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Luta pelo socialismo ou combate pela democracia?

BSS

Durante um entrevista concedida neste sábado, dia 18 de Junho, à Antena 1, Boaventura de Sousa Santos fez algumas considerações de um enorme interesse sobre os objectivos e reorganização da esquerda, justificando a maior atenção de quem, dentro deste campo, procure verdadeiramente uma maneira de sair do actual impasse que não seja a da habitual e suicidária fuga para a frente. Depois de afirmar que agora «a esquerda tem que se repensar muito», ou mesmo «completamente», Boaventura recorda que a «esquerda à esquerda», na qual engloba o Bloco e o PCP, foram construídos e conservam-se dentro de um imaginário fundado no princípio de acordo com o qual «a luta é uma luta anticapitalista», tendo o socialismo como horizonte único. Aceita, evidentemente, que este horizonte existe e continuará a existir durante muito tempo, «enquanto houver capitalismo», mas enfatiza que «neste momento a questão fundamental não é o capitalismo, é a democracia». Insistindo em que «o que está em causa é a sobrevivência da democracia». Daí que «das duas uma: ou esta esquerda quer participar na defesa desta democracia, ou não quer participar.». Precisa escolher. Boaventura entende também que o carácter imperativo de tal escolha se aplica a ambos os partidos, mas considera que aquele que está em condições de defrontar mais rapidamente este problema é o BE, uma vez que o Partido Comunista existe ainda, fundamentalmente, como força de protesto, enquanto o Bloco pode desenvolver-se na perspectiva de vir a participar «num arco de governabilidade» – obviamente assente em princípios – destinado em primeiro lugar a defender os valores essenciais, que são também sociais, do Estado democrático. A entrevista encontra-se aqui.

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    O Bloco no seu labirinto (4)

    Último post da série, um pouco mais comprido que os anteriores. Aspectos avulsos poderão ser desenvolvidos mais tarde. Recordo que escrevo estas notas a partir de fora, como simpatizante crítico, eleitor e «compagnon de route» do BE, do qual não sou militante. O meu objectivo é apenas estimular inquietações.

    Anoto quatro possíveis áreas de intervenção no debate sobre a reorganização do Bloco e o seu papel na construção de uma alternativa à esquerda. Com a solidariedade social, o desenvolvimento económico e da qualidade de vida e a defesa da liberdade como elementos incontornáveis e comuns de um cenário com futuro.

    1. No centro da necessária renovação encontra-se uma definição tão clara quanto possível do paradigma político a adoptar e uma identificação da base social que o pode apoiar. É preciso escolher de forma segura e consistente entre a construção de uma alternativa socialista e democrática, voltada para a produção de convergências no campo da governabilidade – uma «social-democracia de esquerda», sem dúvida, e não há que ter medo das palavras quando se nomeia esta tendência fundadora do movimento operário e popular –, ou a insistência num «comunismo modernizado», aparentemente arejado mas ao mesmo tempo nostálgico da intervenção redentora de uma vanguarda omnisciente e do papel de um Estado despótico. Escolher entre o protesto como uma necessidade, destinada a defender direitos e a melhorar a vida dos cidadãos, e o protesto como parte da «luta final», enquanto instrumento de uma transformação violenta da sociedade. É também preciso esclarecer o espectro sociológico que o Bloco está em condições de reunir. Com toda a probabilidade, a crescente mas empobrecida classe média urbana, os intelectuais e profissionais liberais desprezados pelo «desenvolvimentismo» capitalista, os estudantes e as mais novas e melhor formadas gerações de trabalhadores efectivos ou precários. Aceitando que outros partidos à esquerda, a começar pelo PCP, agregarão diferentes sectores. O «povo do Bloco» terá um rosto fundado nos interesses e expectativas sociais que podem convergir, mas sem a fantasia de um dia englobar toda a gente que confia na esquerda como território de um projecto solidário. (mais…)

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      O Bloco no seu labirinto (3)

      Terceiro texto da série sobre o presente e o futuro do Bloco de Esquerda. Depois do anterior, um tanto ácido no diagnóstico da situação, segue-se uma curta reflexão sobre a necessidade do debate. No quarto post identificar-se-ão alguns dos dilemas por onde este poderá passar.

