Arquivo de Categorias: Opinião

O poder das palavras

Nas últimas linhas de um dos derradeiros textos que ditou para a New York Review of Books, quando as palavras ainda lhe corriam fluídas pelo cérebro enquanto sentia já dificuldade em pronunciá-las com a clareza que sempre procurou, Tony Judt reflectia sobre os problemas da comunicação contemporânea: «Se as palavras se deterioram, o que poderá substituí-las? Elas são tudo aquilo que nos resta.» Não se referia, porém, ao seu problema pessoal, ao fim à vista da sua capacidade para comunicar, que sabia irrevogável: no artigo «Words» falava principalmente da preocupação com o recuo do antigo modelo de educação humanista, que tanto tem vindo a ser desacreditado pelos arrogantes campeões do «saber técnico». Falava da perda de voz dos que usam a língua, central nesse modelo que formou o seu e o nosso mundo, para conhecer sem coacções, para ocupar os espaços públicos do debate, para transformar a controvérsia num factor de dignidade e de liberdade. Falava da perda do lugar central da «fala pela fala», como processo de aproximação e de verdadeiro conhecimento. Dessa perda que, neste tempo que promove o triunfo do prático, do lógico, do eficaz, do «útil», muitos de nós sentimos, todos os dias, com dor e com preocupação. Dessa perda que Tony Judt observava mesmo em lugares, como as universidades, originalmente concebidas justamente para impedi-la de ocorrer: «A “profissionalização” do discurso académico – e a deliberada apreensão por parte dos humanistas da segurança da “teoria” e da “metodologia” – favorece o obscurantismo.» Judt via nas palavras, no uso e no abuso das palavras, na sua troca sem compromissos, o espaço ideal de resistência perante a incompreensão e o individualismo impostos pela falta de vozes críticas ou pelo ruído daquelas que tanto falam e nada dizem.

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    Mitos do senso comum

    Um dos resultados da crise financeira iniciada em 2008 foi a propagação de um conjunto de fábulas que, sob a forma de inquestionáveis «verdades», aparentemente tendem a determinar a inevitabilidade do «modelo neoliberal», apesar do seu estado comatoso. Dito de outra forma: a gravidade dos problemas surgidos em catadupa provocou em boa parte da opinião pública, não a rejeição mais ou menos radical deste modelo, mas antes a afirmação, aparentemente consensual, do princípio segundo o qual tudo o que aconteceu de mau se ficou a dever a décadas de políticas que ampliaram o papel do Estado social, restringiram a liberdade dos mercados e impediram a hegemonia da iniciativa privada. É com este pano de fundo, e com uma intenção assumidamente militante determinada pela necessidade de dissolver tais fábulas e de desconstruir falsos consensos, que um sociólogo, um historiador e um geógrafo compilaram testemunhos de especialistas capazes de os contestarem de forma documentada, consistente e ao mesmo tempo pedagógica. Na introdução, declaram a necessidade de se oporem a essa «fabricação do consentimento» que tem nas ideias do senso comum uma das mais poderosas forças motrizes. «Repetidas pelo discurso político, reproduzidas nas conversas de autocarro, reforçadas pelas histórias de alguma comunicação social», estas ideias são, na sua opinião, «essenciais no jogo de representações» que tem transformado o evitável em inevitável e tendido a qualificar como luxos um conjunto de direitos sociais e de fatores de qualidade de vida conquistados ao longo de décadas. (mais…)

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      Como viver sem otimismo?

      O pessimista. Img. de Elif Sanem Karakoç
      O pessimista. Fot. Elif Sanem Karakoç

      Em 1949 a terra ainda estava empapada de sangue e cheirava a pólvora. As recordações dos que haviam sobrevivido à Guerra continuavam, como continuariam por muitos anos, a preencher-lhes as insónias sacudidas pelo eco das bombas e das botas militares. Alguns chegaram mesmo a dizer que já não eram capazes de se adaptarem ao sossego da paz. Quando, nesse ano, Adorno falou da impossibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz – podia ter falado de compor uma sinfonia, de pintar um quadro, de realizar um filme, de olhar o futuro na plenitude da esperança – referia-se ao desespero que nos assola e derruba depois de olharmos o horror mais indizível. O filósofo poderia ter perguntado ainda se seria possível comer, rir, trabalhar ou amar, conjeturando sobre se algum desses gestos valeria a pena. Deixando no ar que não, que não valeria, e empurrando-nos para o fundo mais fundo do desalento. (mais…)

