Tal como comentou Mark Twain em 1897 no New York Journal, referindo-se às informações que então circularam sobre a sua própria morte, após ouvirmos as declarações de Jerónimo de Sousa e de Francisco Louçã neste início de tarde percebemos que as notícias desta manhã a propósito do nascimento de uma espécie prematura de coligação PCP-BE foram manifestamente exageradas. Como diria o Dr. Freitas, o meu velho professor de latim, evocando com exagerado ênfase, as mãos erguidas ao céu, a Sátira Décima de Juvenal, «Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus». Vocês sabem: aquela frase recorrente sobre a montanha e o rato. Quanto à unidade na ação, ela é uma possibilidade e uma necessidade, sem dúvida, mas num quadro detalhado de objetivos e através de uma bem mais vasta conjugação de vontades à esquerda. Nunca decidida apenas na sombra das sedes. Para lá caminhamos, espera-se, velozmente mas sem saltar etapas. Quanto a entendimentos pontuais mais rápidos, venham eles.
Uma nota sobre a manifestação de ontem, convocada pela CGTP três dias antes do movimento nacional «Que se Lixe a Troika! Queremos as Nossas Vidas de Volta!», de 15 de setembro, e à qual aderiram entretanto outras organizações e movimentos. Não pude de todo estar presente em Lisboa, mas apoiei a convocatória, ajudei a divulgá-la e tive muita pena de não ter podido fazer parte da multidão que encheu o Terreiro do Paço. Ainda assim, segui-a diretamente ou em diferido através das televisões, dos jornais online, dos blogues, do Facebook e do Twitter, tendo depois conversado com pessoas que estiveram presentes. Por isso, a minha leitura não deriva apenas de «ouvir falar». Se bem que, nos tempos que correm, o que se ouve e o que se vê à distância possa ser, muitas vezes, mais completo do que aquilo que podemos observar na escala direta e calorosa da presença física. (mais…)
Enquanto lemos o ensaio Uma Grande Ilusão?, publicado pela primeira vez em 1996, baseado em palestras proferidas no Johns Hopkins Center de Bolonha e traduzido agora em Portugal, poderá surpreender-nos a capacidade de Tony Judt (1948-2010) para chegar, com vários anos de avanço, a conclusões hoje praticamente do domínio do senso comum. Naquela altura, o euroceticismo era dominado pela direita e o ideal de uma Europa política e economicamente unida ainda parecia constituir, pelo menos para a generalidade dos socialistas e dos social-democratas de esquerda, o fundamento de um futuro de prosperidade e de bem-estar social para a grande maioria dos cidadãos. Em Portugal, a proposta de uma «Europa connosco», utilizada pelo PS em 1975 para vencer as eleições para a Assembleia Constituinte, dera o mote para a projeção intramuros, por mais de vinte anos, dessa quimera de um continente unido, próspero e pacífico, no qual cada Estado deveria funcionar como peça perfeita de uma experiência eterna e de um todo harmonioso. No entanto, quando escreveu este texto, o historiador britânico desconfiava já da viabilidade desse projeto e, em consequência, do seu futuro. (mais…)
Não representa uma vantagem, mas sim um problema e um péssimo sintoma. Pode também ser um ponto de viragem para indispensáveis mudanças de atitude. Torna-se evidente que uma boa parte da dimensão e do êxito das manifestações anti-troika e anti-governo de 15 de Setembro se ficou a dever – para além, claro, da revolta genuína, profunda, dos cidadãos espoliados e ofendidos – ao seu caráter apartidário. A necessidade e a unidade na ação produziram então o necessário para que as bocas se abrissem: uma conjugação de vontades, fundadas em alguns objetivos elementares e comuns, que não se acharam submetidas a figuras tutelares, a discursos estereotipados, a «serviços de ordem» ou a previsíveis aproveitamentos. Essa foi a vantagem.
