Arquivo de Categorias: Olhares

Excesso de presente e usos da história

O historiador François Hartog chamou «presentismo» a uma forma de encarar o tempo que desvaloriza o passado e despreza o futuro como dimensões da experiência humana, valorizando apenas o presente. Para quem a assume, esquece-se o que ficou para trás e apagam-se as utopias abertas ao futuro, visto como mera repetição da realidade atual, instalando-se a descrença na hipótese de mudanças substantivas. Resta então o presente como modo de orientação no tempo, tomando-se o anteriormente vivido como uma névoa ou uma sombra, e encarando-se o que virá sem réstia de esperança. Os «presentistas» habitam, pois, um eterno presente, que julgam o único lugar do possível. Uma perceção que não cai do céu, mas resulta da conjugação de cinco fatores. 

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    Cegueira política e eleições nos EUA

    Li ontem, no Público, um artigo de opinião Alexandra Lucas Coelho sobre a convenção dos democratas norte-americanos, pejorativamente intitulado «Kamalas, Obamas, Tonys & Tims: o espetáculo da América que arma a guerra», que é claro sinal de um posicionamento desastroso e irrealista face à política norte-americana e aos seus reflexos no mundo. Lamento dizê-lo, pois, apesar de com frequência pautado pelo viés do sempre restritivo «wokismo», gosto geralmente daquilo que, em diferentes géneros, a autora escreve.

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      Kamala e a América

      A noite passada, madrugada aqui em Portugal, o discurso de aceitação de Kamala Harris, perante a Convenção do Partido Democrata, como candidata à presidência dos EUA, foi, como seria de esperar, um excelente exercício de determinação e de retórica, recebido no centro de congressos de Chicago com um enorme entusiasmo e de forma triunfal. Se tivesse, como um certo presidente da República, a incumbência de atribuir notas de 0 a 20 no domínio da oratória, se a Barack e Michelle Obama teria atribuído, sem pestanejar, a ambos um 20, a Kamala dou sem qualquer dúvida um 19. Mas os Obama são, de certa forma, seres de outro planeta no campo da capacidade de comunicação, enquanto a afirmativa candidata democrata ainda pertence ao domínio do humano.

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        As vidas, as obras e a complexidade de tudo

        De tempos a tempos, quando por alguma razão – seja uma polémica, um prémio recebido ou o seu desaparecimento físico – se destacam nos jornais ou nas redes sociais figuras com um recorte público, é fácil surgirem arrebatados testemunhos, sejam os de quem apenas as elogia ou, no lado oposto, aproveita o momento para as denegrir. Umas e outras tendem a desvalorizar a complexidade do humano e o facto, sem exceções, de jamais alguém ter apenas realizado coisas formidáveis ou só cometido erros, oferecido unicamente beleza ou defendido ideias detestáveis. E, todavia, um grande número de pessoas tende a olhar as demais, sobretudo aquelas que se destacam da mediania, apenas sob uma perspetiva unívoca, dividindo-as de forma, singelamente dualista, apenas em indiscutivelmente «boas» e inequivocamente «más». 

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          Esperança e expectativa

          A renovada candidatura democrata à presidência dos Estados Unidos, agora com duas figuras enérgicas, carismáticas e progressistas no boletim, está a oferecer uma nova esperança a quem já dava por certa a vitória de Trump e do seu programa de destruição da democracia na América e de agravamento do equilíbrio mundial. Kamala Harris e Tim Waltz têm ambos um tom vibrante e um currículo de defesa dos direitos humanos, das mulheres, do serviço público e da liberdade que é muito positivo. Quem acompanha a realidade política norte-americana sabe que os meandros do Partido Democrata são complexos e nem sempre transparentes, mas esta não é altura para esquisitices, uma vez que são, de facto, dois universos opostos que estão em confronto. Perante o que se avizinhava, e como já mostram as sondagens, há agora uma viragem que todos os e as democratas do planeta esperam que se mantenha e alargue até ao voto popular de 5 de novembro.
          [Foto: Chris Lachall /USA Today]

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            Fé ou convicção

            Aquilo a que chamamos fé designa habitualmente uma crença de natureza religiosa, política ou moral que não carece de justificação racional e determina o empenho diário de quem a possui em prol do ideal no qual ela se apoia. Já a convicção é um estado de espírito que resulta de um facto ou de numa ideia cuja existência e sentido podemos provar de modo racional, deste processo resultando uma dose de certeza e de necessidade que conduz à ação. Os dois conceitos parecem, pois, antitéticos, mas quando o primeiro deles em certas circunstâncias contamina o segundo, tudo o que daí resulta é pervertido, passando a apresentar-se como convicção aquilo que não passa de uma extensão de fé. Na história humana, particularmente com religiões assassinas ou ideologias totalitárias, este contágio tem produzido sucessivos desastres.