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        O PS na grande encruzilhada

        Faço parte daquela parcela de portugueses, cujo tamanho desconheço mas que não será com toda a certeza pequena, que sem confiarem no Partido Socialista, ou mesmo sem jamais nele terem votado, o consideram, para o bem e para o mal, como peça basilar do regime democrático. Como este grupo a que pertenço é bastante heterogéneo, torna-se difícil caracterizar tal atitude de uma forma global, mas sou capaz de falar por mim. Na sua forma original, o PS é, a meu ver, o principal herdeiro local da velha tradição europeia social-democrata, reformista e anti-autoritária, aliando, pelo menos na teoria, uma preocupação com os direitos políticos dos cidadãos, com a proteção partilhada do seu bem-estar, com a salvaguarda da democracia representativa e com um ideal de mudança obtido de forma gradual e moderada. Essa é, ou foi, a sua matriz. Porém, o Partido Socialista não é apenas isso. (mais…)

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          O caladinho do Citroën

          Estão por todo o lado, embora se encontrem sobretudo em profissões mais afastadas do escrutínio público. São gente desprezível que jamais fala com clareza e olha os outros de frente, que pode passar décadas sem abrir a boca, sem nunca pôr a debate os seus pontos de vista, até ao dia em que tem a absoluta certeza de estar na mó de cima e de, enfim, poder ditar o que deseja sem a maçada do contraditório. São os caladinhos, os calculistas, os carreiristas, que lançam o veneno sem que se lhes ouça o corpo a rastejar por entre os arbustos, até poderem, já em cima da presa, engoli-la sem dificuldade. Gente na qual nunca se pode confiar, mas que, justamente por causa da sua falta de coragem e de verticalidade, nunca se comprometendo, fazendo-se sempre passar por cordata e consensual, acaba por se aproveitar do desgaste dos outros. Daqueles que suaram anos a fio, tomaram posições difíceis, mas que por cansaço ou desistência, deixaram vazios os lugares que alguém teria de ocupar. (mais…)

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            Convicções

            Por uma destas tardes, enquanto fazia algumas arrumações domésticas, revi um episódio contado por João Bénard da Costa num recorte do antigo diário Independente. O semanário, acessível nos arquivos, que nos lembra os longínquos dias em que pairava sobre o Portugal pós-revolucionário a ideia de que era possível ver uma direita jovem, culta e inteligente a nascer do nada. Contava-se nesse recorte que na noite de 17 de Maio de 1945, quando no cinema Politeama o filme Casablanca estreou em Portugal, no momento em que no ecrã A Marselhesa abafou Die Wacht am Rhein, o cântico alemão saído da Guerra Franco-Prussiana utilizado pelos nazis, o público lisboeta se pôs de pé, cantando também, em uníssono e alta voz, a canção que em 1796 se tornou o hino da França revolucionária e republicana. (mais…)

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              Não aprender

              «Eu sei que vocês vão primeiro, mas depois vamos nós.» Estas palavras de António José Seguro, pronunciadas ontem na convenção autárquica do PS, podem ser palavras de circunstância, um modo de incutir ânimo e confiança nos militantes, mas contêm também um sinal negativo. Tanto para quem as receba com fervor, como para quem as leia criticamente do lado de fora do partido. Elas traduzem uma estratégia de pura assunção do poder (vós ides, nós vamos, para «lá») pouco conforme com uma lógica abrangente, unitária e de revisão das caducas estratégias partidárias de assalto aos lugares da administração pública, que uma larga maioria dos portugueses exige. Um líder partidário de dimensão nacional deve congregar esforços e apontar metas ao seu próprio partido, evidentemente, mas não pode esgotar nele, nem mesmo aparentar fazê-lo, uma lógica de solução para o destino democrático partilhado por todos. Particularmente numa altura destas, na qual a fronteira que separa o país do abismo, e o Estado dos cidadãos, é ténue e perceptível.

