Disponível online uma Petição pelo pluralismo de opinião no debate político-económico. Perante o silenciamento de opiniões divergentes e o tom monocórdico, nos órgãos de comunicação social, dos comentários a propósito do PEC III, da sua conjuntura e da sua «inevitabilidade», torna-se imperioso protestar contra uma censura praticada por omissão que apenas aceita, sem direito ao contraditório, pontos de vista distribuídos «entre os que concordam e os que concordam». Leia, assine e divulgue.
O PEC III é um pesado drama para a maioria dos portugueses. Por aquilo que tira directa ou indirectamente dos seus bolsos e das suas vidas, mas também pelas perspectivas de futuro que bloqueia. E não, não serão apenas os funcionários públicos a ver o filme a andar para trás, como podem pensar os mais distraídos: seremos quase todos nós, com pouquíssimas excepções. O pior de tudo, porém, é não se vislumbrar uma saída. Podemos dizer que não paga a crise quem a deveria pagar, que se atacou o elo mais fraco, que mais sofrerão as pessoas que não têm como fugir ao que lhes é exigido. Isso é verdade e com toda a certeza que um PS com S tinha o dever de, com audácia e imaginação, levar as coisas para um caminho mais equitativo, mais centrado nos culpados que nas vítimas. Mas quem está no poder, moldado no compromisso, não é já capaz de vislumbrar outras medidas que não as agora impostas. E a saída, para quem procure combater este plano com uma alternativa capaz, não pode ser a da «luta» pela luta, gaguejada num sonoro mantra por essa grande fatia da esquerda que sabe desmantelar e protestar mas não construir.
O seu problema é que não consegue gerar uma alternativa. Apesar de ainda precisar de crescer politicamente, o BE tem-se esforçado por denunciar e encontrar soluções, dentro do que é possível integrar no âmbito de uma intervenção essencialmente reivindicativa. Mas é necessário muito mais: é preciso romper, mudar, alterar o paradigma dominante de desenvolvimento e de gestão, e não se vê quem o possa fazer de maneira programática. O PS apenas gere medrosamente a «política do possível», o PCP continua a ser um partido meramente reivindicativo, sem um modelo atraente e mobilizador de sociedade, os «alegristas» só jogam à defesa. O drama é este: não existe uma opção forte capaz de agregar sinergias para descobrir uma saída governativa que não seja a da capitulação perante o universo da especulação financeira. É este o desgraçado, o dramático, ponto a que chegámos. «A luta» possível tem pois, necessariamente, que procurar reduzir os danos mais gravosos sobre a vida dos trabalhadores. Mas precisa acima de tudo, urgentemente, desesperadamente, de se associar a uma alternativa credível e agregadora. Um projecto que traduza uma mudança de prioridades e de políticas. «A luta» e a rua podem até ser um caminho, podem até dar um empurrão, mas jamais serão a solução. É preciso mais: pensar, falar, unir e propor para mobilizar as pessoas comuns. Uma tarefa que não pode ser para amanhã mas sim para já.
Encontro na edição em linha do Diário de Notícias um título em destaque: «Portugal vai ter de subir impostos e congelar salários». Para além da frase em si, daquilo que faz prever, do cenário negro para a maioria dos portugueses que ela desenha, incomoda o sentido impositivo da expressão «ter de». Ou talvez já não incomode tanto assim, uma vez que ela se tem banalizado. Os actos de gestão, as linhas de política, as metas que se configuram para a vida colectiva, não são consideradas escolhas, mas sim inevitabilidades. Uma opinião pública débil, tradicionalmente conformista ou indiferente – de certo modo um atavismo que carregamos, raramente interrompido –, cria as condições para que os «profissionais da eficácia» que gerem a política e a economia possam apresentar as suas propostas e os seus programas como vias de sentido único. Os sinais vêm de trás – veja-se como nas universidades o «Processo de Bolonha», assim com P maiúsculo, foi acelerado e imposto porque supostamente «tinha de» avançar rápido e não podia ser questionado, e veja-se como a generalidade dos seus responsáveis o aceitou ordeira e obedientemente – mas têm-se vindo a agravar. Muitas vezes, é preciso que se diga, com a complacência, com a desgraçada cumplicidade, dos meios de comunicação, desde o pequeno jornal regional à televisão do Estado. Proclama-se e faz-se ecoar a ideia peregrina de que tudo «tem de ser»: as coisas são como são, nada há a fazer, mudar é impossível. Manda quem pode e obedece quem deve. É o fado implacável, o destino que marca a hora. «É a vida». A intervenção da consciência crítica e a capacidade de pensar a alternativa, de relativizar as circunstâncias, de escolher com bravura a nova estrada a percorrer, ficam assim convenientemente adormecidas. Para sossego de quem mais ordena e prefere não ser contrariado, prefere que não lhe mexam nos papéis nem lhe mudem os chinelos do lugar habitual. Salva-nos apenas a consciência de que as viragens históricas são sempre feitas de impulsos e de imponderáveis. Mais cedo ou mais tarde elas formam-se e irrompem sem pedir licença. «Têm de» irromper. Não por estarem escritas nas estrelas ou obedecerem a uma narrativa que explica a sua certeza, mas porque se transformam numa necessidade. E por vezes nascem na rua, de maneira nómada e imprevisível.
