Arquivo de Categorias: Opinião

Tocar a reunir

Esquerda e direita não são categorias ultrapassadas, como se proclamava anunciando o fim das ideologias. Também não correspondem apenas à clivagem entre quem defende a importância do social, do coletivo e do papel nuclear do Estado, e quem destaca o lugar do individual, da hierarquia e da iniciativa privada. Na realidade, alguns destes fatores são hoje partilhados por ambos os lados,  enquanto outros, que há cem anos pareciam separá-los para sempre, certas vezes os aproximam. No primeiro caso encontra-se a valorização formal da democracia, que até partidos da direita mais extrema declaram agora respeitar. No segundo, a tentação do centralismo e do autoritarismo, outrora património da direita, que em nome do «socialismo de Estado» alguma esquerda incorporou e preserva como modelo. (mais…)

    Atualidade, Democracia, Opinião

    O ano de todas as esperanças

    Este é o ano do 40º aniversário do 25 de Abril. Para muitos portugueses, a data relaciona-se com a sua experiência de vida. Se já não eram crianças na época que o antecedeu, se não perderam de todo a memória ou se não estavam comprometidos com o regime derrubado, para eles a data incorpora uma corrente forte de recordações. Para os restantes, aqueles que atingiram a idade da razão já depois da data fundadora da democracia, aquilo que os aproxima dela é principalmente a memória transmitida pelos mais velhos e a dimensão simbólica que ela foi incorporando. (mais…)

      Atualidade, História, Opinião

      Nos 120 anos de Mao

      Mao

      A 26 de novembro completaram-se 120 anos sobre o nascimento de Mao Tsé-Tung. A data foi lembrada em muitos lugares e em diferentes suportes, sobretudo em blogues e murais do Facebook, ou nas primeiras páginas das edições online de respeitáveis diários, mas só lhe atribuiu um destaque maior que o habitualmente concedido a uma vulgar efeméride – como a data da morte de um político ou o dia exato de uma descoberta científica – quem ainda seja capaz de reconhecer alguma coisa de positivo na intervenção pública e no legado histórico do antigo dirigente comunista chinês. (mais…)

        Atualidade, Biografias, História, Opinião

        Um Natal pesado

        O Natal fez sempre parte dos meus calendários. Embora, como acontece com a maioria das famílias portuguesas, a minha não levasse as datas e as práticas do seu catolicismo muito a peito. Talvez por isso a dimensão de sagrado da quadra sempre me tenha sido em boa medida estranha. Nunca assisti a uma «Missa do Galo» e durante anos mantive a convicção que nela se degolava, de facto, um pobre e indefeso galináceo. O meu Natal era feito só de doces muito doces, da ceia noturna, do horror de comer bacalhau (as voltas que a vida dá: agora um prazer), e principalmente dos presentes mais ou menos acompanhados de uns quantos desapontamentos. (mais…)

          Atualidade, Devaneios, Olhares, Opinião

          Coimbra como destino

          Fotografia de Daniel Palos

          Um despacho da Lusa, veiculado por diversos jornais, divulgava há dias o impasse em que se encontra Coimbra como destino turístico. Apoiados num trabalho de investigação e em diversos testemunhos, os dados revelados não são muito animadores. No essencial, reconhecia-se um razoável aumento do número de visitantes, mas sublinhava-se também o facto de as visitas serem em regra de curtíssima duração, transformando a cidade num apeadeiro e não num destino. A situação traduz, como era de prever e se queixaram alguns dos entrevistados, uma escassa rentabilização do movimento de não-residentes, com um baixo número de dormidas, um impacto residual no comércio local e uma reduzida influência na atividade dos organismos vocacionados para a cultura e o lazer. (mais…)

            Cidades, Coimbra, Opinião

            O pântano e a dignidade

            Fotografia de Nira González

            Era prática corrente da propaganda do antigo regime a exibição contínua e manifestamente exagerada das pequenas vitórias caseiras. Estas deveriam provar, dentro e para fora das fronteiras, que se éramos pobres e «felizmente atrasados», como Salazar chegou certa vez a descrever-nos, expondo sem artifícios a sua conceção rural e imóvel do mundo, tal não nos impediria de ser melhores que os outros em modestas mas honradas áreas de atividade. Mas por aí deveria ficar o limite da nossa ambição. (mais…)

              Atualidade, Olhares, Opinião

              A desgraça pública e a política de alianças

              O pior dos tempos terríveis que estamos a atravessar é a ausência de esperança. Seria bem menos doloroso passar por tudo isto se pudéssemos pensar que se tratava somente de uma circunstância infeliz, de um transe, de uma passagem necessária, ainda que demorada, para uma situação melhor ou menos incerta. E ainda pesaria menos se pudéssemos vislumbrar uma alternativa política, uma viragem, em condições de devolver, se não todos os direitos perdidos e o quinhão de futuro que conquistámos e nos foi roubado, pelo menos uma gestão profundamente diferente e menos dolosa da coisa pública. Associada a uma política mais solidária e mais justa, menos cínica e insensível, que restituísse a tranquilidade e a segurança que nos fogem a cada manhã que passa. O drama, grande drama, é pois a ausência de uma possibilidade real de pôr termo ao estado comatoso em que a direita neoliberal pôs o país, as nossas vidas e o futuro coletivo. É ela que afasta a esperança e alimenta o desespero. E é ela também que propaga uma perigosa indiferença. (mais…)