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                Ser solidário

                O sociólogo Émile Durkheim falava da solidariedade como um elo moral capaz de unir os indivíduos do mesmo grupo e de funcionar como fator de coesão. Sem ela, as sociedades dissolver-se-iam e os humanos voltariam a viver em bandos, centrados na sobrevivência e numa interminável guerra de todos contra todos. Porém, ela não traduz apenas uma ética de governação que impõe a proteção dos mais fracos: integra um sentido mais completo, capaz de incluir um sentimento de proximidade, entreajuda e comunhão. Diariamente alimentado, este sentimento assegura aos diversos grupos uma lógica de autoproteção que os defende do exterior e lhes confere autonomia e protagonismo. Sob os regimes autoritários, esse dever de solidariedade foi frequentes vezes subvertido, trocado por uma escravizante diluição do indivíduo no todo. Por isso as democracias, que se desejam emancipatórias, o valorizam tanto. (mais…)

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                  Um feriado mal passado

                  No princípio o 10 de Junho metia-me medo. A partir dos treze ou catorze passei a odiá-lo. Apesar da atitude ter mudado, o motivo era o mesmo: a experiência traumática de ver na televisão de canal único, a preto e branco, a cerimónia integral com a «veneranda figura do Chefe de Estado», de alva farda marítima, ou com os ministros do governo, invariavelmente de escuro cinza, a aporem medalhas de bronze – as de ouro e prata estavam reservadas para os mais dignos – em homens e mulheres trajados de negro, recém-chegados nos seus fatos domingueiros de aldeias recônditas ou de bairros degradados. Lá estavam eles nervosos e chorosos no Terreiro do Paço, com «as tropas dispostas em parada», a receber, ano após ano, em complemento de um cumprimento rápido e ritual, o pequeno símbolo metálico com o qual a Pátria, supostamente reconhecida, premiava os seus filhos mortos, os seus maridos desaparecidos, os seus irmãos que haviam perdido a razão, a alma ou os tímpanos numa guerra sem saída. Mesmo após a instauração da democracia, aqueles que haviam crescido a observar esse rito anual jamais esqueceram as manhãs de verão durante as quais, a cada ano, se transformava aquele feriado num funeral da pátria. (mais…)

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                    A luta comum

                    Não configurando a salvação da pátria, a notícia da reunião bem-sucedida entre as direções da CGTP e da UGT, realizada a pedido desta última, é uma boa notícia. O resultado divulgado aponta para «uma grande convergência» de pontos de vista e para «90% de acordo» no que diz respeito a formas de luta comuns a adotar perante as políticas antissociais e de capitulação nacional do atual governo. Independentemente da herança do passado – da sobrançaria de uns, tantas vezes apostados em hegemonizar o movimento sindical; da tibieza de outros, em muitos momentos mais empenhados em assinar acordos «responsáveis» do que na defesa intransigente dos trabalhadores – é muito importante, neste momento dramático para a vida do país e da larga maioria dos que o habitam, que se una aquilo que houver para unir, mais com os olhos nos objetivos partilhados que na contagem calculista das espingardas. (mais…)

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                      Explicação das ideologias

                      Contrariando o anúncio precoce do «fim das ideologias», feito por Daniel Bell em 1962 e certificado nos anos oitenta como componente essencial do «fim da História», têm sido reconhecidos ao longo da última década os problemas que levantou o seu suposto desaparecimento, procurando-se vias do reencontro com a sua definição enquanto modos de interpretar e de partilhar coletivamente os sentidos, ou «o sentido», do mundo em movimento. Pois afinal, como assinala João Cardoso Rosas na introdução a este Ideologias Políticas Contemporâneas, sem elas «não existe ação política». Aliás, recusá-las «em nome do pragmatismo e da tecnocracia» não é senão «uma forma de ideologia não assumida». Partindo deste pressuposto, os organizadores deste livro passaram por cima do gasto debate sobre as características neutras ou pejorativas dessa categoria, ou da sua relação com a utopia, centrando-se antes na sua presença na arena política contemporânea. Não o fazem, todavia, com base na mera dicotomia esquerda-direita: não a negando, passam de raspão pelas chamadas ideologias transversais (o nacionalismo e o ecologismo, entre outras) centrando-se na abordagem de cinco famílias políticas que consideram suficientemente autónomas e coerentes para justificarem o realce: a esquerda radical, o comunismo, o socialismo democrático, o liberalismo e o conservadorismo. (mais…)

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                        O PS, a esquerda e a manhã de nevoeiro