De cada vez que os grupos que contestam a existência legal das touradas dão sinal de si, os seus opositores, de peito feito e jaqueta assertoada, ou unhas afiadas e mantilha a condizer, entram a matar. Está-lhes na índole e por isso se compreende o tique. Aquilo que já não se aceita é que a comunicação social que lhes dá eco não interpele essa evidência: contra um sector de opinião que não gosta de braveza e se limita a emitir um juízo, procurando apoios para os seus pontos de vista, saem para a rua aos berros, farpas na mão, acusando os outros, os anti-taurinos, de «talibãs», de «fundamentalistas», talvez mesmo de bolcheviques encapotados (que são de longe os piores, como todo o mundo sabe). E ameaçando, velada ou explicitamente, irem-lhes às ventas se a ocasião se proporcionar. Um caso óbvio de não ver o argueiro em olho próprio.
O último acto desta comédia foi da iniciativa do guionista e autarca ribatejano F. Moita Flores, que nos promete, contra a petição legislativa que vai propor à Assembleia da República medidas contra as corridas, e ao estilo a minha é maior do que a tua, «reunir 100.000 assinaturas em defesa da tourada». Na sua argumentação «progressista» – pois considera a tourada um factor castiço de «progresso» económico, societário, cultural e até gastronómico – refere a dado momento que os militantes anti-tourada, que tanto o estorvam e tanto o enervam, «fazem abaixo-assinados, procurando destruir sem compreender, protestar quando a verdadeira essência do seu protesto são as suas próprias consciências». Acaba no entanto por pôr o dedo na própria ferida, carregando até doer. De facto, trata-se aqui principalmente de uma questão de consciência. O resto, da tortura bárbara de animais à civilidade marialva, são efeitos desta, não causas.
Como aconteceu em outras 110 cidades do mundo inteiro – para ser mais exacto, em 111 cidades daquela parte do mundo na qual as pessoas comuns se podem auto-organizar e expressar publicamente os seus protestos, alegrias e opiniões – decorreu ontem em Lisboa a manifestação contra a morte por lapidação de Sakineh Ashtiani e a pena capital praticada no Irão por crimes de natureza moral e religiosa. O número de participantes presentes varia segundo as diferentes fontes, mas pessoas em quem confio coincidem ao apontar para cerca de meio milhar de pessoas. Não é um mau número para uma tarde tórrida de um sábado de Agosto. Sabendo-se além disso que as lutas pelos direitos humanos – especialmente os dos outros – raramente são muito participadas, independentemente da latitude na qual se travam. No entanto, no caso do protesto de Lisboa, é possível detectar algumas forças que por omissão ou esforço de contra-propaganda concorreram para que a mobilização não fosse um pouco maior. São particularmente visíveis na Internet, sobretudo nos blogues nacionais e no Facebook, não sendo despropositado o termo de comparação uma vez que foi aqui que a iniciativa arrancou e foi por estas duas vias que indignação das pessoas foi mobilizada.
Detectam-se razões que têm a sua origem no sectarismo mais ortorrômbico («ah, mas foram fulana e beltrano que são do partido xiz a organizar aquilo!»), numa confusão desajustada das prioridades («há lutas bem mais importantes, camaradas»), numa incurável cegueira política («trata-se de uma intromissão na autonomia de um Estado soberano») ou no desvairamento mais completo e a precisar de tratamento urgente («foram a CIA e a Mossad que financiaram e organizaram esta miserável campanha»). Para além, claro, do silêncio dos partidos políticos, para quem o conceito de solidariedade para com a injustiça, de denúncia da perseguição política e de defesa dos direitos humanos dependem dos programas e não das pessoas. De sublinhar, a este respeito, a ausência completa de uma palavra ou de um gesto de apoio, ainda que informal ou a título individual, por parte de responsáveis do PCP. Ou o «esquecimento» público do governo português perante este caso. São factos bem evidentes, que importa anotar para sabermos com quem podemos contar sempre quando se trata de situações que têm a ver com a defesa de vidas humanas sob pressão ou em risco imediato. Nesta situação concreta com a vida de uma mulher em vias de ser punida, – e em primeiro lugar justamente por ser mulher –, da forma mais bárbara e atroz que é possível conceber-se. Pode lá haver combate mais justo, valor mais importante, «opção táctica» mais legítima?
Adenda a 31/8: Entretanto o PS (não o governo da nação com voz perante as nações) lançou um apelo ao governo do Irão, e um bloguista militante e vigilante do PCP (não um seu actual responsável) chamou a atenção para este caso e recorda-o dramaticamente urbi et orbi. Fazem bem, uns e outro. Não fazem, organização e pessoa, senão o seu dever.