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              Americanismo, antiamericanismo e eleições nos EUA

              Born in The U.S.A. não é, nem de perto para o meu gosto, a melhor canção de Bruce Springsteen, mas sirvo-me de uma estrofe sua. Nela proclama o músico de New Jersey: «À sombra da penitenciária / Junto às chamas da refinaria / Há dez anos a arder na estrada / Sem lugar para onde ir ou fugir». O registo é habitual numa importante tradição da cultura popular norte-americana que celebra o indivíduo comum, a quem nada é oferecido e que, numa sociedade selvagem, jamais pode dar por seguro o dia de amanhã. Resta-lhe continuar o caminho e a sua luta diária. Muitos rapazes de várias gerações e diferentes continentes (e algumas raparigas, também), cedo conviveram com esta lírica do desespero que, «nascida na América», alimentava um imaginário de aventura, feito de travessias entre lugares inóspitos e conflitos fatais, em busca de um mundo mais justo. 

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                Um mapa «da Palestina» negativo e danoso

                Está a circular profusamente pelo Facebook e outras redes sociais, deixado inclusive por pessoas que muito prezo ou de quem sou amigo, e que acredito terem sobre o tema posições mais equilibradas e racionais, e não apenas emotivas e epidérmicas, um suposto mapa «da Palestina», legendado em árabe e na perspetiva do Hamas, destinado a celebrar o combate do povo palestiniano pela sua independência. A causa é, sem qualquer dúvida, justíssima, para mais nesta altura tão dramática para a população de Gaza, e essa lembrança é adequada. O mapa em causa, todavia, além de estar manifestamente errado, por muito incompleto, parte de um pressuposto político, vindo de determinado grupo, que é negativo e danoso para a própria causa palestiniana.

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                  A guerra civil como «solução»

                  Refere Jorge Almeida Fernandes, em artigo saído no Público de hoje, que um inquérito do Chicago Project on Security and Threats, da Universidade de Chicago, indica que que 10 por cento dos norte-americanos seriam favoráveis à violência para impedir que Trump chegue à presidência, enquanto sete por cento se declaram favoráveis à violência para reinstalar Trump na Casa Branca. Isto é, a confiarmos no estudo, 17% das pessoas de uma nação com 334 milhões de habitantes, ao redor de 57 milhões de seres humanos, defende, na prática, que a solução para os seus problemas coletivos será uma nova guerra civil. Para além da situação de bipolarização agregadora do ódio, a prova provada da continuada instalação da ignorância entre uma parte imensa da população dos Estados Unidos da América, seja a da história do seu próprio país, ou a dos simples efeitos de uma qualquer guerra civil, sempre a mais terrível e destruidora de todas ocorra ela onde ocorrer. [originalmente no Facebook]

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                    O wokismo contra a justiça e a emancipação

                    Apesar de ter sido utilizado em textos da cultura política desde os meados do século XIX, o termo «Woke», que deriva da expressão «stay woke» – em tradução livre, «fica alerta» –, expandiu-se muito mais tarde. É atualmente associado a alguns movimentos e práticas reivindicativas que enfrentam o racismo, a discriminação de género e outros fatores de injustiça social, defendendo uma tomada de consciência ativa e uma intervenção imediata. Apesar de lhe reconhecer a utilidade inicial, o filósofo Jean-François Braunstein considera-o hoje «uma «religião sem perdão», instalada sobretudo em ambientes académicos, que terá evoluído como uma «epidemia que varre o mundo ocidental». 

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                      Perigo no Reino Unido

                      As notícias sobre a vitória incontestável e estrondosa do Partido Trabalhista nas eleições gerais que tiveram lugar ontem no Reino Unido, com 412 deputados e 9,8 milhões de votantes para os 121 dos conservadores, com 6,8 milhões, merecem um olhar cuidado. Desde logo porque ela apenas foi possível com uma considerável inflexão dos trabalhistas ao centro, o que lhes poderá ter concedido a fácil vitória, mas os irá forçar também a manter compromissos que facilmente trarão problemas e descontentamento.

