Arquivo de Categorias: Música

♪ Melodia de sempre.9

A canção My Funny Valentine, de Rodgers e Hart, estreada no filme musical Babes in Arms, de 1937, transformou-se num standard do qual existem agora mais de 1.300 versões. Gosto muito de pelo menos 100 das centenas que conheço. Três delas, em crescendo dramático, neste final de tarde.

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Frank Sinatra
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Chet Baker
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Keith Jarrett Trio
    Música

    Gracias a Mercedes

    Mercedes Sosa morreu hoje em Buenos Aires. Se fue então para um algures bem distante. A sua voz foi das poucas, vindas do canto de intervenção internacional das décadas de 1960-70, que jamais deixou de me empolgar. Talvez por ser tão poderosa que parecia chegar lá do fundo mais fundo da alma humana. Por ser simplesmente solidária, longe do panfleto e mais forte que as circunstâncias. Pelo menos eu assim a ouvi e assim a recordarei.

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    Gracias a la Vida – Mercedes ao vivo com Joan Baez
      Memória, Música

      Eu, nós todos, e os Beatles

      The Beatles

      Sempre que falo sobre a afirmação triunfante da música e da cultura pop nos inícios da década de 1960 para um público jovem, deparo com uma boa dose de compreensão, ou mesmo de simpatia, se evocar Elvis Presley ou Jim Morrison. Mas a referência aos Beatles é invariavelmente acompanhada de sorrisos trocistas, denunciadores de uma certa dificuldade em compreender, ou em aceitar, o papel dos fab four em todo aquele movimento. «Quem? Aqueles tipos de franja ridícula que cantavam umas coisas mais ou menos melosas, mais ou menos kitsch, para damas meio passadas?» No momento em que o lançamento mundial de uma edição totalmente remasterizada da sua discografia completa faz regressar às primeiras páginas os rostos e a memória dos quatro de Liverpool, apetece-me porém voltar ao tema.

      Tanto quanto sou capaz de recuar até à pré-adolescência, confino a minha percepção inicial do papel dos Beatles neste mundo a três momentos. Num primeiro, o mais antigo, recordo a descoberta em casa de uns primos de um single em vinil que destacava Love Me Do e ouvi obsessivamente, com grande demonstração de paciência da parte dos meus tios, ao longo de semanas. O segundo momento foi marcado pelo meu encontro de rapaz de província com o número especial da revista francesa Salut les copains, dedicado ao grupo inglês em plena beatlemania e repleto de imagens daquela que então me parecia ser a mais excitante forma de vida possível à face da Terra. A terceira evocação leva-me ao reencontro do meu primeiro pecado mortal, consumado quando invejei profundamente L., um tipo um pouco mais velho que eu, proprietário de um daqueles casacos de gola «à Beatle» – isto é, sem gola –, que calçava umas botas pontiagudas de elástico lateral e fazia uma imitação, a meu ver perfeita e com grande êxito entre o público feminino, de Twist and Shout.

      Nessa altura, a minha percepção daquela música e daquelas imagens era totalmente acrítica e marcada pela absoluta admiração. Por uma sedução, percebi-o depois, suscitada pela desafectação melódica daquelas canções, pela simplicidade dos textos estritamente vivenciais, pelo ritmo vibrante, então único. Marcada também, como estava a acontecer com milhões de jovens em todo o mundo, pela atracção por uma atitude cénica desafiadora e sem termo de comparação, pela ostentação da alegria e da brincadeira face a uma cultura dominante «adulta» que as procurava espartilhar dentro de limites «aceitáveis». Só depois, muito depois, encontrei nas canções dos Beatles – aquelas que já não oiço mais ainda prefiro, as dos primeiros álbuns, de Please Please Me, saído em 1963, até Revolver, lançado em 1966 – alguma coisa mais: o seu papel de território pioneiro sobre o qual outros puderam depois projectar sob os holofotes uma percepção poética e hedonista do mundo, uma naturalização do amor e do sexo descomprometido, uma atitude independente e de certa maneira rebelde. Característica dessa cultura juvenil, então em formação, que inflectiu a experiência do quotidiano dos filhos do Pós-Guerra, para lançar os fundamentos de um mundo que definiu a nossa contemporaneidade.

      Mas claro que, para um número crescente de pessoas, a compreensão deste papel pela via única da inteligência ou dos manuais de história, mesmo a projectada pelos média ou reproduzida – tal como vai acontecer a partir desta semana – num jogo de computador, será sempre insuficiente. Por muitas reedições que se façam da discografia parcial ou completa dos Beatles, John, Paul, George e Ringo morrerão um dia, definitivamente, com o eclipse final dos últimos daqueles que um dia de alguma forma ajudaram a libertar. Não vislumbro os nossos descendentes do século 22 a trautearem No Reply ou Ticket to Ride. Entretanto, podemos divertir-nos ainda um pouco.