Já o problema começa quando o caráter apartidário degenera em sentimento antipartidário, e nada garante que a linha separadora das duas dimensões não tenha sido já transposta. Tanto no que diz respeito aos partidos do governo, quanto no que concerne àqueles que formalmente se lhe opõem. Chegamos então à perceção de que este pode ser o perigoso sintoma de uma certa rejeição da democracia representativa de base partidária tal como esta se encontra desenhada na Constituição, o que pode antecipar uma arriscada vertigem de caráter messiânico ou autoritário. Aguarda-se por isso que aquilo que aconteceu suscite, quanto mais não seja por efeito do instinto de sobrevivência, uma reflexão dentro dos próprios partidos. E que preludie uma reconfiguração do nosso mapa político e partidário, com a emergência de novas formas de organização, de ação, de discurso e de representação política. A esperança que nos alimenta reclama esta possibilidade.
A dimensão e as características dos protestos deste 15 de Setembro terão sido uma surpresa, tanto para os governantes quanto para os partidos do chamado arco da governação. E mesmo para os próprios organizadores, que só tinham as adesões no Facebook como indicador. A surpresa começou pelo número esmagador de manifestantes que foram para a rua, em tantos e tão diversos locais, somando perto do milhão. Falamos, repare-se bem, de 10% da população em protesto contra a ingerência da troika em Portugal, contra a vertigem insana da austeridade sem horizonte assumida pelo governo, e contra a proposta injusta e desumana de uma Taxa Social Única que traduziria uma política de terra queimada. Foi esta, aliás, a gota que fez transbordar o copo. (mais…)
Chegámos a um tal ponto na gestão dos negócios públicos e da vida social impostos aos portugueses pelo atual governo, que a contradição principal já nem é a que opõe esquerda e direita, defensores do socialismo e adeptos do capitalismo, burguesia e proletariado, pobres e ricos, novos e velhos, urbanos e rurais, partidários do papel do Estado social ou da primazia da economia de mercado. É, dramaticamente, aquela que separa as pessoas mais ou menos avisadas, de trajetos profissionais erguidos a pulso e escolhas políticas diversas, de uma associação de loucos e de desvairados, gente impreparada e arrivista, sem formação pessoal, humana e muito menos política. Gente de pesadelo que por um conjunto de circunstâncias fortuitas se encontra à frente dos destinos de um país, de uma democracia e de um povo, que se esforça todos os dias por empurrar para esse abismo do qual jamais haverá retorno. Um cenário excecional que requer, e com a maior urgência, medidas também excecionais. O protesto de rua é por isso absolutamente crucial neste processo.
«Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!» Manifestações em todo o país neste sábado, dia 15.
Uma carta-aberta é aquilo que sabemos. Escrita por alguém (neste caso o escritor e ensaísta Eugénio Lisboa), dirigida a outro alguém (aqui o destinatário é o infeliz que é neste momento o primeiro-ministro de Portugal) e aberta à leitura de todos porque a todos importa. Retirada do blogue Da Literatura, de Eduardo Pitta.
CARTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL
Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe. (mais…)
É provável que muitas pessoas o tenham entretanto esquecido e, uma vez que a Queda do Muro aconteceu há já perto de um quarto de século, que muitas outras nunca se tivessem apercebido de tal coisa. No entanto, durante os anos da Guerra Fria, os governos dos países do «socialismo de Estado», autoproclamado «realmente existente», bem como a maioria dos «partidos irmãos» que no resto do planeta os apoiava, sempre mostraram maior empenho na vitória republicana nas eleições para a presidência dos EUA do que interesse no resultado contrário. A lógica era simples: republicanos e democratas eram uma e a mesma coisa, não passando de inimigos «da humanidade progressista e da paz dos povos», e por isso mais valia que vencessem os menos enganadores, os mais assumidamente agressivos e por isso os mais capazes de ajudar a congregar vontades para o combate anti-imperialista. Era a lógica do quanto pior, melhor: um governo americano mais inflexível no domínio interno e mais propenso a aventuras no plano mundial, seria preferível para a vitória planetária do socialismo. (mais…)
Deixei há semanas aqui um texto dececionado – embora não surpreendido, dada a sua antiga e pública parcialidade pelos republicanos – motivado pelo apoio de Clint Eastwood, nas presidenciais americanas em curso, ao tosco, belicista e perigoso Mitt Romney. Entretanto o patético «discurso da cadeira», apresentado como peça central da encenação do Partido Republicano que confirmou a candidatura de Romney, transformou a mera deceção no reconhecimento de uma afronta. A apropriação de imagens de Clint que fazem parte do património de todos os amantes do cinema, de pessoas de convicções muito diferentes, de gentes de origem, língua e sensibilidade que não jogam necessariamente umas com as outras, para servirem como cenário da intervenção do ator-realizador, eram completamente evitáveis. É desde logo de um primarismo cenográfico pavoroso, mas representa também um roubo à mão armada de uma parte do imaginário partilhado que não é (e nunca foi) propriedade de Mr. Eastwood. Sergio Leone, que no ano de 1966 o transformou no Blondie de The Good, the Badand the Ugly e era um homem da esquerda, infelizmente, já por cá não anda para poder protestar.