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                        Objetivo: esperança

                        O que está a ocorrer em França e que as eleições em curso mostram com clareza, como, em diferentes tonalidades, está também a acontecer na generalidade das democracias, é um renascimento e um avanço da extrema-direita. Apoiada hoje, não em ideologias de superioridade étnica e em grupos de choque nas ruas, mas nas estratégias oblíquas do populismo e na suja manipulação da informação e da verdade, cavalgando, ao mesmo tempo, as facilidades, a degradação dos projetos e um estado de entorpecimento presentes entre as forças progressistas. Talvez isto possa servir de safanão para que estas possam despertar do torpor e do hábito, abandonando o sectarismo e abrindo-se mais à inovação dos projetos e à colaboração entre si. Trata-se de uma esperança, é certo, mas de esperança sempre se alimentou o que de mais positivo emergiu do trajeto humano.
                        [Originalmente no Facebook]

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                          Armadilhas da memória, tecnologia e liberdade

                          De vez em quando, escutamos conversas, ou lemos textos, onde encontramos lamentos sobre a «falta de liberdade» determinada pela parafernália eletrónica, ao nível das tecnologias da comunicação e das suas aplicações, que chegou para ficar e se apoderou das nossas vidas. Se é verdade que a quantidade crescente de dispositivos, bem como as diferentes práticas de interação que estes permitem, pode determinar graus de dependência e implica um uso do tempo que vamos retirar a outras atividades – como ler em papel ou ir ao cinema e ao teatro, ou como passear, conviver e trabalhar – também o é que ampliam, muitas vezes bastante, as escolhas, o conhecimento e a interação. 

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                            A «maldade dos políticos», Camus e a ética

                            Se fosse forçado a viajar para uma ilha deserta e a ali permanecer incomunicável até ao meu último dia, e se antes de partir me dessem a hipótese de transportar comigo um caixote com livros, embora de um único autor, apesar do desgosto de deixar muitos para trás escolheria sem dúvida os de Albert Camus. Levaria absolutamente tudo o que escreveu e se encontra publicado em milhares de páginas: os romances, os ensaios filosóficos, os diários fragmentados, os combativos artigos de opinião, os discursos públicos, mesmo os apontamentos e notas de leitura espalhados por jornais e revistas, bem como as coletâneas de emotivas cartas que trocou com amigos, camaradas e amantes. 

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                              Três reflexões em tempo de pós-europeias

                              1. A primeira coisa que um observador progressista dotado de razoável sentido de realismo político dirá é que os resultados globais das eleições para o Parlamento Europeu não foram tão maus quanto se esperava. Ao contrário de muitas sondagens e de diversos textos de reconhecidos analistas, a extrema-direita populista, apesar de ter crescido – e isso aconteceu particularmente em dois estados centrais, como a França e a Alemanha – não conseguiu, longe disso, impor uma maioria soberanista e antidemocrática. Ao contrário, os partidos democráticos do centro-direita e os do centro-esquerda, mantêm-se em maioria, o que augura, se nada inesperado acontecer, cinco anos de laboriosas negociações e, em muitos casos, de impasses. Em contrapartida, as forças associadas à política verde e às causas da esquerda recuaram de uma forma inquestionável, o que é uma má notícia, reduzindo a possibilidade de uma reformulação da política europeia no sentido cada vez mais imperioso da proteção do clima, da solidariedade social e da defesa da paz e dos refugiados. 

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                                Porque não podem passar nas Eleições Europeias

                                A exclamação «Não Passarão!» remonta à Batalha de Verdun, ocorrida em 1916, pronunciada então pelo general francês Robert Nivelle. Mais tarde, durante a Guerra Civil Espanhola, foi usada entre 1936 e 1939, durante a defesa de Madrid, pela dirigente comunista Dolores Ibárruri, «La Pasionaria», inspirada num cartaz republicano de Ramón Puyol. Destinava-se a mobilizar a resistência contra a insurreição militar que procurava derrubar a República, da qual viriam a resultar, após mais de meio milhão de mortos e o triplo de feridos e prisioneiros, a vitória do franquismo e quatro décadas de feroz ditadura. A partir dessa altura, o lema passou a exprimir por toda a parte e em todas as línguas a determinação de resistir aos fascismos e a quem deles partilhe metas e métodos.

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                                  Partilho uma decisão pessoal com quem me segue nas redes sociais e tem acompanhado em artigos de opinião e campanhas de natureza cívica. 

                                  Apenas tive atividade partidária entre 1971 e 1977, ligado então a uma organização da esquerda revolucionária da qual saí mais por razões de natureza ética do que política. O distanciamento político surgiu depois e veio devagar, se bem que a evolução pessoal jamais colidisse com valores fundamentais de solidariedade e justiça que cedo adotei e jamais deixei de partilhar. 

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                                    É muitas vezes evocada a importância do movimento estudantil na resistência ao Estado Novo e o seu importante contributo para a queda do regime caduco e injusto que o sustentou. Infelizmente, esta evocação é com frequência bastante parcial, sendo acompanhada de um esquecimento de vários dos seus importantes momentos, escolhas e protagonistas. Esta tendência determina perspetivas incompletas, que relativizam o papel crucial e de longo fôlego, para a vitória da democracia, da intervenção política e cultural de sucessivas gerações de estudantes. Nos cinquenta anos de Abril, vale a pena mencionar esta lacuna centrando a atenção no caso de Coimbra e nos últimos anos do anterior regime.

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