                        Imagem de Boris Voglar
                        Imagem de Boris Voglar

                        Uma das esperanças mais frustradas da história da democracia no Portugal saído do 25 de Abril tem a ver com a possibilidade dos partidos, movimentos e setores à esquerda do Partido Socialista encontrarem neste um parceiro certo para uma alternativa capaz de superar a mera gestão institucional do capitalismo. As responsabilidades para a inexistência de um entendimento pertencem a ambas as partes: enquanto do lado dos socialistas o genoma de esquerda foi sendo maculado, gradualmente substituído por uma corrente administrativista, aparelhista e de certa forma «apolítica», associada na década de 1990 aos tiques e vertigens da Terceira Via blairiana, as forças à sua esquerda jamais deixaram de ver nos socialistas os fiéis e irrecuperáveis seguidores da traição revisionista de Bernstein, «serventuários da burguesia» de pendor social-democrata e reformista. Quanto muito, reconhecia-se a existência de uma «esquerda do PS», aplicando-se tal designação àqueles que, de facto, como uma espécie de arrependidos, se encontravam mais próximos de quem os classificava assim que do partido ao qual pertenciam. Tais atitudes foram bloqueando continuadamente a construção de um projeto de unidade governativa à esquerda. (mais…)

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                          Neste 25 de Abril

                          25 de Abril

                          O processo de transfiguração do país que o 25 de Abril de 1974 abriu foi descrito como «Revolução dos Três D» (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver). Este é o fundamento comum dos projetos políticos com os quais nos confrontámos por mais de três décadas e meia. A expressão pode parecer hoje algo redutora por não englobar as enormes mudanças que estavam para ocorrer no campo da vida privada, das relações de trabalho e das práticas culturais, mas não deixa de verbalizar princípios programáticos e uma linha de rumo que cruzaram os anos e os diferentes governos. Democratizar supunha assim abrir a gestão da coisa pública e do coletivo à voz e à vontade livremente expressa dos cidadãos, o que até ali era impossível. Descolonizar significava alijar o fardo da ideia de império e do domínio dos povos colonizados, o que até ali era impraticável. Desenvolver impunha encontrar e expandir novos ritmos para a criação de riqueza e o bem-estar das populações, o que não constava das perspetivas do velho «país habitual», idealizado por Salazar como quieto, naturalmente desigual e indiferente às tentações da vida moderna. (mais…)

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                            Antes dos tambores

                            Uma das consequências mais dramáticas da atual crise monetária é o reforço da clivagem, mais circunstancial que histórica, mais artificial que natural, entre os países do norte e os do sul da Europa, simplisticamente traduzida no afastamento daqueles que podem emprestar dos outros que apenas devem sem poder pagar. Esta separação é estimulada por dirigentes políticos e fazedores de opinião dos países do Norte, associados em regra à direita, e confirmada por outros do Sul, subservientes em relação aos primeiros, como acontece com a dupla Passos/Gaspar e a sua legião de humanas caixas de ressonância. Ou então pelos que, do lado da esquerda, lhes contrapõem a miragem de um rápido retorno aos bons tempos do Estado-Providência. O pior desta situação é que estas posições têm forte eco nas respetivas sociedades, gerando um estado de animosidade popular que instala uma perigosa incompreensão e demarca de forma violenta as duas partes do continente. (mais…)

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                              A abolição do humanismo

                              Distopia, por Strelok86
                              Distopia

                              Numa reportagem publicada há dias pelo diário i sobre as consequências sociais da crise e da austeridade, alguém declarava ao jornalista: «O humanismo desapareceu e o que eu vi na Grécia foi mesmo isso, uma catástrofe social em que o humanismo desapareceu.» Por humanismo entende-se aqui, parece claro, não a corrente cultural antropocentrista mas uma valorização da solidariedade que reconhece no semelhante um ser humano idêntico a nós, diante do qual temos obrigações de respeito e proteção tal como ele as tem para connosco. E é esta solidariedade, essência, instrumento e objetivo do humanismo, que falha no justo momento em que mais dela necessitarmos, quando o empobrecimento e a perda de direitos exigiriam um esforço de entreajuda e uma luta comum ainda mais intensa. Mas os culpados da crise e os seus atuais gestores sabem bem como seria perigosa tal política de aproximação, tal lógica de combativa partilha: ela iria transformar-se num inoportuno fator de resistência às políticas que procuram impor. Como essa resistência as tornaria inexequíveis, tudo fazem para alimentar os antagonismos que fazem renascer o «homem lobo do homem», assim justificando, como teorizou o filósofo Thomas Hobbes há perto de 350 anos, a intervenção desse Estado-Leviatã, mais juiz e polícia que equilibrador e paternal. (mais…)

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                                Solitários e solidários

                                O filósofo basco Fernando Savater (n. 1947), prémio Sakharov em 2000, descobriu Camus no início da adolescência. Conta neste depoimento de que forma, desde o combate contra a ditadura franquista à oposição aos atentados da ETA, o pensamento do autor de A Peste jamais deixou de o acompanhar e de o guiar nas suas escolhas políticas e até pessoais, sempre revelado como uma lição de coragem e de lucidez.
                                Publicado em «Albert Camus. La Pensée Révoltée», no. especial da Philosophie Magazine, Abril-Maio de 2013. Testemunho recolhido por Sven Ortoli. Trad. ATN.

