Arquivo de Categorias: Opinião

O fantasma de Jdanov

Jdanov

A reunião de Hugo Chávez com «intelectuais socialistas e revolucionários», destinada a atenuar o impacte de um encontro internacional sobre liberdade e democracia a decorrer ao mesmo tempo em Caracas, por causa do qual Mario Vargas Llosa ficou retido e foi enxovalhado em pleno aeroporto da capital venezuelana, faz, pelo simples facto de afastar, enquanto intelectuais, essas pessoas das «outras», ecoar ideias velhas e perigosas. Evocar tempos sombrios que saltam do além-túmulo para atemorizarem os vivos. A possibilidade enunciada de existir quem possa pensar, escrever, falar, representar, pintar ou filmar de um modo objectivamente «patriótico», «socialista», «revolucionário» – ou mesmo «proletário», como se tentou noutros lugares –, naturalmente situada num lugar privilegiado de acesso ao poder «revolucionário» e às honrarias destinadas aos melhores cidadãos, abre sempre as portas a um universo monolítico e carcerário. Ao qual, pela menorização social e pelo castigo objectivo determinado pela sua diferença, são confinados todos os que se atrevam a pensar à margem do paradigma celebrado. Mesmo aqueles que pisem, solitários e sem programa político visível, o seu próprio caminho. Os autoproclamados «intelectuais socialistas e revolucionários» deveriam ser os primeiros a percebê-lo – para mais com a experiência histórica do seu lado –, recusando aceitar o estatuto de casta ou servir de tropa de choque. Mas preferem acobardar-se, vestindo a camiseta vermelha e tomando-se por valentes.

    Atualidade, Democracia, Memória, Opinião

    Pela igualdade

    MPI

    Fui uma das cerca de 800 pessoas que subscreveram inicialmente o documento fundador do MPI – Movimento pela Igualdade no acesso ao casamento civil. A apresentação pública do manifesto teve lugar neste domingo. Pode conhecê-lo e assiná-lo também aqui. Transcrevo o parágrafo final, aquele que define a meta mais essencial deste esforço.

    O acesso ao casamento civil por parte de casais do mesmo sexo, em condições de plena igualdade com os casais de sexo diferente, não trará apenas justiça, igualdade e dignidade às vidas de mulheres e de homens LGBT. Dignificará também a nossa democracia e cada um e cada uma de nós enquanto cidadãos e cidadãs solidários/as – e será um passo fundamental na luta contra a discriminação e em direcção à igualdade.

      Atualidade, História, Olhares, Opinião

      Foucault lido às avessas

      Classroom

      Os professores reduzidos à condição de robôs palermas ou indigentes mentais: «Não devem decorar as instruções ou interpretá-las, mas antes lê-las exactamente como lhes são apresentadas.» Os alunos tratados como soldados instruendos em sádicas sessões de ordem unida: «Agora vou distribuir as provas. Deixem as provas com as capas para baixo, até que eu diga que as voltem.» Ou então: «A primeira parte da prova termina quando encontrarem uma página onde está escrito PÁRA AQUI!» Fiz todos os meus exames do secundário na década de 1960 – incluindo neles as temidas provas de «admissão ao liceu» e de «aptidão à universidade», vigiadas por professores de porte austero e fato completo – e jamais observei tal obsessão com a rigorosa sequência dos rituais e o controlo dos corpos. Michel Foucault lido às avessas pelos seres andróides do Ministério da Educação. «Podem sair. Obrigado(a) pela vossa colaboração!» Ler para crer.

        Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

        O silêncio dos culpados

        Silent TV

        O episódio televisivo que envolveu na passada 6ª feira, durante o telejornal nocturno da TVI, a jornalista Manuela Moura Guedes e o bastonário António Marinho Pinto, não foi um acontecimento banal ou passageiro. Pode dizer-se, sem hipérbole, que em 35 anos de democracia, raras vezes se viu verbalizada uma acareação tão directa de critérios acerca do modo de informar e de fazer jornalismo. Concorde-se ou não com o estilo ou com algumas das atitudes públicas de Marinho Pinto – e eu discordo de muitas –, a verdade é que este, servindo-se na perfeição da mesmíssima estratégia retórica, e da mesmíssima agressividade, habitualmente utilizadas pela sua entrevistadora, questionou ali com frontalidade a transformação sistemática do trabalho informativo num libelo acusatório lançado sobre quem se entrevista ou sobre muitas das pessoas às quais se refere.

