Podemos estar a viver um desastre anunciado, relacionado com uma forma redutora de fazer política. Na sua aceção mais básica, esta é, desde a antiga Grécia, a arte de participar na governação da comunidade. Visa o todo, não a parte, e o que em democracia separa os partidos com vocação de governo daqueles que se décadas a fio se limitam a uma atitude protestativa ou de representação de setores minoritários, é justamente a capacidade que têm para considerar uma ampla diversidade de interesses na definição das suas estratégias e das suas campanhas.
Seja ele o passado, o presente ou um idealizado futuro, não podemos viver sem ficções do real que recorrem a mitos. A definição de mito – os relatos fantásticos que deram significado à vida quotidiana da Grécia antiga serão sempre o seu modelo primordial – é complexa e cheia de sentidos; todavia, para o que aqui importa, destaco dois que constam do Dicionário Houaiss: «a construção mental de algo idealizado» e, a ela ligado, «um valor social ou moral (…) decisivo para o comportamento dos grupos humanos em determinada época». O mito é, pois, indispensável para o funcionamento das sociedades humanas, ao participar como peça nuclear na construção da sua coerência e dos diferentes sentidos de pertença de quem as habita. As mitografias, por sua vez, juntam constelações de mitos, com eles compondo modos sistemáticos de representar o mundo.
Qualquer força política, para não ser um irrelevante conjunto de homens e de mulheres agrupados à volta de uma sigla, de uma bandeira e de um programa mínimo, para ser mais que um mero instrumento na partilha dos poderes, e sobretudo para ter alguma utilidade na organização do quotidiano das sociedades democráticas, precisa conciliar e aplicar dois fatores tão críticos quanto decisivos. O primeiro prende-se diretamente com os interesses materiais dos indivíduos e dos grupos, o que significa atender aos vários processos reivindicativos e fazer-se porta-voz destes, seja qual for a dimensão em que se coloquem: regalias, condições, direitos, garantias, expetativas e afins. O segundo fator prende-se com a gestão das sociedades a médio prazo ou a perspetiva proposta para o seu desenvolvimento, bem como com os caminhos para a produção de um futuro coletivo e para o desenho que este possa tomar. Ambos os fatores são imprescindíveis, mas apenas pesam e têm consequências se forem combinados.
Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».
Ontem à noite, enquanto via na HBO mais um episódio da série de televisão, já com alguns anos, sobre a vida pública e privada de John Adams (1735-1826), uma das figuras centrais da Revolução Americana e o segundo presidente dos Estados Unidos, confrontei-me com um tema recorrente nas biografias de homens e de mulheres que dedicaram o essencial da sua vida à arte – arte porque deve misturar técnica e invenção – da política. Refiro-me a considerar a forma como essa escolha, se estiver associada a um ideal e a uma perspetiva coerente do mundo e da história, em muito determinou as suas escolhas de vida, as suas relações pessoais, a sua capacidade para distinguir o importante do acessório. Sendo construída como uma missão, à qual tantas vezes se sacrificam o descanso, a tranquilidade, alguns prazeres e mesmo a própria família, enquanto os riscos e as situações mais árduas se sucedem. O longo percurso de Adams, desaparecido aos 90 anos, para a época uma eternidade, foi disso constante testemunho.
A impressão dominante que produz em muitos de nós esta passagem dos vinte anos sobre o 11 de setembro de 2001 – «esta comemoração», como de forma absurda se dizia ontem numa televisão – é a de incredulidade. Desde logo por terem passado tão rapidamente duas décadas sobre um momento que parece ter ocorrido há apenas alguns meses, mas também pelo caráter intensamente plástico do acontecimento. Cujas imagens, sobretudo aquelas que se ligam ao derrube do World Trade Center e ao intenso drama humano então ali vivido, ainda hoje contêm algo irreal, como uma ilusão cinematográfica produzida com recurso a efeitos especiais. Existe, todavia, uma outra dimensão, que remete para uma realidade agora muito presente na qual permanecemos inequivocamente mergulhados: a de um mundo inseguro, onde os equilíbrios relativamente estabilizados do tempo da Guerra Fria deram lugar a um mapa pós-apocalíptico, dentro da qual os fatores de instabilidade, de incerteza e de perigo se multiplicaram, ampliaram e todos os dias desdobram.
Os populismos, sejam os associados a diferentes ditaduras do século passado, ou aqueles que ocupam um lugar de destaque nos sistemas políticos contemporâneos, incluindo nestes os que parasitam hoje a democracia representativa procurando transformá-la em «iliberal» – um oximoro difundido pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán – são mais habitualmente conotados junto da opinião pública com a extrema-direita política. A sua proposta formal de superação do fosso existente entre a elite e o povo não é, sob essa perspetiva, senão uma tentativa de aprisionamento deste último por parte de um grupo que proclama falar em seu nome justamente para lhe retirar poder e ter condições para agir de forma autoritária e completamente arbitrária.