O objetivo do Ministério da Educação de, já no ano letivo de 2013/2014, introduzir na organização do sistema de ensino alterações tendentes a fazer com que os «estudantes com notas fracas» sejam forçados à aprendizagem de ofícios «como eletricista, talhante, agricultor ou canalizador», é um golpe brutal nos princípios da escola democrática. Princípios que, no essencial, presidiram após o 25 de Abril à organização do ensino obrigatório e tendencialmente universal. Este objetivo do governo revanchista de Coelho e Portas foi hoje mesmo criticado, com agudeza e detalhe, em dois artigos que recomendo vivamente: «O erro Crato», de André Macedo, e «Cada criança no seu galho», de José Soeiro. Não duplico os dados e a reflexão que estes apresentam, uma vez que os reproduzo no final deste post, mas chamo a atenção para dois aspetos específicos e uma circunstância particular que não têm sido suficientemente vincados na sua dimensão social e na sua completa perversidade. (mais…)
Segundo o Público, os organismos de veteranos que tutelam a praxe de oito academias – Évora, Porto, Aveiro, Minho, Beira Interior, Trás-os-Montes e Alto Douro, Leiria e Coimbra – vão reunir-se no início de Setembro «para defenderem as tradições académicas», isto é, as praxes, procurando criar um regulamento geral capaz «de separar muito bem o que é a praxe e o que não é». O objetivo último da iniciativa, declaram alguns dos que a preparam, é conter os abusos, impedindo «barbaridades» e estimulando «o respeito». De acordo com o responsável de um desses organismos, tal respeito será necessariamente «dos mais novos em relação aos mais velhos, mas também dos mais velhos em relação aos mais novos». As regras não colidirão com os vários códigos da praxe, destinando-se apenas a impedir os excessos e o enviesamento dos objetivos corporativos que visam essas práticas «tradicionais» e datadas. (mais…)
No final de agosto de 2011, há precisamente um ano, após alguma medição dos prós e dos contras, este blogue passou a seguir o último Acordo Ortográfico da língua portuguesa. A propósito da data, regresso a dois posts que entretanto escrevi – um nessa altura, o outro há apenas seis meses – republicando-os em conjunto com ligeiras alterações formais. Não procuraram justificar uma posição olhando para os detalhes, o que remeteria para a longa polémica na qual têm intervindo especialistas e leigos. Mas tentaram contrariar o sectarismo e cegueira que nada resolvem.
1. Ação! (para o bem e para o mal) (Agosto de 2011)
Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que antecedeu a sua aprovação e tem envolvido a sua aplicação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 2012 me será exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e de editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado segundo o Acordo. Noutra direção, poderia dizer que o fazia para me revelar um sujeito à la page, desperto para os upgrades do real. Mas só isso não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há mais de meio século. Acrescento por isso duas outras razões. (mais…)
Não parece que a proposta de dois rostos para coordenar o Bloco de Esquerda possa ser uma boa ideia. Para além da sua justificação mais simples surgir associada por Francisco Louçã a um certa dose de novidade e de imaculada correção política – de fundamentação e de eficácia, aliás, bastante duvidosas –, evidencia a intenção óbvia de esbater, através dessa forma de representação «bicéfala», alguns dos problemas mais óbvios desse equilíbrio político interno que se encontra na matriz do Bloco e com o qual, desde a fundação, este tem convivido sem dramáticas ruturas. Trata-se de uma sugestão bastante discutível, que, a concretizar-se, pode ter custos políticos muitíssimo elevados. Desde logo por ser um óbvio caso de «meter a carroça à frente dos bois», indicando um novo modelo de direção sem que este venha associado a um programa político claro, realmente renovado e com capacidade de mobilização. Mas também porque, se for consumada, terá consequências difíceis de prever e certamente nada positivas para o partido.