        Memória, Música, Olhares

        E eu que sempre quis uma Gibson-Les Paul

        Les Paul

        Aos 94 anos, morreu ontem o músico Les Paul, inventor da guitarra eléctrica e também um dos seus mais importantes fabricantes. Sem a iniciativa que tomou em 1941, quando pela primeira vez juntou um amplificador a uma guitarra de madeira, o mundo não seria aquele que conhecemos nos últimos sessenta anos. Em Rock’n’Roll Jews, Michael Billig lembra como o tom estridente da guitarra eléctrica, produzido a um ritmo intenso, rápido e sincopado, capaz de efeitos acústicos inusitados, passou a soar «de uma forma completamente diferente de qualquer coisa que a anterior geração tivesse ouvido». Enquanto aqueles que tinham atravessado os anos difíceis da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial preferiam ainda a música amena e romântica dos crooners, que induzia estados melancólicos e de acalmia, da uma natureza basicamente conformista, muitos dos seus filhos, crescendo em tempos de maior segurança e de expansão económica, mas também de recusa de uma perspectiva auto-satisfeita do mundo que herdaram, escolheram a sonoridade inesperada e rude, associada a um novo hedonismo e a novos modos de vida, que o jazz pós-bebop e sobretudo o rock and roll passaram a oferecer. Recorrendo à invenção de Paul. Aquele senhor que ainda há poucos meses continuava a tocar regularmente no Iridium Jazz Club de Nova Iorque.

          Apontamentos, Artes, Música

          Começo de uma era

          De walkman pela estrada fora

          A música verdadeiramente portátil começou nos inícios da década de 1960, com a vulgarização do rádio transistorizado, do gira-discos e do gravador de pilhas. Eles foram instrumentais no lançamento de uma nova cultura popular centrada na música urbana e nos seus ambientes. Mas essa era uma experiência ainda partilhada, vivida em grupo ou exibida diante dos outros, na praia, em piqueniques, em bailes de garagem. Só o aparecimento do walkman rompeu com tal dinâmica, transformando a portabilidade da música em mantimento do individualismo galopante que emergiu nos eighties. Forneceu também a possibilidade de um novo tipo de apropriação cinematográfica do quotidiano, hoje reforçada com a banda sonora infinitamente renovável, transportada por cada um no seu leitor de mp3. No entanto, quando o processo começou, há mais ou menos três décadas atrás, toda essa mudança parecia ainda mais do que improvável. «Diziam que eu devia estar maluco para andar por aí de auscultadores», conta o alemão-brasileiro Andreas Pavel, inventor do stereobelt, estreado em 1972, sete anos antes da Sony lançar no mercado o seu primeiro walkman comercial, mas ignorado na altura pelos grandes fabricantes. O começo deste pedaço da história recente, início provável de uma nova era na utilização banal ou celebratória da música e na construção sensorial do mundo, é contado aqui.

            Etc., Memória, Música

            Reencontro

            Robert Creeley

            Reencontrei por um acaso, nas rápidas arrumações do duplo feriado, Home, um disco soberbo que me acompanhou durante parte do inverno de 1980/81. Uma música que na altura me aproximou, e muito, da poesia de Robert Creeley (1926-2005). Os músicos são do melhor: a voz de Sheila Jordan, mais Steve Kuhn, David Liebman, Steve Swallow, Lyle Mays e Bob Moses. Um acaso feliz, o regresso a um certo passado. Aqui, a Some Echoes.

            Some echoes,
            little pieces,
            falling, a dust,

            sunlight, by
            the window, in
            the eyes.  Your

            hair as
            you brush
            it, the light

            behind
            the eyes,
            what is left of it.

            [audio:http://aterceiranoite.org/sons/some echoes.mp3]

              Memória, Música, Olhares

              «Portugal, one point»

              Madalena Iglésias

              Pela década de 1960, ambém eu fazia parte daquela maioria de portugueses para os quais o Festival da Eurovisão representava um momento relevante das suas vidas. Uma diversão rara, num quotidiano onde elas escasseavam, e, em parte por influência do canal único da televisão, uma espécie de fórum internacional de transcendente importância. Dos poucos nos quais Portugal era ouvido, ainda que apenas sob forma canora. As expectativas eram sempre grandes e alguns jornais traziam até umas tabelas para os seus leitores irem anotando, ao longo do serão, a votação dos diversos júris nacionais. No que me dizia respeito, todos os anos agarrava num lápis, numa régua e numa folha de papel quadriculado, e desenhava uma outra tabela, para a qual convocava a atenção dos adultos que se juntavam à frente do televisor na esperança de vibrarem com uma cançoneta como vibravam com os golos europeus do Eusébio. E todos colaboravam, não sei se por condescendência se com verdadeiro empenho.

              O fim da noite, como se sabe, era sempre tristonho e desconsolado, com a cantoria nativa invariavelmente entre os piores classificados. E se o último lugar jamais aconteceu, foi porque o júri madrileno acamaradava connosco e, por obra e graça da solidariedade franquista, nos dava os pontos suficientes para escaparmos à tangente da humilhação das humilhações. A mágoa era enorme e recordo-me muito bem de uma vez ter até chorado de raiva e impotência. O que servia de consolo era que no dia seguinte os jornais faziam coro com a cólera dos portugueses e davam a entender que a pátria tinha sido enxovalhada por uma qualquer intriga da responsabilidade conjunta do comunismo internacional e das ingratas social-democracias europeias. A verdade é que ainda hoje, sempre que se aproxima mais uma das monumentais exibições de kitsch nas quais se transformou o Festival – nesta precisa noite apresentado aos berros, em inglês, a partir da outrora funesta Moscovo – experimento uma secreta esperança revanchista, indelével cicatriz deixada na alma pelo oxigénio salazarista: «Será desta? Será desta?»

                Apontamentos, Memória, Música