Arquivo de Categorias: Opinião

O essencial e o acessório

Fotografia de Mike
Fotografia de Mike

A crítica mais justa que pode fazer-se a este texto será talvez a de ele não dizer nada de substancialmente novo. De retomar leituras e posições em relação ao papel desempenhado na atual sociedade portuguesa pelo Partido Socialista que foram já verbalizadas noutros momentos. Todavia, circunstâncias recentes tornaram-nas ainda mais atuais. Qualquer um que se dê ao trabalho, ainda que em observação ultrarrápida, de abordar a história dos congressos do PS, verá como desde o Segundo, ocorrido em Outubro de 1976, tanto nas resoluções aprovadas quanto, e sobretudo, na maioria das intervenções, não se ouvia uma linguagem tão politicamente à esquerda quanto aquela escutada este fim de semana. Ao ponto de, novidade absoluta na história do partido, se fazerem apelos formais a um corte com os setores do centro-direita com os quais nas últimas décadas ele tem preferencialmente dialogado ou governado. Bem vistas as coisas, aquilo que muitos socialistas parecem tentar fazer é o que ao longo dos últimos quarenta anos a maioria das forças à sua esquerda lhes exigiu constantemente: formalizar uma clara rutura com a direita e abrir-se a um efetivo diálogo «à esquerda». (mais…)

    Apontamentos, Democracia, Opinião

    Convergência ou unidade?

    Ao contrário do que acontece com a direita, que não mostra dificuldade alguma em esquecer as divergências sempre que está em jogo o núcleo elementar dos interesses e dos ideais que representa, na história e na mitologia da esquerda inscreve-se a bold a constante enunciação de uma unidade ao mesmo tempo desejada e impossível. Para além da ideal entrega comum à busca de uma sociedade mais justa, mais igualitária e do bem-estar para todos, a sua história é feita principalmente de separações e disputas, raramente de aproximações duradouras. Estas apenas foram possíveis, sempre com limites programáticos e temporais, em momentos nos quais a força de circunstâncias dramáticas ou de medidas urgentes se impôs, como aconteceu durante a República espanhola, a guerra contra o nazismo ou as lutas de emancipação nacional e social das décadas de 1960-1970. Mesmo a história do governo de Unidade Popular, no Chile de Allende, tantas vezes invocado como exemplo da cooperação possível das diferentes esquerdas, viveu esse drama. (mais…)

      Atualidade, Democracia, Opinião

      Do jornalismo como missão

      Podemos sempre encontrar, num momento recuado das nossas vidas, a projeção de uma profissão a exercer naquele futuro distante ao qual chegaríamos invencíveis e adultos. Dessa fase dos destinos improváveis lembro-me apenas de querer imitar David Crockett, o explorador do Tennessee, insuperável no manejamento do rifle e na caça ao urso. Mas recordo também o desejo de um dia me tornar jornalista. Em parte por causa dos meus heróis da banda desenhada que o eram também, como Luís Euripo ou Tintim. Mas sobretudo devido à influência dos jornais com os quais apreendi a ler: o Diário de Notícias, do qual o meu avô era «agente e correspondente», e O Primeiro de Janeiro, que ele comprava aos domingos e lia de uma ponta à outra totalmente alheado das rotinas da casa. Imerso nas suas páginas sempre renovadas, na aparência infinitas, passei a associar o trabalho daqueles que os faziam a um imaginário de viagem que me atraía e a uma vida que julgava isenta de rotinas. (mais…)

        Atualidade, Jornalismo, Olhares, Opinião

        Não há um «leninismo amável»

        Juan Carlos Monedero

        Juan Carlos Monedero, politólogo da Universidade Complutense e número dois do Podemos, declarou em entrevista publicada recentemente pelo Jornal de Notícias que vivemos tempos «em que precisamos de um leninismo amável». Como parte de um estrito exercício de retórica política este conceito – parcialmente devedor de uma reatualização da «herança de Lenine» projetada à margem da sagrada cartilha do marxismo-leninismo saído dos anos trinta – pode ter algum impacto. Todavia, tanto no domínio da teoria como num plano mais estritamente prático, ele traduz sensivelmente o mesmo que falar de «islamismo ateu». É pois a expressão perfeita do oximoro. Monedero tem-se servido noutros lugares desse conceito, embora lhe dê um sentido amplo: define-o como o recurso transitório a um assumido populismo, e não à intervenção decisiva do partido de vanguarda previsto por Lenine, como forma de mobilizar a maioria dos cidadãos para desinstitucionalizar a ordem política vigente e lançar as bases de uma outra, inteiramente nova, direta, e por isso revolucionária e integralmente substituta. (mais…)