                                Comecei a ler Camus pelos 14 anos. Vivia em Espanha – bem dentro dos anos da ditadura franquista – quando li nos jornais a notícia do seu desaparecimento. Essa morte repentina perturbou-me. Ao reconhecê-lo como grande escritor, de uma vida fulminante, tomou-me logo uma vontade de o ler. Tirando O Estado de Sítio e os artigos sobre a guerra civil espanhola, não era difícil então encontrar traduções de Camus em espanhol, quase todas elas vindas da América do Sul. De certa maneira, Camus beneficiava da anuência dos padres espanhóis (os grandes censores!): diziam eles que, como Sartre, não acreditava em Deus, mas ao contrário deste «procurava-o». Li pois, em primeiro lugar, O Mito de Sísifo, e logo a seguir O Homem Revoltado. Um pouco mais tarde, em 1971 – já quase no final do franquismo – assisti igualmente a uma representação de Calígula, interpretada pelo grande ator José Maria Rodero, que me impressionou imenso (sim, nessa época o teatro entusiasmava-me mais que a filosofia…). Senti-me maravilhado, mas ao falar com os meus amigos universitários – éramos todos antifranquistas – concluímos rapidamente que Camus era um pouco suspeito. Repare-se que para a ortodoxia antifranquista, ele não estava do seu lado da barricada, uma vez que não era marxista e tinha dito coisas muito duras sobre a realidade do comunismo… Ninguém queria parecer estar intelectualmente demasiado próximo dele. (mais…)

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                                  Duas calamidades

                                  Regresso ao debate sobre a saída deste beco escuro e infeto ao qual estamos confinados desde que a política de austeridade tutelada do exterior se tornou a pedra de toque do governo da República, servindo à medida os propósitos dos setores que de há muito pretendiam destruir o Estado social, limitar os direitos dos trabalhadores e reduzir as liberdades. Dando-lhes, pela primeira vez, força e coragem suficientes para levarem a cabo o ímpeto revanchista que, em cobarde silêncio, foram alimentando ao longo das últimas décadas. Esta é a primeira das duas calamidades à qual estamos sujeitos: ser governados por quem tem da coisa pública uma perspetiva puramente instrumental, transpondo a salvaguarda do interesse coletivo, ou do bem comum, em favor da assumida defesa do interesse dos que fazem da desigualdade o fundamento da vida social. Por sua vez, tratando-se de uma ação levada a cabo em nome de uma imposição apresentada como imperativa e irrecusável – materializada no caráter prioritário do pagamento, a todo o custo e a toda a velocidade, da dívida soberana –, tal política é-nos apresentada da pior maneira: como exercício arbitrário de uma autoridade insensível aos direitos das pessoas comuns, aos fundamentos da democracia e até ao quadro mais essencial da independência do país. (mais…)

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                                    Depois de Alcácer-Quibir

                                    Retirando a atitude respeitosa patenteada pelo já pequeníssimo grupo de indefetíveis disseminado pelo país, pessoas de duvidoso sentido da realidade ou de espírito piedoso que ainda dão o benefício da dúvida à justeza e à dimensão avisada da intervenção pública de Aníbal Cavaco Silva, são de três tipos os qualificativos aos quais a generalidade dos portugueses recorre agora para tentar explicar o inexplicável. Uns consideram-na uma prova do caráter timorato e indeciso da pessoa em causa, traços considerados evidentes por quem sabe desenhar perfis psicológicos. Outros julgam-na resultado de uma senilidade algo prematura, documentada por sinais visíveis que os especialistas em gerontologia rapidamente identificam. Outros ainda, menos condescendentes, vêm nela o resultado de um mal-disfarçado calculismo, fruto de uma leitura apressada mas convicta do bê-á-bá amoral do maquiavelismo político. Se bem que negativas e preocupantes, cada uma destas três características seria, ainda assim, relevável se assumida de forma isolada. Mas e se todas elas se encontram a cumprir, em simultâneo, o seu papel na incoerente e irresponsável ação do Presidente da República? Depois dos reis Sebastião e Afonso VI – que acabaram a carreira pública da pior forma para eles e para o país – poder-se-á a História repetir?

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