Não começou ontem o hábito de usar o qualificativo de «pseudo-intelectual» como maneira de desconsiderar alguém. Mas o costume vulgarizou-se nos últimos tempos, associado à depreciação pública do próprio conceito de intelectual. Numa sociedade na qual o nível de escolarização média e superior cresceu consideravelmente, mas onde o saber técnico é continuamente privilegiado em relação à cultura de base humanística, detecta-se um conflito entre aquilo que resta do antigo prestígio dos intelectuais – combatentes com voz por um saber engagé – e a atitude de um grande número de pessoas que ainda recolhe um eco desse prestígio mas é incapaz de o compreender. Por este motivo, tem alastrado um enorme equívoco capaz de levar a que alguém que ainda transporte consigo algumas das marcas desse antigo intelectual se transforme facilmente num «pseudo-intelectual», num ser caprichoso, especialista em pomposas futilidades. Ou seja, por definição, quem esgrime publicamente por ideias, quem cria e se esforça por fazer ecoar aquilo que criou, passou a ser para muitas pessoas de cultura mediana e standard um «falso intelectual». Com manias de sê-lo sem a percepção de que o será apenas para si e para uns quantos próximos. Se tanto.
Sem entrar no debate, já com décadas, sobre o hipotético fim dos intelectuais ou a indesmentível reformulação do seu lugar social, interessa aqui rememorar algumas banalidades fundadoras da sua condição resvaladiça. O Dicionário Houaiss destrata a palavra reduzindo-a à condição precária do adjectivo, aplicando-a apenas àquele «que vive predominantemente do intelecto» – e se opõe, portanto, a quem viva da actividade manual – ou então ao que demonstra «gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes». Exclui pois, ou pelo menos ignora, o sentido histórico e substantivo, que contribuiu para reforçar o prestígio original do intelectual, associando-o à experiência da cidadania, atribuindo-lhe um lugar central na agitação das ideias ou na legitimação das causas, assegurando um papel fulcral na vida cultural, não como simples espaço de devaneio e divertimento mas como território para a afirmação de um dever e de uma necessidade, fundamentais para a existência e o progresso das sociedades complexas.
Deste ponto de vista, André Malraux terá sido um protótipo do intelectual em estado bruto: escritor, resistente, aventureiro, teórico da arte, iniciador das «maisons de la culture» e inventor do primeiro Ministério da Cultura. Sartre foi-o também, como modelo do intelectual empenhado, defendendo que o escritor não é neutro frente à realidade histórica e social: «O escritor empenhado sabe que palavra é acção, sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão fazendo por mudar». Para o filósofo existencialista, e durante algum tempo proto-marxista, no contexto da sociedade capitalista será aliás impossível manter o sonho da imparcialidade diante da condição humana. Na sua opinião, «a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele». O escritor pensa, fala, escreve então assumindo essa experiência como resultado de uma necessidade, de um impulso sem o qual não pode ser verdadeiramente escritor. E o intelectual é-o como expressão de um destino socialmente partilhado, indispensável para a mudança do mundo.
O uso indiscriminado da noção de «pseudo-intelectual» advém pois do recuo desta ideia. Não tanto de uma abordagem objectiva da relação justa ou injusta de alguém com uma criação projectada no social ou com o combate público por certas ideias. Nos últimos tempos, o abuso do qualificativo – e a blogosfera é particularmente rica neste particular – tem correspondido pois, quase sempre, mais a uma desvalorização do pensamento livre e livremente comunicado do que a uma crítica, que até poderia ser justa, aplicada directamente a quem, «pseudo», «falso», exponha ideias que são apenas um simulacro de reflexão, conhecimento, ousadia e convicção.
As medidas tomadas em França por Sarkozy para repatriar um grande número de ciganos, rapidamente aclamadas e consideradas até insuficientes pelo governo italiano de direita, colocam-nos perante um problema real, desde há muito à nossa frente mas que insistimos em empurrar para um lugar invisível. Para a maioria dos gadje, os não-ciganos para os roma, estes são figuras incómodas, arrumadas sempre em último lugar numa possível ordem da inclusão social. Por muitas razões, umas com fundamento histórico, outras circunstanciais, outras ainda resultado do mero preconceito de natureza racial: são nómadas numa sociedade estruturalmente sedentária, vivem em larga medida de uma economia paralela e à margem de qualquer planificação, resistem a aceitar formas de autoridade que não a familiar, não se conformam com direitos e deveres que lhes são impostos, têm muitas vezes atitudes problemáticas em relação aos direitos das mulheres, à civilidade do quotidiano, à propriedade, à educação e ao trabalho. São diferentes e não o são apenas por razões de natureza genética. Mas essa diferença paga-se e os roma têm-na pago de forma constante e muitíssimo pesada. Perseguidos, escorraçados, encarcerados, massacrados ou simplesmente ignorados, como cães, desde que há cerca de mil anos atravessaram o grande planalto iraniano e entraram na Europa.