          Ensaio, Olhares, Opinião

          Cuidado com os fósforos

          A veloz ascensão do Podemos, «o partido de Pablo Iglésias», em Espanha, está a ser entusiasticamente acolhida por alguns setores da esquerda portuguesa. Nascido em parte dos movimentos populares, muitos deles de conceção espontânea, de indignação de rua contra a corrupção e as políticas de austeridade impostas pelo Partido Popular, faz todo o sentido que essa simpatia, por vezes sob a forma de fascínio, desponte entre quem por cá trava idêntico combate. Porém, sem se ter uma perceção detalhada dos contornos e das propostas do partido constituído há apenas oito meses, será de evitar assumir desde já uma posição, de apoio ou então de rejeição, que possa ser parcial ou injusta. Diante dos resultados de uma sondagem hoje divulgada pelo El País, na qual, se as eleições fossem agora, o Podemos teria 27,7% dos votos, ficando-se o PSOE pelos 26,2, o PP pelos 20,7, a Izquierda Unida pelos 3,8 e a UPyD pelos 3,4, é de manter uma posição atenta mas cuidadosa. (mais…)

            Apontamentos, Atualidade, Democracia, Opinião

            Duas cidades e uma só

            Fotografia de Daniel Camacho
            Fotografia de Daniel Camacho

            De cada vez que se inicia o ano letivo regressa a polémica sobre as praxes. Acontece de forma mais intensa em Coimbra, dada a relação particular da cidade e da sua universidade com esses ritos. Raramente tem algo de estimulante e construtivo, limitando-se quase sempre a uma rude e estéril troca de palavras. Os campos afastam-se abertamente: de um lado, os que se opõem de todo às suas formas, em particular aquelas que têm ganho corpo nos últimos tempos, considerando-as obsoletas e negativas; do outro, os que as defendem de um modo irredutível como fator de inclusão e característica identitária. Entre os dois polos um terreno vasto, povoado pelos que reconhecem as antigas praxes, sem se aperceberem de como nos últimos anos estas mudaram de qualidade, por uma população em larga medida indiferente ou avessa aos seus momentos, e por um país que as olha como para uma encenação que mistura episódios de tragédia e instantes de comédia. (mais…)

              Apontamentos, Cidades, Coimbra, Opinião

              Depois das primárias

              Tenho bastantes reservas em relação à institucionalização das chamadas primárias partidárias. Defendo a redução da super-máquina burocrática e profissionalizada que tolhe os partidos, concordo que estes devam abrir-se mais à sociedade, saindo do espaço tantas vezes insalubre das sedes e dos corredores do poder, e acredito que, no seu funcionamento, o confronto com a participação informal dos cidadãos possa promover um revigoramento das ideias, das propostas e das práticas. Tenho ainda a certeza de que, para cumprir o seu papel e estar mais próxima das pessoas, a democracia não pode esgotar-se no sistema representativo e na exclusiva intervenção dos partidos políticos. (mais…)

                Atualidade, Democracia, Opinião

                A condessa Violet e o PS «de direita»

                O primeiro episódio da mais recente série, a quinta, da excelente Downton Abbey, decorre em 1924, quando o Reino Unido elegeu o primeiro governo trabalhista chefiado por Ramsay MacDonald. Nessa época ainda ninguém sonhava com o aparecimento de um Tony Blair de «terceira via» e o Labour desfilava muito à esquerda. Por isso, a transformação política que tal implicava trouxe grande perturbação à aristocrática mansão, com enormes discussões que envolviam os Crawley e a gente da classe média que frequentava a casa, o mordomo Mr. Carson (em qualquer circunstância o mais conservador de todos) e a cada vez mais impertinente criadagem. A dada altura, quando o debate se estendeu à mesa de refeição dos donos da casa, a velha condessa Violet (Maggie Smith), uma das personagens mais interessantes da série, tem uma tirada (mais uma) muito engraçada. Ao comentar a suposta inevitabilidade da revolução russa de 1917, evocada como sinal da irreversível mudança do mundo, declara-a incompreensível, pois tinha estado na Rússia em 1874 e não vira «sinal algum de instabilidade».