      Estando do lado de fora, só me chegam alguns ecos. Por isso não sei se a observação interna dos problemas com os quais se defronta agora o Bloco tem sido feita da melhor maneira. Mas existem sinais evidentes de crispação, traduzidos na rejeição liminar, por vezes pública, da posição de militantes e de simpatizantes que não se limitam a observar a espuma, a apontar pequenos erros de natureza táctica, pretendendo que se vá mais ao fundo dos problemas e que se debatam as escolhas centrais que parecem bloquear o partido. Não que estes sectores tenham necessariamente razão, ou razão em tudo, ou razão até ao fim, mas nem é isto que de momento está em causa. Preocupante, sim, é observar alguma resistência a um debate radical, isto é, que vá à raiz dos problemas e das escolhas, obviamente necessário e que nesta altura do calendário político se pode fazer sem riscos inultrapassáveis. Contrapondo-se uma reflexão que aparenta ser epidérmica, destinada a retocar a maquilhagem sem mexer nas rugas.

      A verdade é que na esquerda, e na esquerda do Bloco também, parece permanecer ainda em algumas consciências um atávico «síndroma da linha justa», que insiste na dificuldade em questionar de cima a baixo as escolhas políticas fundamentais, aceitando que elas resultaram de logros ou de erros. Apesar dos múltiplos e dramáticos exemplos históricos dos desastres causados à mesma esquerda pela confusão entre certeza e convicção, continua a ocorrer, por vezes, uma dificuldade em rever posições, confundindo questionamento com maledicência ou traição, que deve bastante à escola de dogmatismo imposta pela matriz orgânica e moral leninista. Mesmo quando esta é formalmente renegada. Ao mesmo tempo, porém, são muitos os militantes insatisfeitos ou descontentes, e principalmente os simpatizantes e eleitores desconfiados, que conservam a esperança de – a partir de um debate aberto e sem complexos, pontualmente alargado até a não-militantes – ser possível diagnosticar os males, se necessário reformulando e reorganizando caminhos, e abrindo um futuro de esperança e de confiança para a imprescindível intervenção do Bloco nos tempos bem críticos em que vivemos. Mesmo que tal exija um ou outro safanão em algumas consciências e hábitos. [continua]

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        O Bloco no seu labirinto (2)

        A caminho

        Prossigo com a série de posts sobre os dilemas que enfrenta o Bloco de Esquerda. Se o primeiro, sobre a demissão da liderança, terá sido quase consensual, este sê-lo-á bastante menos. Contém um esboço de diagnóstico ao qual se seguirão adiante algumas hipóteses de terapêutica. A parte mais difícil, onde se diz ao doente que está doente, segue aqui. Mas o que tem de ser…

        Os resultados eleitorais não deixam margem para dúvidas: algo correu mal. Mas ao contrário do que têm deixado entender certos dirigentes e militantes, com a capacidade crítica um pouco esmaecida pela decepção e a ressaca do day after, esse algo não foi com toda a certeza a ingratidão do eleitorado. Incluindo-se neste aquela parte da «geração à rasca» que com todas as probabilidades se absteve. É verdade que podemos, num ou noutro caso, falar com todo o sentido de um deslizamento dos números ditado pelo «voto útil» ou pelo medo. Mas a utilidade do voto não é um factor de importância menor e medo só pode ter quem enfrenta a escuridão sozinho e desarmado, não quem sabe para onde vai e avança acompanhado. A verdade é outra: o que aconteceu tem uma origem profunda, com toda a certeza bem menos conjuntural do que se está a tentar mostrar. Procurá-la e compreendê-la pode ser incómodo, obrigar a algumas mudanças, eventualmente a um ou outro abandono, mas não ao enfraquecimento do projecto político solidário e adaptado aos tempos difíceis em que vivemos que o Bloco de Esquerda tem materializado e pode manter.

        O problema central parece-me relativamente fácil de identificar: existiram duas escolhas que era preciso fazer mas que foram na direcção errada. A primeira diz respeito à identificação do BE com o que podemos considerar um «socialismo verdadeiro», assumindo uma componente democrática e intensamente solidária, mas voltada para a afirmação de programas materializáveis, ou então, no sentido oposto, com um «comunismo moderno», próprio dessa esquerda caviar – um epíteto lançado pela direita e rapidamente adoptado pela ortodoxia – que habita o sistema e dele recolhe alguns benefícios mas tem dificuldade em renunciar à nostalgia maximalista e revolucionária. Aos olhos do eleitorado reformista da classe média urbana, que representa o grosso dos eleitores do Bloco, a segunda opção tem vindo a surgir como dominante. E isto foi fatal. A segunda escolha ocorreu numa área completamente diferente e que parece (mas não é) contraditória em relação à primeira: o partido tem-se concentrado em excesso, tem-se esgotado, em termos públicos e organizativos, no trabalho parlamentar e nas agendas eleitorais, subvalorizando outros campos da vida colectiva e do combate social. (mais…)

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          O Bloco no seu labirinto (1)

          O Bloco no seu labirinto

          Este é o primeiro de um conjunto de curtos posts sobre o passado recente e o futuro do Bloco de Esquerda que publicarei ao longo dos próximos dias. Quero esclarecer que não sou seu militante, embora seja apoiante e votante, e seu crítico também, desde a primeira hora. E que estou suficientemente próximo para controlar a margem de erro do que escrevo.