No entanto estimam-se actualmente em perto de dez milhões apenas nos Estados da União Europeia – 40.000 em Portugal e cerca de vinte vezes mais em Espanha – e são cidadãos de pleno direito, pois código algum estipula que essa cidadania seja cerceada por motivos de natureza racial ou condicionada pela forma como cada um ocupa o seu tempo. Nasceram aqui, em solo europeu, como aqui nasceram também os seus pais, avós, bisavós, trisavós, até uma época para «eles» e para «nós» imemorial. Por isso não podem ser tratados como intrusos aos quais se recusa um visto e que se empurram para as margens da História, do desenvolvimento e mesmo da sobrevivência. Existem graves problemas de inclusão social dos ciganos, sem dúvida, e não vamos dizer que a culpa é toda e apenas dos gadje, pois muitos ciganos insistem ainda na auto-exclusão como forma de salvaguardar uma identidade que consideram ameaçada. Ou então por mera inércia. Mas a forma de resolver esses problemas será sempre pela via da comunicação intercultural, privilegiando a iniciativa de mediadores válidos e credíveis, que procurem encontrar soluções e não apenas resolver desagradáveis incómodos. Não é, jamais será, pela via de um paternalismo emanado de uma cultura sedentária que se crê superior e modelar. E muito menos pelo caminho da «guetização» repressiva, seja ela feita no recanto de um subúrbio, em bairros isolados ou em áreas remotas de países periféricos. Falar é, neste caso, quase sempre difícil. Leva o seu tempo e dá trabalho. Mas é o único percurso possível. O outro apenas conduz ao desentendimento e à opressão.
O movimento internacional contra a lapidação até à morte imposta em muitos Estados islâmicos para «crimes» de natureza ética e religiosa envolvendo principalmente mulheres tem vindo a aumentar e a mostrar-se cada vez mais activo. A campanha em curso contra a execução da iraniana Sakineh Ashtiani, condenada «por adultério» após confissão sob tortura, integra essa vaga, dando corpo a um combate humanitário particularmente dramático e urgente. A maior parte desta mobilização é feita, como seria de esperar, em países com regimes democráticos, pois só nestes a informação pode circular com razoável liberdade e só nestes também os cidadãos se podem bater por causas como esta sem se verem igualmente perseguidos. A movimentação tem agregado sempre pessoas de diferentes partidos, distintas convicções, cidadãos e cidadãs com ou sem bilhete de identidade política, com ou sem religião. Pessoas unidas apenas, e não é pouco, pela repulsa e a indignação contra uma punição injusta e monstruosa.
Em Portugal tem sido assim também. De assinalar, porém, o silêncio do jornal Avante!, que apenas surpreenderá quem ande um pouco distraído. Não se trata sequer de justificar a escusa em participar, ou o desinteresse por referir minimamente a situação, com o decrépito e repisado argumento de que existem causas mais próximas e mais urgentes. Ou de avançar, uma vez mais, o triste raciocínio de acordo com o qual erguer a voz em situações deste género só beneficia os mais inconfessáveis interesses americanos ou a vil propaganda sionista. Trata-se de ocultar, de evaporar, de riscar da agenda política uma causa como esta, mostrando um frouxo sentido de justiça e de solidariedade, espartilhado pelo sectarismo e pelo preconceito. Na prática – quem cala, consente –, enunciando antes um pacto com a injustiça. Nada que espante um grande número de cidadãos com memória das «causas selectivas» apropriadas ou ignoradas pelo PCP ao sabor da sua agenda imediata e da sua astigmática visão de um mundo mais justo e igualitário. Mas convém ir anotando estas situações.
Islão. Passado, presente e futuro, de Hans Küng, é um livro magnífico. Mas deixa no leitor uma certa sensação de ambivalência. O teólogo mal querido da Cúria Romana fala da forma como, no mundo ocidental, após o fim da Guerra Fria se procurou por vezes trocar o comunismo pelo islamismo como representação do mal. Neste âmbito, o desenvolvimento de processos de compreensão do Islão e de laços de entendimento deste com o cristianismo e com o judaísmo parece-lhe imprescindível para evitar um anunciado «choque de civilizações». Produz por isso uma síntese de dimensões históricas e sistemáticas que oferece uma perspectiva ampla e multidimensional do Islão, estimulando uma resposta perante o rastilho de incompreensão e violência que tem vindo a ser ateado. Fá-lo com sabedoria, em nome de um efectivo diálogo inter-religioso que defende desde há meio século. O seu esforço de aproximação acaba, no entanto, por cair numa armadilha, ao alimentar a quimera, comum entre muitos ocidentais, que se traduz em ver nos «intelectuais moderados» do Islão a chave para um compromisso. Na realidade, testemunhos constantes têm revelado a enorme debilidade do lugar desse tipo de pessoas no interior do universo islâmico.
Um excelente contributo para o esclarecimento deste enredo é-nos oferecido no número de Agosto da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. O artigo «Os intelectuais árabes, entre Estados e fundamentalismo», da autoria de Hicham Ben Abdallah El Alaoui, incorpora um notável rastreio da situação e das expectativas de muitos dos intelectuais árabes na sua relação com o mundo actual e com a procura de um futuro mais justo e mais democrático para os Estados autoritários que têm o Islão como religião oficial. Ben Abdallah anota um conjunto de circunstâncias e de perspectivas para as quais vale a pena olhar.