O que se consumou por estes dias no Afeganistão, «cemitério de impérios» onde já os exércitos de Alexandre, o Grande, da Inglaterra imperial, da Rússia dos czares e depois da União Soviética foram desafiados e vencidos, foi uma enorme e humilhante derrota política dos Estados Unidos da América. A intervenção militar naquele país da Ásia Central, decidida por George W. Bush logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 protagonizados pela Al-Qaeda, foi à época explicada como uma iniciativa de «guerra justa», de caráter defensivo, decidida porque os seus perpetradores ali conservavam as principais bases, continuando a ameaçar os EUA e a Europa. Daí o imediato apoio do Reino Unido, seguido da intervenção da NATO. Da iniciativa resultou então a queda do feroz regime taliban, no poder desde 1996.
É óbvio que o que está a acontecer no Afeganistão traduz uma enorme e manifesta derrota da política dos EUA para a região e mesmo para o mundo. E também, uma vez mais, da total ausência dela por parte da União Europeia. A tentativa de imposição forçada de um modo de vida jamais resultará em lado algum, ainda que por algum tempo possa parecer que isso está a acontecer. O próprio Joe Biden vem agora, de forma surpreendente, lavar as mãos e declarar que é impossível impor um modelo de sociedade a quem o não deseje. Pior ainda, da parte dos norte-americanos, é terem deixado cair os seus numerosos aliados locais, servindo-se de muitos deles e abandonando-os agora, quebrando todas as promessas, à mercê de quem não perdoará a escolha que fizeram ou a que as circunstâncias determinaram. Este é um enorme golpe no estado de graça e no prestígio internacional de que até agora Biden parecia gozar.
O poder local sinaliza muito do que de melhor produziu a nossa democracia com um historial agora de já perto de meio século. É também uma das áreas da coisa pública onde mais facilmente se podem encontrar marcas de bloqueio e insuficiência. Em ano de eleições para as autarquias, faz sentido projetar uma breve visão panorâmica desta componente fundamental da nossa vida coletiva. Ultrapassadas que foram as intensas, embora fugazes, experiências de democracia direta que foram ensaiadas durante o biénio revolucionário de 1974-1975, aquela que mais perto se encontra do cidadão comum, afetando o seu dia-a-dia, as suas escolhas e as suas expectativas.
Comecemos pelo início. Durante a ditadura, aquilo a que chamamos hoje poder local era limitado por pesados constrangimentos. Desde logo por não ser democraticamente eleito, sempre sujeito a nomeações governamentais, atribuídas apenas a pessoas fiéis ao regime e provindas das elites. Depois, porque tinham um âmbito de intervenção restritíssimo, diretamente subordinado à orientação, à autorização e à vigilância do poder central, intermediado pelos antigos governos civis. Além disso, dependiam nas suas iniciativas de um apertado regime de influências, sendo a obra realizada, para além de muito limitada na comparação com os projetos que conhecemos hoje, em regra atribuída ao favor de um governante ou à dádiva de um benemérito, cujo nome ficava associado ao melhoramento.
Desde que tenho a profissão que tenho, com horários maleáveis, mas extensos e jornada de trabalho sempre a rondar as 60 horas semanais, muitas vezes sem fins de semana, feriados e boa parte das férias, tento viver o mês de Agosto de forma tranquila, cortando as amarras físicas com o espaço habitual de trabalho e fazendo por viver num regime mais livre, ainda que cumprindo muitas vezes extensas jornadas de leitura e escrita. Na verdade, são parte do que sou e do que faço desde muito cedo, e por isso não as tomo como um fardo. Conheço muitas pessoas que durante bastante tempo foram agindo de uma forma análoga, fazendo do Agosto sempre um tempo de descanso e respiração. As circunstâncias ajudavam, pois também ninguém ia exigir de mim, ou de nós, que durante esse mês investíssemos em algo que nos impedia de fruir esse pulmão.
Muito provavelmente, de todos os protagonistas da Revolução de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho terá sido, e assim permanece, aquele que sentimentos mais desiguais desperta. Amado e odiado, desde logo pela forma como se tornou um dos símbolos maiores do derrube da ditadura, do qual foi o principal estratega operacional e que comandou a partir de um edifício pré-fabricado instalado no quartel da Pontinha. E de seguida por ter sido um dos protagonistas do processo revolucionário na sua fase ao mais épica e dramática, nela servindo, ao mesmo tempo, como agente mobilizador e como árbitro. Mas também pela forma como viveu os anos pós-Revolução, assumindo-se durante algum tempo como um dos símbolos da resistência à institucionalização de uma democracia estritamente representativa – altura na qual aceitou ser a «consciência moral» de setores que a ela preferiam um «poder popular» que julgavam mais perfeito – e mais tarde, já perto do final da vida, aceitando com alguma amargura que o regime democrático tivesse esquecido o ideal de utopia inscrito na sua matriz fundacional.