          Quem veja a política, e em particular a política partidária, como uma experiência fundada no modelo unipessoal do líder que determina a linha, tem, visivelmente, uma grande dificuldade em dizer o quer que seja de razoável em relação à encruzilhada na qual se encontra neste momento o Bloco de Esquerda. O BE, convém lembrar, não funciona como o PS, o PSD ou o CDS, partidos nos quais a verdadeira força propulsora não é o programa ou a moção de orientação aprovada em congresso, mas sim a rédea e a retórica do líder e do seu pequeno grupo, que moldam a paisagem à sua volta para a adaptarem a uma intervenção carismática de tipo messiânico e a uma direcção centralizada. Foi este, aliás, um dos motivos que levou o Partido Socialista a um processo de descaracterização política que o fez perder a marca identitária de partido popular e de convicções. Mas o Bloco também não é o PCP, com uma direcção sedimentada, um corpo de funcionários profissionais e uma base social estável, que o autorizam a mudar alguns rostos e vozes sem com isso alterar significativamente a linha e o discurso. O Bloco é antes um partido de aproximações e de vontades, de convergências num ambiente de razoável liberdade, onde toda a gente fala com toda a gente, sem caciquismo instituído ou «centralismo democrático», que transforma cada militante, e mesmo cada dirigente, numa peça indispensável. Isto significa que pedir demissões a toque de caixa equivale a quebrar este clima razoavelmente aberto e democrático. E equivale também, dada a real escassez dos quadros, a propor a sua liquidação a médio prazo, eventualmente antecedida da tomada do poder por uma qualquer facção ultra-militante que o radicalize e faça sangrar até que retorne ao estado grupuscular de onde há mais de uma década partiu. [continua]

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            Seis notas actuais

            calçada portuguesa

            1. A vitória da direita – ou do centro-direita, como preferem os benévolos – era esperada, mas foi bem mais ampla que o previsto. É verdade que a abstenção, somada aos votos brancos e nulos, também foi elevada, mas, queira-se ou não, e se contarmos também com os votos no PS, os resultados referendam a manifesta convicção da grande maioria dos eleitores de que as medidas de austeridade impostas do exterior são péssimas mas inevitáveis.

            2. Ao contrário, a esquerda que se autoproclama consequente foi incapaz de provar o inverso e de apresentar propostas nas quais uma parte substancial dos cidadãos pudesse confiar como algo de realmente possível, e não apenas de vagamente desejável. Permanecem quase sempre ideias imprecisas sobre futuros melhores sem a apresentação de programas concretos – não a de meros cadernos reivindicativos – e de alianças no terreno capazes de produzirem uma governabilidade à esquerda.

            3. A CDU ganhou pouco mas segurou os seus eternos 7 ou 8%. No entanto, festeja com grande alarido o facto de ter «mais força». Às custas do Bloco de Esquerda, como parece evidente. É preciso dizer mais alguma coisa sobre o grande futuro desse indefinido projecto de um «governo patriótico e de esquerda» hegemonizado pelo Partido Comunista Português que ninguém percebe o que seja, como se pode construir e o que nos propõe?

            4. O Bloco agiu muito mal na gestão política da crise financeira e no ensaio «a pedido» de uma aliança com o PCP, e isso pesou na deslocação de voto de muitos dos seus agora ex-eleitores. Mas, acima de tudo, diante da alternativa entre um «socialismo verdadeiro» e um «comunismo moderno», tombou para o segundo lado, quando o seu campo natural e o espaço por onde poderia e poderá crescer e afirmar a sua identidade é e será sempre o primeiro.