Procurando uma vez mais diferençar-se de Marrocos – desde a pré-época das «matrículas europeias» dos automóveis que nos deu para isto –, Portugal é a partir de hoje «o primeiro país do mundo ocidental a ter uma lei que impõe limites ao teor de sal no pão». De acordo com um diploma aprovado na Assembleia da República com os votos favoráveis de todas as bancadas (à excepção de votos contra do CDS-PP, um do PSD e uma abstenção), produzir e vender pão com mais de 14 gramas de sal por quilo passa a ser punido com coimas até cinco mil euros, se o prevaricador for uma empresa, ou 3.500, se for «pessoa singular». De fora ficam apenas os pães com «nomes protegidos», como a broa de Avintes ou o pão de Favaios. A lei é de tal forma precursora que, como disse ao Público o Prof. Jorge Polónia, da Faculdade de Medicina do Porto, só agora «os norte-americanos estão a debater a possibilidade de introduzir limites do teor de sal por via legislativa». «Estamos a servir de exemplo», orgulha-se também Luís Martins, cardiologista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão.
Nada tenho contra o trabalho mais do que louvável que trata de prevenir as doenças cardiovasculares e o cancro do estômago num país onde se abusa tantas vezes do sal. Mas um país com uma identidade gastronómica, perdoe-se o jargão, que passa justamente pelo uso de um certo tipo de temperos em quantidades bem medidas. Pão com sal não é o mesmo que pãozinho sem sal, como lembra a cultura popular. Tal como o pão da nossa infância não é já esse produto insosso e plástico, moldado na espessura e contido nos sais, que se vende por aí. Como muamba de galinha não é muamba de galinha sem uma boa dose de jindungo, abóbora, cebola e alho. Se, no estado indiano do Rajastão, fosse proibido o abuso culinário da noz-moscada e do açafrão, substituídos por um qualquer «aroma», o crime social não seria maior.
Uma vez mais, os fundamentalistas dos corpos normalizados, da saúde a todo o custo, atacam com a proibição, um expediente fácil para substituir as campanhas sistemáticas e imaginativas de prevenção. Uma medida antidemocrática que impede o cidadão de optar, de livre vontade, entre o tipo de alimentação e de condimento que quer ou não comer (ingerir, dirão «eles»), que deve ou não meter da mão para a boca. Assumindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade da escolha. Eu, por exemplo, convivo hoje com um problema gástrico derivado da leitura compulsiva, associada a um uso incontido, dessa obra-prima da nossa literatura que é a Cozinha Tradicional Portuguesa. E não é por isso que deixo de assumir as minhas responsabilidades nos excessos, ilibando de qualquer culpa a Dona Maria de Lurdes Modesto. De livre vontade gozei o que gozei, para o mal e para o bem, com o grande «prazer da mesa» lusitana que esta gente moralista, reguladora e intrusa pretende que esqueçamos.
Há três dias parei para beber um café e desentorpecer as pernas numa estação de serviço da A2. No restaurante, um pouco acima de um cartaz que anunciava ao preço de 9,55 Euros um prato de macarrão com pedaços de bacon provavelmente atingidos por uma granada de fragmentação, um enorme monitor de LCD espalhava a imagem e a voz de Raul Castro. De farda completa e boné militar, dirigia-se ao cordato parlamento instalado em Havana para anunciar que o seu governo jamais perdoará aos «inimigos da pátria». Assim designa o regime cubano todos aqueles que perturbem a «ordem revolucionária», sejam eles carteiristas reincidentes ou vendedores ocasionais de doces caseiros, blogueiros autónomos ou gays que digam que o são, intelectuais que defendam a liberdade de expressão ou gusanos com dentes de ouro e simpatizantes dos republicanos. Todos iguais, todos «bandidos» que instigam à desordem. Com a voz mais ameaçadora que consegue emitir, o Castro mais novo mostra como se governa em regimes de partido único: ameaçando as pessoas comuns com a voz mais ameaçadora que se consegue emitir, usando os mecanismos da propaganda sem concorrência, mostrando que não pode haver lugar para as razões de quem pensa de forma diferente da única «justa». Mas ninguém levantou os olhos para o ouvir Castro, ali na estação de serviço. Um grupo de turistas chineses ria de alguma coisa. Uma família portuguesa engolia sandes de mortadela enquanto conversava aos gritos. Duas raparigas passavam de mão dada e com headphones nos ouvidos. No aquário, os peixes continuaram em silêncio. Eu bebi o meu café e segui viagem, a pensar em como em Cuba até a indiferença deve doer.
Os antigos administradores do BCP que vão agora a julgamento, acusados de manipulação de dados e de falsificação de documentos – mas «ilibados da acusação de burla», uma subtileza de recorte jurídico cuja clareza talvez por ignorância me escape –, podem até escapar a uma qualquer pena ou ser absolvidos. Por obra e graça de advogados de primeiro escalão, pelo arrastamento do processo nos tribunais ou mesmo por ausência de provas e evidência de boa-fé. Todavia, o Tribunal de Instrução Criminal deixou claro «que os arguidos não pretenderam obter benefícios pessoais ou causar prejuízos ao banco», o que deixa implícito poderem ser de menor gravidade os danos provocados no património dos pequenos accionistas, dos depositantes e da coisa pública. Como seria de esperar, em declarações ao Público, Filipe Pinhal, um dos ex-administradores, vincou muito bem este aspecto. Uma noção de honra pessoal ou de amor a uma instituição – neste caso a um banco, género de sentimento que escapa à minha sensibilidade poética – que se traduz um completo menosprezo pelo interesse comum. Revelá-la desta forma, às claras e sem qualquer vergonha, serve para que não esqueçamos ser esta, independentemente da caução legal que foi sendo associada muitos dos seus actos mais danosos, a lógica mais essencial do, «com vossa licença», capitalismo.