                Algo de idêntico se passa na cabeça de muitas das pessoas que, em Portugal, empurram o Partido Socialista, qualquer que seja a sua direção ou tendência do momento, para a mesma perspetiva que dele tinham os portugueses que se posicionavam à sua esquerda durante o biénio revolucionário de 1974-1975. Já passaram quarenta anos sobre o período, quase tantos quanto aqueles que haviam separado a Revolução de Outubro da viagem à Rússia da condessa Violet, e continua a circular, junto de um bom número de cidadãos, que a prova provada do caráter irreformável e inapelavelmente «de direita» do PS é o facto deste, principalmente durante o verão de 75, se ter oposto à instalação de um regime revolucionário totalmente avesso à instauração da democracia representativa. A realidade é hoje totalmente outra, os dilemas que se colocam aos cidadãos muito diversos, os bloqueios de uma diferente natureza, mas para alguns setores, enquanto os socialistas não aceitarem fazer a autocrítica e rever a narrativa da sua participação na história recente do país, aceitando pôr de parte alguns dos seus princípios fundadores, continuarão a carregar às costas o fardo do seu pecado original. Com eles não há conversa e ponto. A vida por viver não passa por aí.

                  Apontamentos, Atualidade, Democracia, Opinião

                  O medo que nos tolhe

                  Os medos cuja origem sabemos identificar podem perturbar-nos e geralmente conseguem-no, mas transportam consigo o seu próprio antídoto. Conhecendo as suas causas, identificando o seu rosto, podemos então aprender a resistir-lhes, suavizando o seu embate ou, pelo menos, estabelecendo com eles um pacto de reconhecimento e alguns momentos de tréguas. No final dos anos 70, o historiador Jean Delumeau mostrou como é possível compreender a vida coletiva de um longo período do passado apenas pela observação do modo como aqueles que o habitaram souberam lidar com os seus temores, convivendo com eles mas fazendo por enfrentá-los. A opressão, a fome, a doença, os desastres naturais, a insegurança, a guerra, aterravam os humanos, mas geralmente tinham um rosto reconhecível, anunciavam a sua chegada e sabia-se como atuavam. Por isso podiam ser, se não enfrentados, pelo menos aceites.

                  Os piores medos, porém, não têm rosto. Aparecem associados a esse sentimento difuso, pouco claro, ambíguo e desarmante, que experimentamos sempre que somos confrontados com algo que não sabemos identificar, ver ou prever, reduzindo por isso a margem de manobra diante do perigo que se pressente. É esta espécie de medo que nos acompanha poderosamente por estes dias, quando somos forçados a conviver com uma imprevisibilidade que começa nas palavras e nos atos desencontrados daqueles que agora nos governam e que ousam falar em nosso nome. Como poderemos dormir descansados, como podemos não experimentar o medo, quando os primeiros a ameaçar-nos, a escalar as paredes das nossas casas e a entrar sem aviso são justamente aqueles que foram por nós eleitos para cuidar da nossa existência e gerir a paz das nossas noites? Já não os reconhecemos e por isso os tememos tanto.

                  Crónica publicada no Diário As Beiras

                    Apontamentos, Olhares, Opinião

                    O PS e as suas circunstâncias

                    Fot. Adrian Scholz
                    Fot. Adrian Scholz

                    Duas circunstâncias parecem condicionar o futuro próximo do Partido Socialista. A primeira diz respeito ao significativo número de cidadãos inscritos como militantes ou simpatizantes que estão em condições de votar nas primárias do dia 28 de Setembro. Perto de 250.000, tendo em conta que apenas 90.000 militam no partido, está de facto muito acima daquilo que seria concebível no início do verão. A segunda circunstância refere-se à forma como, independentemente do resultado, da liderança escolhida ou da definição programática que venha a afirmar-se, tem vindo a ficar claro que o PS jamais voltará a ser o mesmo. Está comprometida, talvez irremediavelmente, uma tradição de unidade que sempre foi harmonizando diferentes sensibilidades e expectativas. Bastaria aliás esta situação para que os partidos à esquerda dos socialistas assumissem o dever de ser mais prudentes nas infundadas certezas que parecem ter a propósito do que irá acontecer num futuro próximo. (mais…)

                      Atualidade, Democracia, Opinião

                      Não há mortos de segunda

                      Não é de mais insistir num preceito fundamental: como acontece com a tortura, toda a morte infligida é inaceitável. E não importa se esta é determinada pela ideologia, pela religião ou pelo desejo incontido de cumprir uma vingança. Talvez no teatro de guerra – quando a escolha definitiva é entre matar e morrer – ela possa entender-se, ou mesmo aceitar-se. Mas jamais pode ser olhada como uma inevitabilidade ou como uma necessidade. Por isso é ainda mais incompreensível a atitude hipócrita daqueles que, nos dramáticos conflitos internacionais que estão a marcar este verão, lamentam certas mortes, se indignam com elas, mas tratam de silenciar ou de «compreender» outras não menos terríveis e insustentáveis.