            5. A alternativa futura passará sempre por um PS pós-Sócrates renovado, que corte assumidamente com o modelo neoliberal e erradique tanto quanto possível o caciquismo que o consome e lhe mina o prestígio. Em convergência com um Bloco que se decida entre as duas vias e alije de vez o fardo tardo-leninista que ainda carrega, assumindo o seu papel de partido democrático e europeu, e, ao mesmo tempo, regressando quando necessário à «política de causas» que lhe deu identidade. E com um PCP que perca de vez a cisma da hegemonia «da classe operária», rompendo também com o projecto estatista e totalitário do qual não se viu ainda livre. Isto custa e demora, mas não é impossível, devendo todos mostrar serem capazes de transigir em algumas coisas. Não para unir – esse é um princípio errado e perigoso, com péssimas provas dadas – mas sim para aproximar.

            6. A luta social não pode abrandar, mas no plano político e organizativo é melhor a esquerda à esquerda lamber as feridas, reflectir sobre o acidente sem pôr a culpa sobre os ombros dos eleitores mal-agradecidos – como já hoje vi fazer –, e começar a tratar da cura, do que cair na tentação da fuga para a frente, prego a fundo e fé «na luta», isolando-se no plano social e dilatando o tempo de espera para ser possível a construção de uma alternativa de governo capaz, credível e mobilizadora.

            Adenda: Votei neste domingo – como o tenho feito desde a sua fundação, mas admito que desta vez com algumas reservas – no Bloco de Esquerda. Daí também a minha preocupação. Regressarei mais desenvolvidamente a alguns destes tópicos.

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              Contra e por

              Stéphane Hessel

              Indignai-vos!, o livro-libelo de Stéphane Hessel, tem servido para defender que a mudança de um real injusto, tantas vezes imposto como inevitável, começa pela capacidade de nos indignarmos perante os poderes que o determinam, rebelando-nos contra eles. E tem servido também para municiar uma insurreição pacífica contra as vozes «que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos». Hessel, hiperactivo aos 93, acaba entretanto de publicar um novo livro, Engagez-vous! (Comprometei-vos!), constituído por uma conversa com o diplomata Gilles Vanderpooten ao longo da qual menciona o beco sem saída no qual pode cair a indignação pela indignação. Defende que esta deve unir-se obrigatoriamente a uma noção de compromisso, de empenhamento para produzir algo de concreto, de objectivo, superando a pura negação através de propostas capazes de unirem e de estimularem uma mudança consistente. «Enfadar-se apenas», diz Hessel numa entrevista ao El País, «não tem sentido para mim», acrescentado que a pura ira «não conduz a parte alguma, deve ser seguida de compromisso.» Uma sugestão vinda de quem anda há quase oito décadas envolvido no combate político e social e claramente dirigida a quem se aplica, criando condições para o rápido retrocesso e a depressão pós-revolta, a indignar-se sem apresentar propostas consistentes e sem dialogar com quem é possível dialogar, de modo a gerar as empatias que autorizam a verdadeira mudança. Um aviso para quem se preocupa principalmente com o «contra», descurando o «por». A indignação pura que leva ao protesto – vemo-lo claramente por estes dias, como há muito não acontecia –  é por vezes urgente, dramática, imperativa, mas não pode ser um fim em si. Sob pena de se autodestruir e de levar consigo aqueles que lhe dão a voz.

              Bónus: 5 minutos de conversa com Stéphane Hessel

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                Indiferença e indignação

                megafone

                Circulam ventos contraditórios. Em sociedades bloqueadas e em estado crítico como aquela em que vivemos, a indiferença e a indignação crescem de forma rápida e significativa. Nada garante no entanto que elas não possam encontrar-se. E que desse encontro não resulte, como já aconteceu no passado, algo que pouco ou nada tenha de bom.

                A multiplicação das manifestações, dos movimentos, dos blogues, das petições, dos acampamentos em praças, dos grupos activos nas redes sociais, engana um pouco. Ela congrega um grande número de pessoas, sem dúvida. E aquilo que estas fazem é importante, tem quase sempre motivos fortes e compreensíveis, mas nem por isso elas deixam de constituir uma imensa minoria. À lógica da indignação, ainda há pouco gritada pelo veterano Stéphane Hessel, sobrepõe-se então a dinâmica negativa da indiferença, associada ao desânimo e por vezes à depressão. Basta sair do círculo activista e falar com jovens universitários, para ver como a generalidade permanece desinteressada, se não ignorante, das dinâmicas da mudança e das possibilidades de redenção. A energia negra do neoliberalismo anestesiou as consciências, enquanto uma democracia pobre instalou a convicção de que cada um se deve procurar desembaraçar por si, de que as dinâmicas solidárias são um mal ou mesmo um perigo, de que a política é uma selva povoada de oportunistas e de que é impossível fazer alguma coisa contra isso. (mais…)