Uns dias longe dos blogues foram suficientes para chegar tarde ao debate sobre a inclusão da Guiné Equatorial nesse quase inútil organismo que responde pelo acrónimo CPLP. Para quem se recuse a ver neste uma simples agremiação de interesses, a proposta – para já adiada, devido a algum mal-estar que levantou em circuitos menos venais, mas que fica em aberto para uma oportunidade que se prevê próxima – é um perfeito absurdo. Não se trata apenas de dar cobertura política a um regime ditatorial que dessa forma compraria alguma credibilidade internacional – mesmo sabendo-se que Angola, um dos seus anfitriões, não constitui propriamente um exemplo de vigor democrático –, mas principalmente de assegurar a entrada de um país sem fundamentos históricos, culturais ou linguísticos que o aproximem minimamente daquilo que os países de língua portuguesa podem partilhar. Tal como acontecerá com outros que pretendem entrar no mesmo processo integrador: a Austrália, a Indonésia, o Luxemburgo, a Suazilândia ou a Ucrânia. Quiçá a Gronelândia (aportada em 1500-1501 pelos manos Corte-Real) ou as ilhas Vanuatu (visitadas pelo explorador Pedro Fernandes de Queirós em 1606), pois dentro de tais parâmetros porque não deixar correr a vertigem e conquistar meio mundo para uma CPLP planetária? Além disso, no caso da Guiné Equatorial, tal entrada consagraria um gesto típico de ditador: a decisão de impor a um povo, por decreto, que uma língua importada se torne «oficial». Absurdo, repito, e inaceitável. Como o é o silêncio de algumas forças políticas portuguesas perante as propostas de Teodoro Nguema Mbasogo, para a revista Forbes o oitavo governante mais rico do mundo. Cegas pelo borbulhar viscoso do petróleo ou comprometidas com propostas vindas de países lusófonos cujos responsáveis não pestanejam quando se trata de trocar os princípios «progressistas», que outrora arvoraram nas suas bandeiras, por dólares ou euros. Muitos milhões de dólares ou de euros.
Falo do que me parece intuitivo, sem dar uma importância maior do que a necessária àquilo que o Senhor Sarkozy pensa sobre a matéria, às suas intenções veladas, às «grandes razões» que invoca. Caminho sobre um assunto tórrido, infelizmente recorrente.
Ao reconhecer a partilha de diferentes práticas, tradições e percepções do mundo num mesmo território, o multiculturalismo impõe a aceitação do diverso e o reconhecimento da sua autonomia. Mas sustenta também a edificação de uma realidade-outra, de uma metamorfose, proporcionada justamente pela convivência que sociabilidades partilhadas permitem e impõem. Na cidade multicultural a vida colectiva resulta da soma das partes e da interacção criadora de cada uma delas com cada uma das restantes mas também com o todo. Por isso, tudo aquilo que acontece nas suas ruas diz respeito a todos: o que cada um de nós mostra, exprime, oferece, existe apenas em nome do conjunto e de um diálogo infinito e criador. Desse processo de recomposição da consciência colectiva e das identidades ao qual se referem, entre outros, o filósofo Charles Taylor e o sociólogo Michel Wieviorka. Por isso ainda, não faz sentido a deriva relativista que tende a definir a integridade do «outro» e a legitimar a todo o custo a sua diferença, insulando-a, empurrando-a para um elogiável ghetto, por muito que esta possa colidir com a forma de estar no mundo dos restantes. Respeitar o outro é assim, e sempre, conviver com ele e com ele ir desenhando pontes, negociando limites. O contrário não é uma paisagem multicultural, mas sim a transposição para as sociedades humanas da lógica territorial da selva ou do zoo.
Penso ser este o cenário diante do qual podemos pensar, de uma forma positiva e razoavelmente dialogante, o problema do «véu islâmico», da sua admissão ou do seu constrangimento, fora ou dentro do seu território real ou supostamente original. Não me refiro ao uso do discreto hijad, que evidencia uma forma de vestir tão legítima e normal quanto qualquer outra, «diferente» em alguns espaços e vulgar noutros como todas as formas de vestir. Nem sequer do mais visível chador, que cobre o corpo mas não o rosto, e permanece ainda como um hábito, não mais indiciador de diferenças de género do que um quimono, um acanhado saiote zulu ou um rotundo decote. Refiro-me sim ao niqab, o véu que cobre todo o rosto, com excepção dos olhos, e da burka, que tapa o rosto, ocultando também os olhos e qualquer forma do corpo que confirme ser este o de uma mulher: aqui é-se mulher não pelo que se vê mas pelo que se supõe estar dentro do que é possível ver-se. E falo apenas destes dois tipos porque representam um obstáculo à construção partilhada de uma ética e de uma experiência multicultural.