                Atualidade, Democracia, Opinião

                O camarada Álvaro

                Álvaro Cunhal

                Álvaro Cunhal completaria hoje 100 anos. Nos últimos meses têm-se multiplicado as iniciativas destinadas a celebrar a data, evocando a vida, a intervenção e o legado daquela que foi uma das figuras centrais do século XX português. E que foi também uma das vozes mais respeitadas dentro dos setores, hegemónicos no território da esquerda e no interior do movimento comunista internacional, que pautaram a sua ação pelo «exemplo de Lenine» e pelo modelo de construção do socialismo levado a cabo a partir de 1917 na antiga União Soviética. Tais iniciativas têm assumido diferentes formas: desde uma reedição anotada dos seus escritos a livros de pendor mais ou menos biográfico, passando por estudos sobre as muitas vertentes da sua intervenção pública, dossiês nos jornais, colóquios, debates, exposições, álbuns fotográficos, filmes ou programas de televisão. (mais…)

                  Biografias, Democracia, Olhares, Opinião

                  No reino da apatia

                  Até ao início dos anos oitenta, principalmente na Europa e nas Américas, dois setores sociais mostravam-se particularmente sensíveis aos processos de crítica e de reforma da ordem do mundo, neles jogando um papel muitas vezes decisivo enquanto forças dinâmicas dos tempos de mudança. Pela natureza da sua formação e da sua associação ao mundo do conhecimento, da dimensão essencialmente reflexiva da sua atividade, da sua natural abertura ao mundo e das suas expectativas históricas, os intelectuais – pensadores, artistas, escritores, jornalistas – e os estudantes mostravam-se mais naturalmente dispostos a intervir como fator nuclear, estímulo ou apoio no domínio da reflexão crítica, do conhecimento e da atividade cívica. (mais…)

                    Apontamentos, Atualidade, Opinião

                    Mobilização e inércia

                    Fotografia de Cralos
                    Fotografia de Cralos

                    Nasci e vivi até aos dezasseis numa vila do interior beirão. Na época, não existiam por aqueles lados, como não existia em praticamente lado algum, estradas decentes e rápidas. Uma reta de cem metros era tão rara que parecia uma pista de ensaios para fanáticos da velocidade. Notavam-se mais ainda esses limites quando se vivia numa região de montanha que transformava qualquer jornada numa pequena aventura. O trajeto que leva hoje 45 minutos a fazer durava então o dobro, por vezes mais. Além disso, poucos possuíam automóvel e ninguém sem profissão estável e razoavelmente remunerada tinha sequer carta de condução. O isolamento era aí, sobretudo aí, a condição natural da existência, agravado pelo facto da informação que chegava ser parca, lenta e filtrada pela censura. Era o país possível, no qual tudo decorria modelado por aquele «viver habitualmente», sem o calor da novidade ou do desassossego, que à imagem do rústico temeroso das cidades Salazar quisera para todos. (mais…)

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      Escutas

                      Não se percebe qual o espanto por os serviços secretos americanos terem escutado conversas telefónicas mantidas por diversos líderes europeus. Como o terão feito com dignitários asiáticos, dirigentes africanos ou governantes sul-americanos. Pelo menos. Tal como as autoridades inglesas, francesas, alemãs, israelitas, iranianas, russas ou chinesas espiam e escutam toda a gente que conta para as suas contas. E mais alguma por atacado, para o que der e vier. Isto faz-se, com o devido distanciamento tecnológico, pelo menos desde o aparecimento dos Estados. Aliás, só mesmo se fossem completamente incompetentes é que o não fariam. Os trejeitos de contrariedade de Frau Merkl são mero teatro e a indignação hiperfocada em Obama não cola aqui.

                        Apontamentos, Atualidade, Opinião

                        As eleições e os independentes

                        Os meses que antecederam as eleições autárquicas decorreram como se de repente tivéssemos mudado de país. A intervenção errática e hostil do governo sobre a nossa vida e as nossas esperanças afrouxou significativamente, deixando que nos concentrássemos no território de proximidade administrado pelo poder local. Nem tudo, porém, correu pelo melhor. Apesar de existirem naturalmente diferenças, algumas significativas, entre as listas concorrentes, os seus programas, os processos de aliança que incorporaram ou a qualidade e o perfil dos candidatos, o seu padrão foi demasiadas vezes nivelado por baixo. No Facebook, uma página de «tesourinhos deprimentes das autárquicas», rapidamente popularizada, revelava em tom bastante jocoso um panorama tão extravagante quanto catastrófico. (mais…)