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                  O instinto

                  É nas épocas difíceis que mais facilmente caem as máscaras. Quando tudo se complica e a dúvida se instaura, é mais fácil mostrar aquilo que realmente somos. Nus, sem a protecção das aparências que se cultivam com maior facilidade em tempos menos rudes e opacos, tornamo-nos mais genuínos, o que geralmente significa que cresce a imprevisibilidade e o perigo diante do que somos capazes de fazer. Solitários ou em bando, é preciso que se diga. E isso percebe-se muito bem quando vemos como a maquilhagem democrática de muitos de nós se transvestiu logo que as dificuldades aumentaram dramaticamente e o rumor da legítima revolta, moral ou física, impotente ou indignada, se afigurou no horizonte.

                  Em quase todo o espectro partidário saltaram os disfarces. A direita que temos, «democrática» e pluralista, deixou cair a verborreia antieuropeísta e os ímpetos «nacionalistas» e ultraliberais que ainda há pouco tempo sobejavam no seu vocabulário. Activamente ou por omissão, tornou-se radical na defesa do intervencionismo externo. A esquerda à esquerda retomou alguns devaneios, queixando-se da crise mas olhando-a ao mesmo tempo como antecâmara da tomada do poder em nome da revolta das massas. Por ela, aceita mesmo associar-se àqueles que da democracia apenas têm uma concepção instrumental. Pelo meio, os socialistas tornam-se ainda mais pragmáticos, tudo fazendo, sem disfarce, para conservar o seu núcleo identitário mais essencial: aquele que gere a conservação do poder pelo poder. Lá atrás, e como sempre, só os comunistas permanecem iguais a si próprios, uma vez que nunca procuraram enganar ninguém com apologias de uma «Europa europeia» fundada numa democracia não adjectivada.

                  Nesta paisagem, a dificuldade está em nos mantermos lúcidos, na claridade, e não nos deixarmos levar pelos ímpetos. Uma vida melhor, mais digna e mais democrática jamais se construirá tomando a linguagem do instinto como princípio de comunicação.

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                    Diógenes e a sopinha de legumes

                    óculos vermelhos

                    Quando passei hoje no Público pela coluna de António Vilarigues e vi o destaque – «A alternativa existe! E exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda» – pensei logo de mim para comigo: «É hoje. Tens andado distraído mas vais finalmente perceber que coisa é essa do ‘Governo patriótico e de esquerda’ que o PCP pressagia.» Juro que fiquei na expectativa, até porque gosto sempre de aprender coisas novas e, acima de tudo, gostaria de reconhecer a possibilidade de um modelo político e económico para o meu país que não aquele que desgraçadamente nos tem vindo a ser apresentado como inevitável. No entanto, essa expectativa durou só dois minutos. A «explicação» encontra-se no parágrafo final: «Mas a alternativa existe! Uma alternativa capaz de garantir a política necessária à resolução dos problemas nacionais. E que exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda. Governo com uma política que corresponda ao conteúdo e valor próprio da Constituição da República e dos ideais de Abril.» Sem mais, de novo. Ou seja, não existe alternativa alguma, pois ninguém percebe como chegar a tal governo, quem o constituiria e como é que ele resolveria o problema imediato da maioria dos portugueses; a saber, com que é que a partir de Junho estes vão pagar a sopinha de legumes da qual precisam para viver. Mas garanto que vou continuar a procurar – com a mesma tenacidade com a qual o velho Diógenes, de lanterna na mão, percorria as ruas de Atenas em demanda de uma pessoa honesta – a informação que me permita desfazer as dúvidas. Não quero acreditar que o PCP proponha como solução alguma coisa que não faz a menor ideia do que possa ser ou de que forma poderemos nós, ou poderá ele em conjunto com mais não sei quem, chegar a ela.

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                      A sombra

                      a sombra

                      Inteiramente de acordo com o texto do Daniel Oliveira sobre o péssimo gesto e o mau sinal que foi a recusa do PCP e do Bloco de Esquerda a apresentarem-se nas reuniões dos partidos políticos portugueses com a delegação do FMI. Não gasto tinta em argumentos, uma vez que a maior parte do que aqui poderia dizer já ficou dito pelo DO. Como a posição do PCP é coerente com aquilo que o PCP tem desde há muito tempo mantido, resta-me acrescentar, enquanto cidadão que desde a primeira hora considerou o Bloco uma peça imprescindível da democracia portuguesa – e nele tem esperançosa e persistentemente votado –, ter começado a temer que a situação crítica que vivemos tenha em alguns dos seus dirigentes retirado da hibernação os velhos fantasmas do maximalismo kamikaze. Ou isso ou então a Ruptura-FER tomou já o poder e ninguém avisou a malta.