Isto acontece, de um lado, porque instalam a desconfiança do outro. Não ver o rosto com o qual nos cruzamos, da pessoa com quem falamos, vê-la apenas através de uma máscara, de um disfarce, de uma gaiola, impossibilita a aproximação, aparta as experiências. No mundo actual, com o ascenso do terrorismo islamita, a situação reforça ainda a desconfiança, o medo, a leitura do outro como um perigo potencial. Segrega, em vez de avizinhar, instalando a clivagem em vez da partilha. Instiga o ódio e aponta justamente à destruição do convívio multicultural. Essa é, aliás, a intenção dos islamitas que pretendem impô-lo à força da lei ou da chibata. Mas o uso do niqab e da burka representa também um obstáculo àquela que é, justamente, um dos objectivos da comunhão planetária da diferença: a afirmação de um relacionamento igualitário entre homens e mulheres. Admiti-lo é pois aceitar, legitimar, uma marca de segregação que não vejo em que se possa fundamentalmente distinguir das sinetas dos leprosos medievais, das grilhetas dos escravos africanos ou da estrela amarela pregada pelos nazis nas roupas dos judeus.
Trata-se de um sinal de submissão ou de subalternidade, de um factor de imposição violenta da diferença, que contraria os fundamentos capazes de gerirem uma sociedade multicultural ou um planeta que tende cada vez mais a ser partilhado por todos. Por isso, onde for possível fazê-lo, deve ser liminarmente afastado da esfera do público. Tal e qual como os castigos corporais, as formas explícitas de tortura e todas as afrontas aos direitos humanos. Sem «ses» ou «mas» de espécie alguma. Negar esta necessidade, ainda que em nome de uma meta política julgada prioritária, não significa «reconhecer a diferença» em abstracto, «aceitar o outro» como ele supostamente «é», mas sim transigir com uma forma particular de opressão e de barbárie. Ser cúmplice, por omissão, dos processo dos quais se servem as «identidades assassinas» para as quais nos alerta Amin Maalouf. Adversárias juradas – em nome de uma «diferença» artificialmente construída e apoiada na manipulação dos sentimentos religiosos – da convivência multicultural e do secularismo, de um mundo mais igualitário, um pouco mais justo. E mais humano, não há que ter medo da palavra.
Não diria que a profissão de ghost-writer é a mais velha do mundo. Parece que essa é outra. Mas será, com toda a certeza, uma das mais antigas: sabemos muitas vezes quem mandou gravar as tabuinhas sumérias, mas jamais conheceremos o nome dos pobres escribas que as produziram. Posso estar enganado, mas por muito ligada a uma genealogia longeva que esta actividade se encontre, ela parece-me particularmente deprimente. Dar forma, ainda que por uma soma razoável, a textos dos quais outros passam por autores, não será com toda a certeza uma experiência apaixonante e boa para a auto-estima. Sabendo, para mais, que muitas das pessoas a quem esse trabalho serve – futebolistas e actores famosos, treinadores da moda, políticos ou jornalistas de renome, cozinheiros consagrados, antigos espiões, gigolôs e socialites com muita lábia, esposas traídas ou ex-amantes com sentido de oportunidade – jamais teriam o engenho e a arte suficientes para assinarem um volume legível com mais de cinquenta páginas de memórias ou revelações ruidosas.
Trata-se, no entanto, de uma actividade legítima, e é a ela que, a propósito do novo filme de Roman Polanski, o quinzenário JL dedica o pequeno dossiê que vem com o número chegado hoje às bancas. Por momentos animei-me e comprei um exemplar, julgando que ali pudesse ser abordado também – penso que tal seria uma obrigação de um jornal «de Letras, Artes e Ideias» com responsabilidade cívica e cultural – um lado bem menos lícito, e claramente imoral, dessa actividade que tem vindo visivelmente a crescer. Refiro-me àquele protagonizado pelos escritores-fantasma que compõem romances inteiros ao mesmo tempo que vendem a alma a supostos fazedores de «best-sellers», figuras ufanas na sua condição de «escritores» que nunca o foram. Ou, pelo menos, nunca o foram «daquela» maneira exibida e laureada. Não pedia rostos, não esperava por nomes, não queria que mencionassem casos – sei que, quando há muito dinheiro envolvido, a lei, não necessariamente justa, é sempre mais célere, e além disso não será fácil nestes casos obter provas – mas parecia-me devida a mera menção, num tema como este e que ali se pretendia inventariar, deste triste prodígio contemporâneo. Fui ingénuo: o assunto permanece tabu e o JL não gosta, como nunca gostou, de parecer inconveniente.
A palavra vilipêndio quase desapareceu do nosso vocabulário. Chegou do latim vilipendĕre, composto de vilis, vil, e de pendĕre, considerar, estimar. Exprime uma atitude de menosprezo em relação a alguém. Quando tornada pública, deprecia a pessoa a quem se aplica. Não se limita a expor divergências, a contrariar opiniões: aplica-se ad hominem, contra a pessoa, servindo-se discricionariamente das palavras ou dos juízos que a possam diminuir perante os outros. Neste caminho, o vilipêndio é insulto e difamação, pois não existe qualquer intenção argumentativa. O objectivo é um só: apoucar, amesquinhar, retirar ao outro qualquer estatuto de dignidade. No limite, procurar que este perca todo o crédito, de modo a que se torne fácil isolá-lo, silenciá-lo, escondê-lo, fazendo com que muitas pessoas, honestas mas desavisadas, se recusem a lê-lo ou a ouvi-lo. «Ah, aquele tipo! Um sacana!».