O conceito de ideologia é complexo e pode ser observado sob muitas perspetivas. Algumas consideram-na uma máscara da realidade, como a de Marx, para quem representou a «consciência falsa» do mundo, ou a de Althusser, que a viu como a «relação imaginária» que cada indivíduo mantém com a sociedade que o rodeia, submetida no domínio do coletivo ao que chamou os «aparelhos ideológicos do Estado». Pode, todavia, destacar-se o seu sentido nuclear como conjunto de ideias ou de doutrinas que consubstancia uma visão estruturada e coerente do mundo e da história destinada a influenciar a realidade. Quando uma ideologia que se pretende libertadora determina uma perspetiva rígida da vida social e da história, confluindo com argumentos ou instrumentos de natureza autoritária – o que tem acontecido demasiadas vezes – acaba por dar argumentos aos que a combatem no que possa conter de justo e construtivo.
Encontrei hoje em artigo de jornal, uma vez mais, o uso do conceito de tradição a servir como argumento de autoridade para justificar uma dada escolha. De acordo com esta maneira de pensar, isto ou aquilo é bom, ou está certo, ou é adequado, ou deverá acontecer, porque se inscreve numa sequência que se crê repetida. Ao invés, para quem segue esta lógica, uma determinada escolha deverá ser modificada, ou mesmo rejeitada, porque se manifesta «contra a tradição». Como se sabe, o termo tradição vem do latim traditio, que tem o significado de «entrega» ou «passagem de testemunho», e integra a transmissão social, realizada dentro de um mesmo tempo ou passada de geração em geração, de determinados costumes, comportamentos, hábitos, memórias, rumores, crenças ou lendas.
Existem muitas situações e escolhas, vividas no presente, que dificilmente se podem comparar com outras, ocorridas em momentos do passado e só na aparência análogas, que as mesmas pessoas experimentaram. As alterações da realidade social, das práticas culturais e dos direitos políticos, a diferença dos códigos éticos e jurídicos vigentes a cada momento, determinam sentidos muito diversos. É importante entender isto num tempo em que, dada a maior exposição da privacidade, a mais ágil circulação da informação e uma compreensão mais crítica de escolhas e direitos, é fácil responsabilizar-se alguém pelo que defendeu há trinta ou há quarenta anos, sem se ter em conta a transformação pessoal e a do todo. Não me refiro a crimes, cuja prescrição é sempre complexa e muito discutível, mas a valores e a escolhas. Quem tem um curto trajeto de vida, ou reduzido conhecimento da história, pode não entender esse processo, julgando com um olhar de agora o que ocorreu num mundo diferente. Ao contrário, as pessoas mais velhas ou que não se deixam cegar pelo momento, estão em regra mais aptas para atender às circunstâncias.
Jornais e televisões nacionais destacam, do que aconteceu ontem, 15 de junho, em Budapeste, apenas a vitória portuguesa por três a zero – merecida, aliás – no jogo de futebol de onze disputado com a seleção local. Omitem em regra aspetos relevantes, justamente porque transcendem o caráter fortuito de uma partida de futebol.
Se existe conflito para o qual não parece existir fim à vista é aquele que no Médio-Oriente envolve Israel e a Palestina. Esta situação arrasta-se há tanto tempo, e com tão escassos e temporários resultados positivos, que a tendência dominante é para se olharem todas as tentativas de solução com profunda descrença. Considera-se por hábito que ali a violência, a opressão e a instabilidade, hoje protagonizadas sobretudo pelo governo militarista israelita, tenderão a eternizar-se, sendo uma hipotética solução de paz empurrada para um futuro tão distante quanto imprevisível. Como algo que poderá ocorrer apenas quando um confronto de proporções verdadeiramente bíblicas, ou então uma viragem mundial que altere a relação de forças na região, reduzirem o papel dos que de um lado e do outro adotam posições absolutamente inflexíveis e que excluem qualquer negociação honesta.
O escândalo estalou ontem a propósito de um caso, tendo os desastrados esclarecimentos da Câmara de Lisboa que lhe sucederam conduzido rapidamente a outros. É um facto: responsáveis dos serviços camarários têm fornecido informações a embaixadas, onde identificam cidadãos responsáveis pela organização de protestos que questionam os regimes dos seus países. Sabe-se, para já, que isso aconteceu com a Rússia, com Israel, com a China e com a Venezuela. Não me admiraria se tivesse acontecido também, por exemplo, com o Brasil de Bolsonaro. De facto, pessoas com cargos numa importante instituição do nosso regime democrático têm violado a constituição e feito orelhas moucas à proteção dos dados dos cidadãos, contribuindo assim para a perseguição de opositores a Estados que, consabidamente, praticam formas avançadas, algumas delas pautadas por uma grande violência, de repressão interna da divergência.