                        Apontamentos, Atualidade, Opinião

                        Disfunções havanezas

                        havanesa

                        Vinte e cinco anos depois, lembra-o hoje o El País, chega a Cuba um plano de reformas económicas semelhante ao imposto em 1986 no Vietname para dar algum fôlego à iniciativa privada, tentando superar as dificuldades determinadas pelo paradigma ultracentralizado e burocrático imposto pelo governo comunista. Por essa altura, já Deng Xiao Ping tinha começado a aplicar esse «socialismo de mercado» que iria transformar a China na superpotência económica, agressiva e cheia de desigualdades sociais, que hoje conhecemos. A receita, principalmente em Pequim, sabe-se bem qual foi: conjugar o pior do «socialismo de «Estado» (a total supressão da liberdade de expressão e de organização, e a repressão brutal de qualquer forma de protesto) com o pior do capitalismo (a exploração desgovernada dos trabalhadores e o crescimento selvagem de uma iniciativa privada protegida pelo Estado, conjugados com a completa proibição da intervenção moderadora dos sindicatos).

                        A diferença, em Cuba, não está assim no modelo, cujos resultados práticos no desenvolvimento dos outros dois «Estados-irmãos» são bem conhecidos. Está em tudo ir ser feito debaixo da orientação das mesmíssimas pessoas que agora apontam erros graves e deformações ao trabalho pelo qual durante mais de meio século foram responsáveis. Não é, pois, difícil presumir que tendo existido liberdade de crítica e pluralidade de opiniões muito mais cedo e com muito menos custos para os cubanos se teria chegado a idênticas conclusões. O que não significa, obviamente, que estas levem a alguma coisa de positivo, para além do que já produziram na China: um acentuar dramático das desigualdades, um crescente alheamento das responsabilidades sociais do Estado e uma sofisticação da repressão política. Cuba não precisa de continuar a afinar os velhos motores, mas sim de máquinas novas. Não precisa de uma operação de cosmética, de «corrigir disfunções», mas antes de uma vaga de liberdade e de mudança na qual todos os cubanos, sem quaisquer reservas, possam participar.

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                          Fuga para a frente

                          fuga para a frente

                          Quando o horizonte se estreita e a vida se complica ao extremo, é fácil perdermos a paciência. Diante da crise social que se adensa e da ausência de perspectivas, a tentação de correr para a frente, vendo inimigos em todo o lado que não seja o nosso e esquecendo os princípios elementares da civilidade democrática, começa a fazer-se notar de forma preocupante. Vive-se uma realidade inaceitável, que tem os seus responsáveis e as suas vítimas, crescendo a tendência para que uns e outros se organizem em campos opostos. A velha luta de classes parece voltar a calçar as botas e a meter-se ao caminho, enquanto aumenta a distância entre os que entendem que o mal está no excesso de direitos e aqueles que lutam para evitar perdê-los.

                          Entre alguns destes corre então, de novo, a presunção de que só uma deriva radical pode reverter o curso dos acontecimentos, pensando de novo em Revoluções redentoras a caminho de outros «amanhãs que cantam». Embora ninguém saiba como despertá-los e menos ainda o que fazer com eles. A noção legítima, necessária, de que outra política é necessária, de que outro mundo é imprescindível, é então devorada por devaneios colectivos que confundem mudança com salvação. Pelo meio, a vida verdadeira, a das pessoas que não sonham com estandartes a adejar ao vento mas sim com uma vida digna, pacífica e livre numa sociedade solidária, é ignorada em nome de um retorno à luta de opostos. Esquecendo uns quantos que, tal como a história do século XX se encheu de provar, nenhum regime perfeito pode ser construído sobre a penúria e a terra queimada.