                          Atualidade, Coimbra, Democracia, Opinião

                          Desbloquear o Bloco

                          Os resultados do Bloco de Esquerda nas eleições autárquicas têm suscitado algumas leituras críticas aceitáveis, mas também, e sobretudo, um vendaval de observações infundadas e de vaticínios de um desaparecimento à vista. A verdade é que a maioria dos analistas políticos mais lidos e comentados tem manifestado a propósito do tema uma inesperada cegueira, olhando aquilo que é certo e seguro – os números, quase todos eles realmente maus – mas não o que se coloca, como cenário, muito para além das circunstâncias imediatas. A morte anunciada do Bloco é pois, sob esta perspetiva, claramente exagerada. E se por hipótese ela pudesse vir a ocorrer, traria consigo, com toda a certeza, consequências muito negativas para a vida democrática, para o nosso futuro comum e até para as expetativas de muitos dos que vêm agora no BE um pássaro de asas cortadas. (mais…)

                            Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                            Os ganhos e as perdas

                            É sempre difícil fazer uma apreciação dos resultados das eleições autárquicas fundada apenas em operações simples feitas com a máquina de calcular. A dificuldade é imposta pela intervenção de fatores pessoais (como as capacidades ou o prestígio público de determinados candidatos), circunstâncias locais (entre eles as redes clientelares ou a existência de problemas regionais muito concretos) e particularidades orgânicas (sobretudo no que diz respeito à apresentação de coligações eleitorais e, agora, também ao crescente papel das listas de independentes). Por isso, nada como tentar transformar o complexo em simples e olhar as eleições não na mera perspetiva dos números, mas sob um ângulo mais amplo, capaz de permitir a observação de algumas das suas dinâmicas. (mais…)

                              Atualidade, Democracia, Opinião

                              Ainda as praxes

                              praxis

                              1. Voltou a reacender-se o interminável debate público sobre as «praxes académicas». Trata-se de uma discussão quase sempre bastante crispada, opondo os que nelas vêm uma forma de viver a academia e, presumem, de salvaguardar as suas tradições, aos que as recusam liminarmente como inúteis, obtusas e detestáveis. Deste debate autoexcluem-se infelizmente os atuais estudantes «praxistas», que a põem em prática de forma automática, quase sem qualquer preocupação crítica com as suas origens, formas, significados e consequências. Deixo claro que não sou neutro neste debate, pois rejeitei-as há muito, antes até de ser estudante universitário, não tendo mudado de opinião. Não o faço, porém, a partir de uma atitude cega e intransigente. (mais…)

                                Atualidade, Coimbra, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

                                Vou ali e já volto

                                O Tribunal Constitucional fez aquilo que tinha de fazer para ser coerente com os seus objetivos e processos de funcionamento: votou com base numa interpretação razoável dos termos da chamada lei da limitação de mandatos. Por isso, dado ser esta claramente insuficiente e ambígua, o ónus da culpa lançada sobre aquilo que de mau ela irá ajudar a conservar no funcionamento do poder autárquico pesará diretamente sobre as costas do legislador. E também sobre os partidos (no caso, PSD e PCP) que tudo fizeram para que vingasse a interpretação que vingou. O PCP chegou mesmo a comentar, já depois da votação do TC, que «ganhou a democracia», escudando-se na defesa dos direitos democráticos dos candidatos crónicos como se falássemos apenas de santos servidores da coisa pública e não de eventuais, ou por vezes certos e seguros, pecadores. (mais…)

                                  Apontamentos, Democracia, Opinião

                                  Outdoors e política autárquica

                                  À medida que nos aproximamos das eleições autárquicas, áreas nucleares da paisagem urbana de cidades e vilas – as suas praças e rotundas, as principais vias de acesso, os espaços de utilização comunitária – estão a ser ocupados por gigantescos cartazes de propaganda das candidaturas. Herdeiro do antigo design construtivista russo e da escola da Bauhaus, o cartaz sobreviveu à manipulação pelos regimes totalitários e ao surgimento das novas técnicas de comunicação oferecidas pela televisão e pela Internet, sendo profusamente utilizado pelas democracias. É fácil perceber porquê: sob a forma de outdoor é um instrumento de acesso fácil, impõe-se por si mesmo e não precisa ser descodificado, integrando slogans de captação rápida, otimizados para ficar na memória de quem os observa num piscar de olhos ou em movimento. (mais…)

                                    Apontamentos, Atualidade, Opinião

                                    Gente perigosa

                                    Resulta sempre difícil defender a liberdade da crítica e lamentar ao mesmo tempo o uso que dela é feito em determinados espaços de comunicação. Mas existe uma diferença muito grande entre aceitar as opiniões dos outros, por mais avessas que elas possam ser às nossas próprias convicções, uma diferença entre defender o direito à expressão de quaisquer pontos de vista, e admitir que tal seja feito recorrendo a meios de comunicação que, pelo seu prestígio e alcance, legitimam a incoerência dos argumentos e mascaram a falsidade ou a desonestidade das afirmações. (mais…)

                                      Apontamentos, Atualidade, Opinião