Não se trata de uma prática recente, obviamente, mas ganhou maior destaque social a partir de Oitocentos. Associada à explosão da imprensa periódica pôde então ampliar o seu efeito, servindo muitas vezes para arruinar carreiras, motivar processos judiciais, forçar duelos com um final pouco feliz. O novo meio ajudou aliás a «impessoalizar» o vilipêndio, uma vez que o seu autor passou actuar por detrás de uma cortina, ou de uma almofada, fornecida pela publicação que acolhia os ataques pessoais. Já no século XX, os servidores dos sistemas totalitários e os sectores políticos que se presumiam detentores da verdade, fosse ela «histórica» ou «científica», recorreram de um modo sistemático a este processo, apoiados na impunidade que os sistemas lhes ofereciam e na impossibilidade de exercício do contraditório.
Na antiga União Soviética, o método foi aperfeiçoado e usado de forma contínua a partir do final da década de 1920, fundando-se nele o processo de diabolização e de apagamento de figuras que tinham sido determinantes na própria construção do poder bolchevique, como Trotsky, Radek, Zinoviev, Kamenev ou Bukarine. No Portugal de Salazar como no Chile de Pinochet, qualquer opositor era «comunista». Na Cuba do presente todo o acusado de dissídio é publicamente rotulado de «agente da CIA» ou, no mínimo, de «anti-social». E mesmo na Europa democrática o método foi recorrentemente aplicado na tentativa de isolamento e diminuição de figuras num dado momento consideradas pouco ortodoxas, como Léon Blum, George Orwell, Albert Camus, Hannah Arendt e Raymond Aron, cuja «lenda negra» ainda hoje perdura em alguns ambientes, tal o volume, a constância e o impacto das injúrias e manipulações das quais foram objecto.
Raramente personalizo as críticas mais extremas. Interessa-me sempre contestar actos ou ideias dos quais divirjo, ou que me repugnam, não tanto agredir directamente as pessoas que lhe dão rosto. Salvo no caso destas, pela sua evidente dimensão pública, serem confundidas com as concepções ou princípios dos quais discordo. Mas nenhuma destas duas possibilidades ocorre no caso do padre Gonçalo Portocarrero de Almada, «licenciado em direito e doutorado em filosofia» e vice-presidente da Confederação Nacional das Associações de Família. Nos textos da sua autoria que regularmente saem no Público não há ideias das quais divirja, mas apenas enunciados recorrentes de ódio e de cegueira. Daí tornar-se impossível dialogar com as suas posições ou dar-lhes sequer uma dimensão que transcenda a esfera da atitude individual despropositada, difícil até de aproximar daquelas que, no interior das mesmas barricadas nas quais ele se entrincheira, pessoas mais ponderadas e argumentativas são capazes de expressar.
Portocarrero é um ultramontano primário – neste caso o pleonasmo é justificável – que se crê predestinado a endireitar o mundo, nem que para tal seja necessário enfiar umas boas bordoadas verbais em que, na sua opinião, o faz torto. Não se limita a combater o uso de métodos contraceptivos, a interrupção voluntária da gravidez, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade, o ateísmo, o divórcio, o socialismo ou a esquerda. Todos identificados com o mal mais absoluto. Terá como guia, sem dúvida, o arcaico Syllabus da encíclica Quanta Cura, onde em 1864 o papa Pio IX enumerou os «80 principais erros do nosso tempo». Entre muitos outros, o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, o indiferentismo, o liberalismo, o socialismo, o comunismo, a defesa da imperfectibilidade da Igreja, a separação desta em relação ao Estado, o laicismo, o questionamento do carácter sagrado do matrimónio ou «a civilização moderna». Segundo o padre Portocarrero, para os ímpios que persistem no erro ou no desvio, não há salvação possível e não há comunicação a estabelecer, considerando até condenável que os «verdadeiros cristãos» com eles aceitem dialogar sem a necessária firmeza.
Na sua cólera insana e ininterrupta, atira-se agora à memória de José Saramago. Proclama de início um farisaico «paz à sua alma», admitido apesar das «reincidentes irreverências literárias» do escritor. Mas logo o surpreende que «em ocasiões desta natureza, entre as carpideiras habituais do regime laico, se oiçam também algumas lamentações cristãs», vindas dos «fiéis politicamente muito correctos fazem questão em homenagear a ‘coerência’ do defunto». Contra estes, afirma então que «a ‘coerência’ no mal não é virtuosa, mas defeituosa e, nesse caso, o único comportamento moral digno de louvor é, obviamente, a rejeição do mal e a opção pela verdade e pelo bem». Ajuntando que «se errar é humano, perseverar obstinadamente no mal é diabólico». No final do artigo, comete a suprema ignomínia de insinuar desejos para o que julga dever ser o futuro de Saramago perante o tribunal da eternidade: «Queira Deus que não tenha comparecido impenitente ante a Face que perdoa os contritos de coração». Nesse caso, esperá-lo-iam umas merecidas e convenientemente excitadas chamas do Inferno. Um triste espectáculo de obscurantismo e de pulhice humana em forma de letra. Em pleno ano de 2010 d.C.