                      Isto tanto pode aplicar-se aos mortos provocados em Gaza pelos bombardeamentos de Israel quanto àqueles que o autoproclamado Estado Islâmico está a acumular no Iraque e na Síria. Trata-se de uma enorme prova de incongruência moral, e até de cobardia, invocar uns e silenciar os restantes. Na realidade, quem o faz pouco valor dá de facto ao sofrimento dos outros, preocupando-se muito mais com as subtilezas da geoestratégia, a linha política partidária ou a «justeza» do lado em que se situa quem morre e quem mata. Aqui a barbárie não está apenas nas mãos de quem degola ou bombardeia, mas também nas de quem justifica os algozes ou aceita o horror, selecionando quem deve ser defendido e quem deve ser entregue às suas circunstâncias e deixado ao abandono. Confio tão pouco nuns quanto nos outros. Mas aos últimos jamais darei o direito de me representarem.

                      Crónica publicada no Diário As Beiras

                        Apontamentos, Atualidade, Opinião

                        A banalização do fascismo

                        Auschwitz. Por Alex Ayann
                        Auschwitz. Por Alex Ayann

                        Quando oiço dizer que vivemos, em Portugal e nesta complicada Europa que nos cabe, «pior que no tempo do fascismo», ocorrem-me três argumentos contra uma afirmação tão imperfeita e perigosa. Em primeiro lugar, ninguém que tenha vivido ou conheça de forma cabal o tempo e a experiência dos fascismos que envenenaram o século passado, fazendo dos Estados aparelhos de coação e não de garantia dos direitos fundamentais, é capaz de proferir em consciência uma afirmação dessa natureza. Em segundo lugar, estabelecer uma comparação que incide de forma particularmente negativa sobre o presente é prova de um claro desconhecimento da História, pois nenhum dos conflitos e formas de opressão pelos quais passamos hoje, sobretudo no mundo industrializado e nas suas contíguas periferias, se compara, em escala e na brutalidade, com aqueles que cruzaram as décadas em que os fascismos se impuseram. Em terceiro lugar, quem o diz vive provavelmente no terreno nebuloso de um wishful thinking feito de enormes simplificações, com recurso às quais pensa agudizar contradições e desta forma prover as «condições objetivas» para impor mudanças julgadas redentoras, necessariamente ilusórias. No fundo, quem de tudo isto beneficia são de facto os novos fascismos, agora mais insidiosos e apurados nos seus métodos, que pelo efeito de banalização que uma tal afirmação provoca vão podendo desbravar caminho. Desta maneira, em vez de se baterem pela defesa dos direitos alcançados em décadas de lutas pela democracia e pelo bem-estar, muitos cidadãos desenvolvem uma consciência política feita essencialmente de ressentimento, que acaba por isolá-los, desmobilizando-os de facto e colocando-os à mercê dos algozes. À noite, nas suas casas, adormecem narcotizados, tentando esquecer um mundo que os atemoriza e não compreendem.

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                          Verão conturbado para o PS

                          Não sou militante, simpatizante ou sequer eleitor do Partido Socialista. Vejo aliás de um modo muito crítico o processo de progressiva desvitalização política que, durante a maior parte do tempo, o tem caracterizado ao longo das últimas décadas. Um processo vinculado ao abandono dos fundamentos mais essenciais da tradição social-democrata de esquerda, hoje já só formalmente inscritos na sua matriz e invocados como uma flor na lapela. Estes têm sido trocados por uma política estritamente pragmática, feita mais de interesses que de causas, mais preocupada com medidas do que com metas, na qual tantas vezes têm pesado sobretudo a influência pessoal, os grupos de pressão e, a estes ligados, os jogos de bastidores. Desta forma, têm sido recorrentemente remetidas para um plano secundário a dinâmica democrática, que foi fundadora do partido, e a força criadora das convicções e dos projetos de inspiração social. Este panorama não pode ser associado a toda a vida e a todos os militantes do PS, seria injusto e impreciso fazê-lo, mas corresponde à tendência predominante. (mais…)

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                            Quem tem razão vs. Quem tem razão

                            O conflito israelo-palestiniano é talvez o tema de política internacional que maiores clivagens cria na opinião pública. Ao ponto de toldar pessoas habitualmente razoáveis ou de incompatibilizar outras que pouco antes partilhavam opiniões próximas sobre numerosos assuntos. E isto acontece há décadas. Pelo menos desde as rápidas mas brutais guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), quando os mais duros dos duros militares israelitas, comandados no terreno por homens como Moshe Dayan ou Ariel Sharon, tomaram conta de Israel, ampliando a ocupação sionista do território da Palestina e deitando por terra qualquer possibilidade de um entendimento com a antiga OLP. A sua atitude de impiedade e conquista favoreceu, ao mesmo tempo, o crescimento de setores palestinianos radicalizados que excluíam qualquer acordo, presente ou futuro, com Tel Aviv. A partir dessa altura, a paz transformou-se numa miragem. E o sofrimento, sobretudo o dos mais fracos e desprotegidos, não mais parou, regressando periodicamente aos paroxismos de violência e assassinato em massa como aqueles a que estamos a assistir. (mais…)

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                              Problemas à esquerda (2)

                              A primeira parte deste artigo pode ser encontrada aqui.

