentativa de democratizar o socialismo de Estado, associando-o a uma maior transparência política e a mais liberdades públicas no contexto do que foi então chamado «um socialismo verdadeiro». O movimento de oposição ao regime de partido único cresceu rapidamente e prosseguiu com a formação de milícias que tomaram o poder na capital e em outras cidades. O derrube da estátua colossal de Estaline teve na altura um particular simbolismo. Num ambiente efervescente, foram levadas a cabo ações de vingança sobre os agentes da ÁVH, a Polícia de Segurança do Estado, bem como sobre muitos quadros do Partido dos Trabalhadores Húngaros. O seu Comité Central ensaiou então uma abertura e Imre Nagy, um comunista reformista em tempos quadro do Comintern, foi nomeado primeiro-ministro, mas o Bureau Político mudou de ideias e acabou por apelar à intervenção militar de Moscovo. Em 4 de novembro, uma poderosa força soviética entrou em Budapeste. (mais…)
Em memória do Manuel António Pina (1943-2012), o MAP, com quem falei apenas em duas ocasiões, mas que sem o saber, e com toda a certeza sem o querer, foi um dos meus heróis. Uma crónica sua.
Aos Nossos Heróis
Éramos jovens e habitávamos um lugar cercado de paredes onde os ecos do longínquo mundo chegavam esparsos e abafados. E, no entanto, o nosso coração pequeno-burguês (des gens de la moyenne como cantava Colette Magny sobre o Dia do Estudante de 1966) estava maduro, pulsante de sentimentos excessivos e de palavras por dizer. De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nosso coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então contra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e lachienlit. (mais…)
Esta noite sonhei que voltara ao passado. Ainda melhor: sonhei que fora ao passado roubar, para poder usar nestes dias sem luz, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude por alguns revista como insana, a energia sem medida, cuja evocação nunca me encheu de nostalgia porque as troquei por outras coisas e porque sei que a memória mais bela e perfeita tem sempre a forma de fábula. Pensando bem, afinal nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que por motivos diferentes. Fui antes buscar outra coisa, que ao contrário das fases e das dinâmicas da vida, permanece imortal porque transcende o tempo curto que nos cabe. Falo da esperança e da vontade indómita de mudar as coisas do mundo, sabendo sempre que nelas se misturam, em partes iguais, a imaginação do que há-de vir e o banho de realidade que sempre defronta o futuro.
Em La Chinoise, o filme que Godard rodou em 1967, numa parede do pequeno e bem burguês apartamento de Paris que serve de quartel-general ao bando de jovens irredutíveis, aprendizes de alquimista da Revolução que há-de vir, que protagonizam o filme, encontra-se escrito, com letras delicadamente decalcadas, «é preciso confrontar as ideias vagas com as imagens claras». Uma frase, se a memória desgastada não me engana, justamente da autoria de Mao Tsé-tung. Nela se resume o princípio que no meu sonho procurei trazer de volta para este lado do tempo. O de que não há intervenção política capaz sem que a precedam o esboço de impossíveis quimeras. Porque o excesso de realismo e a ditadura da «política do possível», imune à ideia de salto, de viragem, deu no que deu. Como o comprovam os noticiários assustadores, soturnos, deprimentes, que ainda somos capazes de ouvir.
Viajo no tempo e tento concentrar-me na época em que deixei a Igreja católica apostólica romana. Até à altura em que as dúvidas apareceram, tinha sido um fiel convicto, praticante, tão seguro da minha crença e dos seus dogmas que cheguei uma vez a zangar-me com os meus pais por estes se afirmarem católicos e não frequentarem a Santa Missa. Aos 14, porém, comecei a sentir-me desconfortável e rapidamente encontrei duas razões para me afastar dos rituais, primeiro, e depois da fé. A primeira razão teve a ver com a recusa de uma retórica oca, repetitiva e indecifrável que nada me segredava: as prédicas aborrecidas que se limitavam a frase feitas sobre «o fim dos tempos» que eu não conseguia vislumbrar que coisa fossem, sobre uma «Salvação» que não percebia do que me iria afinal salvar e sobre o Espírito Santo, chamado de «Paráclito» sem que ninguém me explicasse que esta era a palavra grega para «consolador», enchiam-me de tédio. E, pior, nada tinham a ver com as letras das canções dos Rolling Stones, que acima de tudo adorava. (mais…)
Quando cumpri os três meses de recruta do serviço militar, apesar de o fazer contrariado habituei-me rapidamente a quase tudo o que tinha a ver com a disciplina e o esforço físico. No entanto, sofria bastante com as noites de caserna. Posso descrever o cenário do horror: 200 mancebos numa espécie de hangar povoado de beliches em ferro e que produzia um eco danado, 50% a ressonar, 20% a escrever cartas às namoradas e 30% a jogar ruidosamente infinitas partidas de king ou de sueca. À luz de velas, obrigatoriamente, já que depois das 22 horas a iluminação era limitada às lâmpadas de presença. Quem, como eu, não tinha sono, não tinha luz para matar o vício da leitura e era hipersensível ao cheiro a estearina queimada, passava horas seguidas de inferno na Terra. (mais…)
A primeira parte deste Mulheres de Armas foi escrita por Isabel do Carmo, ex-dirigente das Brigadas Revolucionárias, a organização fundada em 1970 por militantes saídos do PCP e outros antifascistas com o objetivo de sabotar o aparelho militar ao serviço da Guerra Colonial e, a partir de 1973 em conjugação com o Partido Revolucionário do Proletariado, de impor pela via das armas uma revolução socialista. A antiga militante revolucionária evoca nestas páginas os momentos fundamentais da história das Brigadas no que respeita à participação ativa de mulheres no seu lançamento e nas ações de combate que a organização protagonizou, como assaltos a bancos para recolha de fundos, sabotagens de instalações militares ou iniciativas de propaganda que incluíram o rebentamento de petardos. Ressalvando pormenores de natureza autobiográfica, alguns deles pitorescos, nesta longa introdução aquilo que sobressai não é a exposição de informação totalmente desconhecida, mas a manifestação do papel destacado de muitas mulheres, único então nas fileiras da Oposição, em iniciativas de primeira linha no campo da ação armada. (mais…)
Uma curiosidade. De acordo com listagens publicadas nos principais jornais diários da altura, para além de obras de autores portugueses perseguidos pela ditadura, os livros mais vendidos em Portugal entre Maio e Julho de 1975 foram O Combate Sexual da Juventude e O Que É a Consciência de Classe?, ambos de Wilhelm Reich, O Livro Erótico Chinês, de Li Yu, A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra, de Engels, A Pequena Antologia do Anarquismo, contendo textos de Stirner, Bakunine e Kropotkine, a Prática Epistemológica das Ciências Sociais, de Manuel Castells, e as anónimas Memórias Eróticas de um Burguês. Marx, Lenine ou Mao ocupavam lugares relativamente modestos.