Num mundo como o atual, submetido à omnipresença dos média e à força imensa da imagem, numa sociedade em crise aguda como esta em que estamos, no sistema político representativo como aquele em que vivemos, o papel da liderança é, para os partidos, ainda crucial na agregação de apoios, na mobilização do universo eleitoral e na negociação de soluções. Por isso, ela deve ter um rosto único, expressivo, com autoridade política determinada pela biografia de quem a personifica, com capacidade para fazer convergir diferenças, com estofo político e humano para saber propor metas, para moderar os inevitáveis problemas pessoais e conflitos internos, para ser a voz do coletivo na primeira linha dos combates mais necessários. Ora uma solução como esta, frágil e de confeção burocrática, de facto de continuidade e de «consenso possível», sabe a remédio amargo e não parece responder a estas necessidades. A ocorrer, só pode trazer maus resultados para o Bloco e más notícias para quem nele deseje encontrar uma parte forte da solução para o futuro próximo deste país em tormenta.
[O segundo parágrafo foi ligeiramente retocado cerca de uma hora depois de publicado.]
A fotografia que acompanha este post foi tirada em Sófia e documenta uma intervenção estética integrada no movimento global de solidariedade que após a sua prisão, há já cinco meses, tem apoiado as três Pussy Riot e divulgado a intervenção que protagonizam. A introdução da balaclava – o acessório inventado durante a Guerra da Crimeia por umas caridosas senhoras britânicas que é o sinal visual da banda punk moscovita – sobre as cabeças de algumas das figuras de um grupo de soldados do Exército Vermelho representados na estrutura erguida durante o pesadelo do realismo socialista numa praça central da capital búlgara, acentua a dimensão iconoclasta do seu ativismo. E sublinha agora a importância da sua luta pela liberdade. (mais…)
Há cerca de 14 meses, logo após o desastre eleitoral que o BE produziu e viveu nas legislativas de 2011, e em consonância com um debate público, alargado a não-militantes, que então parecia ir ter lugar, escrevi aqui quatro posts sob o título comum «O Bloco no seu labirinto». O tempo passou, a discussão parece ter-se escondido, e um conjunto de práticas então criticadas manteve-se aparentemente inalterável. Este texto retoma, resume e atualiza alguns dos argumentos ali avançados. Mas procura, pois agora só isso é urgente, olhar principalmente para o futuro.