                          Aquilo que estamos a viver obriga-nos a repensar o futuro e os modelos, sem dúvida, mas também nos desafia a olhar a realidade e a procurar soluções. Por isso, na situação actual, recusar discutir com o poder questões das quais pode depender a sobrevivência das pessoas só porque se coloca à cabeça a impossibilidade de ouvir aquilo que o governo que irá negociar com o FMI tem para dizer – como fizeram hoje os dois partidos parlamentares à esquerda do PS – contribui para as deixar indefesas. Pode ser muito bom para multiplicar o descontentamento e capitalizar o devaneio de uma mudança que «tudo resolverá», mas é duvidoso que traga benefícios eleitorais e de certeza que não ajuda ninguém a sobreviver no meio da tormenta. É preciso ousadia, sim, e luta também, mas algum realismo pelo meio dará jeito. A fuga para a frente não serve para outra coisa que não seja para fornecer oxigénio, escasso oxigénio, a essas «teorias e conceitos» que, como escreveu certa vez Hannah Arendt, de pouco servem em tempos sombrios.

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                            Vermelho ondulante

                            vermelho

                            Nas circunstâncias dramáticas que estamos a viver, torna-se necessária uma tentativa de concertação de estratégias que ponham em marcha a resistência à ditadura canibal dos mercados e à política de sonegação de uma vida decente para a esmagadora maioria dos cidadãos. Neste sentido, faz todo o sentido que o Bloco de Esquerda e o PCP se tenham reunido, e se venham até a encontrar mais vezes, para acertarem estratégias comuns. Em nome dos problemas reais, inadiáveis, que nos estão a cair aos pés e com os quais ambos os partidos se preocupam. Acordos pós-eleitorais podem, sem dúvida, ajudar a construir uma resistência mais forte e audível à piratagem que se aproxima das nossas costas, ajudando também, essa será sempre a esperança, a parte não malsã do PS a assumir uma atitude corajosa e anti-capitulacionista, empurrando o lixo aparelhístico para o vão de escada de onde jamais deveria ter saído. Nesta medida, parece-me exagerada a posição de votantes e até de militantes do Bloco a quem já ouvi dizer que preferem abster-se, ou mesmo votar PS, a darem qualquer aval a uma aliança com o PCP. Aquilo que tenho dito a estas pessoas é que não me parece que tal aliança seja crível, embora aproximações pontuais possam e devam acontecer. (mais…)

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                              A esquerda e a caça aos gambozinos

                              pára-arranca

                              Vivemos tempos difíceis para a esquerda. Na realidade eles jamais foram fáceis, uma vez que o seu trajecto aponta desde a origem para a construção de uma sociedade solidária e igualitária, e esta é, em qualquer tempo ou lugar, uma tarefa difícil, morosa e armadilhada. Se a este objectivo primordial juntarmos a defesa da liberdade e valorização da democracia, então o preenchimento das agendas da esquerda torna-se ainda mais complicado. Por isso tantos preferem pluralizar o conceito: «esquerdas» parece, de facto, mais realista do que «esquerda», uma vez que a diferença é a regra, muitas vezes o obstáculo, e só no plano dos fundamentos se admite um caminho partilhado. Em Portugal, esta separação das águas foi reforçada, na comparação com experiências geograficamente próximas, pelo facto de ser praticamente inexistente, no mínimo desde o final da Segunda Guerra Mundial e dos tempos do MUD, o simples vislumbre de um projecto comum. De um calendário capaz de congregar diferentes sectores em torno de objectivos partilhados, voltados para a edificação objectivável de um outro país.

                              Mas se a dificuldade de encontrar à esquerda um caminho de aproximação não é de hoje, ela tornou-se agora particularmente penosa e incapacitante. Para uma consciência de esquerda que coloca os interesses colectivos acima dos objectivos circunstanciais deste ou daquele agrupamento, é particularmente difícil olhar o modo como a direita se encontra isolada na defesa de um modelo de sociedade selvagem e injusto sem que isso a distancie do acesso ao poder pela via do voto popular. Pelo contrário, ela mantém-se até pronta a assumir a governação e só a «esquerda de retórica», que esquecida dos seus princípios fundadores lhe imita os passos, parece em condições de lhe fazer frente nas urnas. Por outras palavras e dando o nome aos bois: enquanto o PSD e o CDS se preparam para gerir os destinos da nação, o PS, ou a linha de conciliação com a direita e o capitalismo que hoje o domina, limita-se a confrontá-los prometendo a mesma coisa mas de uma forma mais branda, moderna e simpática. Uns e outros projectando os seus programas sobre esse cenário de proclamada inevitabilidade que tem a destruição da dimensão social do estado como ponto assente e indiscutível. (mais…)

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                                Impossível unidade