Comecei a fumar aos dez e a sair de casa com a chave no bolso aos catorze. Nessa fase da vida, tal como acontecia com tantos rapazes de tantos lugares e com vidas tão diferentes, convivia com três problemas bastante tormentosos: a necessidade imperativa de conseguir a primeira namorada, a irritante impossibilidade de assobiar juntando dois ou três dedos, dentes e força de peito, e, last but not least, a mais completa incapacidade para obter anéis espiralados com o fumo do cigarro. Quanto ao primeiro fez-se o possível, mas os dois últimos nunca foram solucionados. E continuo a invejar quem consegue fazer tais malabarismos sem esforço aparente e com a certeza de cumprir o seu inexorável destino de macho.
Após o 25 de Abril, a extensão da liberdade de expressão e o desenvolvimento do sistema multipartidário alimentaram em Portugal uma forte aproximação entre as diversas instâncias do poder e a vida dos jornais. Políticos e jornalistas compreenderam rapidamente que a sua atividade e os seus destinos se encontravam agora unidos: os partidos e as instituições democráticas precisavam da comunicação social para se relacionarem de forma mais direta e eficaz com aqueles que formalmente representavam, enquanto esta encontrava na divulgação da atualidade política um motivo de interesse para fidelizar os diferentes públicos. Todavia, o processo não foi linear, tendo-se em alguns momentos produzido a relação de promiscuidade entre os dois universos que ainda persiste. Neste cenário, o pior que pode acontecer, para a saúde da democracia, mas também para a vitalidade da informação, é esse relacionamento não ser observado de uma forma crítica e contextualizada. É por isso de grande interesse e proveito a leitura de Apogeu, Morte e Ressurreição da Política nos Jornais Portugueses, da jornalista, investigadora e professora Carla Baptista. (mais…)
A passagem do tempo é danada e por isso estão a acontecer tantas mortes de pessoas com quem aprendi a fábula do mundo. No verão de 1967, eu era um pré-adolescente que vivia numa pequena vila de província onde nada acontecia de imprevisto ou de incompreensível. Entretinha-me por isso, como muitos outros em lugares idênticos, a imaginar vias de escape, vidas possíveis, menos frágeis e mais excitantes, alternativas de cidades, hipóteses de estradas, remixes de ambientes onde tudo fosse obrigatoriamente diferente da monotonia pequena com banda sonora de fado plangente e zumbido de moscas. Os cenários previstos eram copiados dos romances de aventuras, das revistas de atualidade, dos filmes e das séries que passavam na televisão, das músicas que podia ouvir e guardar dentro do que era possível ouvir e guardar no Portugal daqueles anos.
Como para milhões de jovens, dali, de outros países e de todos os lugares, um dos pontos de fuga e alternativa possíveis era a cidade de São Francisco. Por causa da ponte suspensa e das ruas paralelas e onduladas mostradas no Vertigo de Hitchcock ou no Bullit de McQueen, talvez, é provável; mas principalmente por ser a cidade eleita daqueles ingénuos bandos de rapazes e miúdas de longos cabelos floridos, «a whole generation with a new explanation», que pareciam anunciar (eles acreditavam que sim) o princípio do mundo. Um mundo outro, mais feliz, com toda a certeza, porque menos igual àquele que os (e nos) limitava. Por isso, como tantos mais, ouvi nesse verão, infinitas vezes, em loop eterno, o primeiro disco que comprei, contendo o hino de Scott McKenzie convocando para um encontro algures em San Francisco. Lugar para onde partiria, se me deixassem e o oceano não fosse tão largo, de olhos fechados e com um brilho na alma. Vai então, Scott, e, man, pá, «be shure to wear some flowers in your hair». É o mínimo.
Quando era criança costumava passar o Agosto inteiro na praia da Figueira da Foz. Umas semanas bastante aborrecidas, ocupadas com infinitas horas de vagas e areal, intervaladas de sestas, merendas e sonos noturnos para descansar do excesso de mar, sol e areia. Num certo ano, porém, os meus pais resolveram aproveitar a altura, sem pedirem opinião, para tentarem fazer de mim um desportista, inscrevendo-me por atacado em três cursos de formação. Um ensinava a andar de patins e o objetivo era, naturalmente, prepararem o futuro jogador de hóquei: fui a uma única lição, estatelei-me duas vezes e desisti logo ali. Outro curso ensinava natação mas percebeu-se imediatamente que aquele não era o meu ambiente natural: enquanto as outras crianças começaram a nadar à quarta ou quinta aula, e eu só o consegui, e mal, à décima segunda. (mais…)