                              A crise do Bloco de Esquerda existe. Mas é bastante mais saudável dá-la como certa e funda, olhá-la de frente, do que fugir a debatê-la publicamente, fazendo de conta que é irrelevante e momentânea, resultado fortuito de desfigurações impostas pelos seus adversários políticos naturais ou de erradas escolhas pessoais nascidas no seu interior. Na verdade, a origem desta bem visível crise é complexa e prende-se com circunstâncias tão diferentes como a continuada ambivalência do projeto inicial do Bloco, uma prolongada indefinição programática e uma notória dificuldade de adaptação a alguns dos desafios impostos pelas transformações políticas e sociais despoletadas pela crise financeira de 2010. O pior que os seus dirigentes podem fazer – a si próprios e aos cidadãos que nele têm depositado uma parte das suas esperanças – é negar esta situação diante dos microfones, ensaiando uma fuga para a frente e apontando o dedo em riste a quem diverge. (mais…)

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                                Problemas à esquerda (1)

                                Naquele inverno de 1999-2000 participei em algumas das primeiras iniciativas do Bloco de Esquerda. Numa delas tive uma experiência singular: um almoço, entre duas sessões de trabalho, partilhado por largas dezenas de pessoas, ativistas de diversas origens, muitos deles a viver ali reencontros tantas vezes adiados, que durante a refeição se esforçaram visivelmente, algumas com aparente êxito, outras de maneira desajeitada, por contornar tudo aquilo que pudesse recordar as antigas desavenças e as clivagens um dia consideradas insanáveis. Sensivelmente as mesmas, vindas ainda das querelas dos anos 60 e 70, que durante décadas haviam azedado relações pessoais e políticas, fixando-se nas posições irredutíveis, presas a princípios e idiossincrasias mas quase sempre com zero em sentido prático, que tinham condenado a «esquerda da esquerda» à irrelevância. Agora, no entanto, tudo era possível: o luto da revolução falhada parecia feito e aquele tempo configurava-se como de viragem e superação, voltado para a criação de uma experiência realmente nova. (mais…)

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                                  Porque é que a cultura não é notícia?

                                  ipsilon

                                  Participei esta semana num debate organizado em Coimbra pela Escola da Noite e subordinado ao mote «Porque é que a cultura não é notícia?». Nele foi apresentado por Carla Baptista e Maria João Centeno, do Centro de Investigação Media e Jornalismo, um recente estudo no qual se procurou, a partir da observação das primeiras páginas de jornais portugueses publicados entre 2000 e 2010, fazer o diagnóstico da cobertura jornalística dos temas culturais. Este trabalho, «A Cultura na Primeira Página» (culturaprimeirapagina.fcsh.unl.pt) não responde diretamente à pergunta que motivou a sessão, mas ajuda bastante a perceber de uma forma sustentada algumas das razões que nos obrigam a colocá-la. E também a verificar que o modo como determinadas abordagens continuam a ser destacadas, como outras são remetidas para páginas secundárias e outras ainda pura e simplesmente desaparecem dos jornais, obriga a questionar a forma como neles o próprio conceito de cultura é entendido. (mais…)

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                                    Resistir não basta

                                    Um dos dramas deste tempo difícil e perturbante que estamos a viver reside na aparente incapacidade para vislumbrar uma saída. Diante da política de terra queimada imposta pelo governo, da sonegação dos direitos sociais que foram uma conquista de décadas de esforços partilhados, da diminuição brutal da qualidade de vida da generalidade das pessoas, da subversão do modelo de desenvolvimento que, apesar de imperfeito, nos levou a superar a condição aparentemente atávica de parente pobre e periférico de uma Europa outrora distante e sobranceira, quase parece impossível erguer uma alternativa. A tristeza, a incerteza e a descrença tomaram conta das nossas vidas, das nossas ruas, tornando-nos sonâmbulos sem autoestima, esperança ou uma ideia razoável de futuro. (mais…)

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