        Bastante mais significativo que o episódio em causa é, porém, que um tal momento de televisão – no qual, aliás, escorreu esse «sangue» tão ao gosto de um jornalismo que tem vindo a fazer escola e do qual Moura Guedes é um dos rostos mais conhecidos – esteja a correr na blogosfera à velocidade da luz enquanto é completamente ignorado pelos jornais nacionais e pelas televisões. O néscio e «bigbrotheriano» corporativismo jornalístico que está por trás desta exclusão, silenciando ou minimizando os argumentos de quem ousa discutir critérios e estilos no modo de informar, é um perigo para a democracia. Deve ser uma causa nossa denunciá-lo e combatê-lo.

        Adenda: Ao fim de mais de 48 horas, um ou outro jornal refere finalmente, embora apenas a título informativo, o episódio Guedes-Pinto. Prova provada de que vale a pena mexer na ferida.

          Atualidade, Opinião

          A flor na lapela

          Manuel Alegre

          Assistimos na noite passada, à hora de jantar e praticamente em directo, ao fim da carreira de Manuel Alegre. À morte política, em vida, de uma dos últimos protagonistas da fase construção do nosso Estado democrático. A anunciada automarginalização dentro do Partido Socialista é, naturalmente, uma escolha dele. É lícita e será até compreensível. Se fosse alguns anos mais novo talvez tentasse ainda uma outra saída, mostrasse um outro arrojo, mas é provável que agora não se sinta já com força e ânimo para recomeçar do zero com base num projecto cheio de intenções tão boas quanto vagas. Para mais, um projecto politicamente inócuo que deveria obrigatoriamente transportar às costas. Mas já me parece de uma inocência inaceitável, revelada por diversos comentadores políticos – e, eventualmente, partilhada pelos próprio Alegre e por muitos dos seus apoiantes -, que se pense sequer na possibilidade real de o vermos transformado numa espécie de «reserva moral» para nas próximas eleições presidenciais derrotar o candidato da direita.

          Quem está atento a tudo aquilo que dentro do PS se tem escrito, dito e feito para isolar e contrariar Alegre e os seus próximos, sabe que a esmagadora maioria do aparelho partidário, aquela que já se formou numa intervenção política meramente pragmática e pós-ideológica, é visceralmente «alegrofóbica» e tudo fará para frustrar essa possibilidade. Alegre não deverá ser candidato presidencial pelo PS, mas, se por um conjunto de circunstâncias muito especiais o vier a ser, estará derrotado à partida pela aversão e pelo demissionismo das estruturas formais dos próprios socialistas. Quanto à ideia de meter três ou quatro simpáticos alegristas no Parlamento, a concretizar-se ela constitui, evidentemente, um bombom oferecido por Sócrates para acalmar as hostes do MIC e conter a deslocação de uma parte do seu eleitorado natural para o score do Bloco de Esquerda ou para a abstenção. Uma flor na lapela do cinzento casaco socialista, nada mais.

            Apontamentos, Opinião

            Audácia precisa-se

            aborrecimento

            Sublinho aqui, a traço grosso, o recente post de Joana Lopes a propósito das limitações de um sistema político que gira apenas à volta de duas categorias ultrapassadas (e não necessariamente antitéticas): «bloco central» e «maioria absoluta». Discursos desvitalizados como o do «inenarrável» Vitalino Canas, ou, pior ainda dadas as anteriores responsabilidades e o passado do seu autor, o mais recente adoptado por Jorge Sampaio, caminham no sentido contrário ao da ousadia da procura e do apelo à capacidade para pensar novos caminhos, para os cruzar, para os associar a um esforço, duro mas imprescindível, de mobilização dos cidadãos para a resolução de problemas comuns. Justamente aquilo que este tempo, de crise generalizada e desinteresse pela coisa pública, tanto requer. O post fecha proclamando a necessidade dramática de «arrojo, audácia, tenacidade». Concordo e subscrevo sem a menor hesitação. Só que com os actores que temos será difícil sair do actual estado de sonolência e aborrecimento.

              Atualidade, Opinião

              Só para começar

              A murro

              Não vem ao caso qualquer simpatia pessoal por Vital Moreira, na realidade nenhuma. Ou a concordância com alguma das suas sucessivas posições públicas, que por acaso nunca ocorreu. Ou o gosto que possa ter em ler os seus longuíssimos textos de opinião, que quase sempre me provocam algum tédio. Como não vem ao caso a infeliz escolha do PS ao designar como cabeça de lista às eleições europeias alguém cujo pensamento político é sinuoso e demasiado imperativo, e cujo estilo é claramente incapaz de agregar empatias. Mas não me é indiferente a forma como os seus direitos enquanto cidadão eleitor e elegível, a sua liberdade de circulação, a sua honorabilidade, e até a sua integridade física, foram ontem colocados em causa, quando do desfile do 1º de Maio organizado pela CGTP, por uns quantos energúmenos cujas simpatias políticas não serão difíceis de estabelecer (aquele repetido epíteto de «traidor» revela-as sem equívocos).