Não me parece, ao contrário do que por aí se diz e escreve, que as dificuldades do Bloco de Esquerda, a clarificação das dúvidas sobre os caminhos que pisa, o esclarecimento público dos seus objetivos, passem necessariamente por mudanças profundas no núcleo dirigente. As escolhas, claro, são feitas por pessoas: elas têm rosto, traduzem percursos, sugerem as expectativas e as qualidades de quem as toma. Mas não parece existirem clivagens que imponham a troca de dirigentes com rodagem e com energia para cumprirem o seu trabalho político, por outros que, numa mera operação de cosmética, apenas poderão oferecer, como numa mudança de logótipo, uma imagem pública diferente. O alargamento e a renovação dos organismos de direção, a expansão da sua representatividade e colegialidade, o combate ao sectarismo que ainda se deteta, a ampliação dos militantes com formação qualificada, integram uma solução; já deitar fora ideias, experiência, dedicação, não tem necessariamente de fazer parte dela. A solução deve encontrar-se noutro lado. (mais…)
Uma das formas de desrespeito pelos direitos dos outros – e também de aviltamento da condição humana – passa pelo uso seletivo, contra alguém ou contra grupos, de insinuações, meias-verdades ou completas mentiras. Pode ser que quem o faça consiga os seus intentos imediatos, mas não ganha com isso, com toda a certeza, a consideração de quem se apercebe de tais estratagemas. Eis uma «lei universal» que a todos se aplica: não é possível respeitar quem, para obter vitórias fáceis e rápidas, ou para depreciar publicamente alguém, recorra à mentira ou à manipulação das palavras. Fazê-lo é, entre outras coisas, sinónimo de falta de transparência e de caráter. As duas ou três pessoas com quem nesta vida me incompatibilizei, justificaram a minha atitude justamente pelo uso reprovável da manipulação, da mentira, da depreciação de outros. Distorcendo as suas palavras ou fazendo eco, sabendo o que faziam, de calúnias produzidas por terceiros. Produzindo pravda, «verdade revolucionária», em vez de verdade. (mais…)
Boa parte do cinema que tem pautado os modos de ver ou de imaginar uma certa identidade norte-americana passa pela carreira longa e pela figura esguia de Clint Eastwood. Começou a participar em filmes, ainda como ator secundário, em 1955, mas a projeção mundial obteve-a como «Homem Sem Nome» («Joe», «Manco» ou «Blondie») na trilogia «dos dólares», modelo do western spaghetti, rodada entre 1964 e 1966 por Sergio Leone: Por um punhado de dólares, Por mais alguns dólares e, mais conhecido, O Bom, o Mau e o Vilão. Aí protagonizou o tipo de herói, comum na ficção americana, mostrado como um indivíduo violento e sem grandes princípios, em conflito à escala diminuta com a ordem dominante, que as circunstâncias empurram para atitudes que o espetador reconhece como «justas» e nas quais, por isso mesmo, a violência, incluindo a mais extrema, parece aceitável. Este será o modelo retomado pelo Eastwood das décadas de 1970-1980, na pele do detetive Harry Callahan, «Dirty Harry», num conjunto de filmes onde, uma vez mais, a brutalidade e a falta de escrúpulos do polícia duro e automarginalizado surgia como uma necessidade determinada pela procura da justiça.
O cerco imposto pela «política do real», aquela que apenas atende aos dados objetivos, ao deve e ao haver, às necessidades materiais mais elementares, a metas quantitativas, é, entre os partidos da democracia, protagonizado agora pela quase totalidade do espetro político. À direita porque essa é a atitude natural, esquecidos que foram, levados pelo tempo, os impulsos do velho personalismo a propósito da «comunidade de pessoas», depois adotados pela defunta democracia cristã. À esquerda porque se desistiu de pensar uma política do impossível – indispensável para projetar a mudança – em favor do pragmatismo que apenas olha para o ritmo das refeições. Passo pelas palavras do Padre Manuel Antunes, publicadas em 1979 no seu notável Repensar Portugal, e revejo a premente necessidade de voltarmos a procurar naqueles que pensam de forma imprevisível – em confronto com as necessidades humanas, mesmo as mais íntimas e imateriais – o caminho da esperança e do futuro.
Que espécie de sociedade desejamos? Que espécie de sociedade deseja o povo português? Ouso interpretar. De resto é essa uma das funções, se não a principal função do intelectual na cidade. Para além, claro, da missão de defender o seu próprio ideal e as suas próprias opiniões, mesmo quando esse ideal e essas opiniões não vão ao sabor dos senhores da hora. O intelectual não deve ter medo de ser ou parecer diferente dos outros, de querer escapar ao nivelamento universal em que, por via de regra, esses mesmos senhores pretendem rasoirar os que, de uma certa forma, lhes estão sujeitos. Por isso, como avança Oskar Morgenstern, os governos fazem mal em só prestarem atenção aos dados sociais, económicos e técnicos dos mundos que administram. Deviam também consultar os artistas pela sua «extraordinária presciência» do que se passa ou vai passar na profundidade desses mesmos mundos.