                                bicicleta
                                © 2008 brandybuck

                                Desnecessárias e até um tanto grotescas para a maioria dos cidadãos, que as observam como a um evitável render da guarda, estão a chegar as eleições antecipadas, projectadas pela Grande Crise sobre um cenário de descrença. Face a elas, a esquerda à esquerda de Sócrates vê-se perdida num labirinto de possibilidades atravessadas por duas grandes incapacidades. A de construir um modelo que refunde e adapte ao século XXI a definição programática de socialismo, e a de propor linhas credíveis para uma «governabilidade à esquerda». Nestas condições, os partidos do centro-direita – o tal «arco da governação» rotativista que vai do actual PS ao CDS – vivem uma situação paradoxal: não têm a confiança da maioria dos cidadãos, cada vez mais alheados da política institucional, mas sabem que, ainda assim, só entre eles o poder será partilhado. Principalmente porque à esquerda dos socialistas não existe alternativa de governo e o voto dos cidadãos a ela destinados representará apenas, como tem acontecido nestes quase quarenta anos de democracia, um voto de resistência ou de protesto.

                                Muitas pessoas se aperceberam deste drama e algumas tentam mesmo, mais ou  menos em desespero, uma solução de circunstância. Na Internet, alguns bloggers falam de «unidade» e circula até um abaixo-assinado «por uma alternativa de esquerda» que tenta encontrar uma forma de resolver o problema. Mas quem tem tomado estas iniciativas fá-lo geralmente da pior maneira, procurando desencadear e fechar em semanas um processo que deveria ter sido iniciado há pelo menos vinte anos, com muita pedra partida pelo caminho. Buscam uma convergência espúria onde reina a desconfiança e pouco existe de aglutinador para além da resistência comum aos sucessivos PEC, a ideia de que é necessário «defender os trabalhadores» e os primeiros acordes da Internacional. Pois como é possível desenhar uma linha de unidade, tendo em vista a governação, com base numa aproximação que inclua o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista, a CGTP, os «movimentos sociais progressistas» e até «os partidos extra-parlamentares»? Só falta juntar à solução os Homens da Luta e os membros menos arrebatados do blogue Cinco Dias (onde teria, ainda assim, de ocorrer primeiro uma trágica cisão). (mais…)

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                                  Desesperança (2)

                                  desperation

                                  Ser optimista é difícil, já que não se encontra à vista uma alternativa para a gestão da realidade que exclua a aflição  prometida pelo centro rosa-laranja. Continuar a trilhar a linha contínua da desesperança. Na banda da direita, o CDS apenas lhe acrescenta a nostalgia de uma sociedade desigual, o princípio da moral e da autoridade como template, a verborreia populista para seduzir campónios e varinas. À esquerda a desolação de um horizonte incorpóreo, a invisibilidade de uma intervenção que não seja apenas a do grito, a do protesto – necessária, sem dúvida, mas muito insuficiente –, ou a da margem. A falta de projecto para um futuro verosímil, para uma «política de esquerda» que se entenda, para uma alternativa real de vida e governação, que jamais se esforçou por construir. Sem medo de poder ser poder. De construir, não apenas de imaginar, outro mundo possível.

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                                    Na fronteira do possível

                                    À rasca

                                    Mais de 300.000 saíram ontem às ruas em Lisboa, no Porto e em outras cidades do país. Elas transformaram o protesto da «geração à rasca» num conjunto de demonstrações que envolveu pessoas de todas as idades e de muitas origens, unidas, de uma forma estranha apenas na aparência, justamente pela diversidade dos rostos, das reivindicações, dos gestos e das palavras de ordem.

                                    Pessoas de idades muito diferentes porque as que estão entre os 18 e os 35, das mais directamente afectadas pela precariedade do trabalho, pela falta de dinheiro e pela ausência de perspectivas, têm pais, irmãos e amigos que se preocupam com elas e quiseram partilhar a expressão pública das suas angústias e da sua revolta. Mas também porque existem muitos mais, de outras gerações, a viver no limite, temendo diariamente pelo futuro e com vontade, mas até agora sem oportunidade, de irem para a rua gritar o desespero. Desesperados ou solidários, novos e velhos, com mais ou menos estudos, aspecto casual chic ou bem humilde, com ou sem conta no Facebook. As manifestações foram, por isso, uma importante expressão de solidariedade entre sectores sociais muito diversos, pessoas que no dia-a-dia se cruzavam sem se olharem, como opiniões desiguais, com ou sem partido, mas unidas agora por um complexo dramático de carências, de inquietações e de reivindicações que lhes são comuns. (mais…)

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