              Claro que a direcção do PCP não pode ser responsabilizada pelos desacatos que simpatizantes ou militantes seus possam provocar no pleno uso da sua exaltação e da mais-do-que-declarada ausência de respeito pelas escolhas dos outros. Mas já é responsável – e esta é agora a questão que realmente importa – por não fazer pedagogia democrática ensinando aos seus indefectíveis prosélitos, antes e depois do episódio, que em sistemas políticos multipartidários existe, ou deve existir, um direito irrevogável ao exercício de opinião e à mudança de perspectiva. Bem como regras de convivência. Nestes casos, quem cala ou assobia para o lado, quem desculpabiliza, consente, e afinal todos sabemos como no país ideal que a generalidade dos quadros e militantes comunistas tem na cabeça a voz do adversário e, mais ainda, a do apóstata, deve ser emudecida. Só para começar. Não é novidade alguma, mas convém relembrar de vez em quando.

                Atualidade, Opinião

                Palavras públicas (sobre o Twitter)

                Notificador

                Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.

                Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.

                Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.

                  Apontamentos, Cibercultura, Memória, Olhares, Opinião

                  O Largo

                  Forgive| Never

                  Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.

                    Atualidade, História, Memória, Opinião

                    O senhor da previdência

                    Eric Hobsbawm

                    Quase a perfazer 92 anos, Eric Hobsbawm mantem-se mais desperto e capaz de pensar de forma crítica e controversa do que muita gente avisada e previsível que circula por aí cheia de vigor e em condições de percorrer três quilómetros matinais em passo de corrida. Só agora li «Socialism has failed. Now capitalism is bankrupt. So what comes next?», o seu artigo publicado há alguns dias no Guardian. Não oferece uma resposta para a pergunta que coloca? Pois não oferece, não senhor. Só que o primeiro passo para escolher um percurso a seguir consiste sempre, antes ainda de se meterem as solas à estrada, em perceber que ela pode existir. E em procurar o seu norte magnético. Chama-se a isso previdência.

                      Atualidade, Olhares, Opinião

                      Contem-nos coisas de Cuba

                      Cuba Libre

                      É bem triste «La Revolución» não aguentar palavras que apenas irradiam uma perspectiva do mundo diferente da arremessada pelos artigos hiper-saudosistas, caluniosos ou ameaçadores do Granma e do Juventud Rebelde. O cerco americano a Cuba, que Obama começa agora gradualmente a levantar, sempre me pareceu uma medida injusta e desnecessária, resultado de uma política externa míope e influenciada pelos «gusanos» um tanto ressabiados de Miami, mas o cerco interno, praticado na ilha, à liberdade de opinião de quem é visivelmente desalinhado do discurso oficial, não é menos injusto e injustificado. Para além de um tanto paranóico. Que a havanesa Yoani Sánchez tenha de publicar o seu primeiro livro de crónicas em Itália é um sinal desse desajustamento.

                      Es abril y no hay mucho que hacer, solo mirar desde el balcón y confirmar que todo sigue como en marzo o en febrero. La Plaza de la Revolución -un pirulí truncado que asustaría a cualquier niño- domina los bloques de concreto de mi barrio. Frente a mí, dieciocho pisos de hormigón llevan el cartel de Ministerio de la Agricultura. Su tamaño es inversamente proporcional a la productividad de la tierra, así que me dedico a mirar con mi catalejo las oficinas vacías y sus ventanas rotas. Vivir en esta zona “ministerial” me permite interrogar los altos edificios desde los que salen las directivas y resoluciones para todo el país. Manías de orientar el lente y pensar “ellos me observan, pues yo también los observo a ellos”. De esas inspecciones con mi telescopio azul he sacado bien poco, la verdad, pero una impresión de inercia traspasa el cristal y se cuela a través del hormigón de mi edificio modelo yugoslavo.

                        Apontamentos, Atualidade, Opinião, Recortes

                        Um sentido para a esquerda

                        Nuages

                        Publicado originalmente na revista LER de Março

                        Celso Cruzeiro é reconhecido principalmente pela sua actividade como advogado e por ter sido um dos rostos principais da «crise estudantil» coimbrã de 1969. Conhece-se-lhe o activismo constante em alguns dos combates da esquerda geralmente não-alinhada, bem como o interesse por uma leitura interpretativa dos episódios de militância pelos quais passou, mas era-lhe até agora ignorado o gosto persistente e actualizado por uma reflexão teórica aprofundada sobre as circunstâncias, as coisas e as causas da esquerda. Este A Nova Esquerda retoma no título a designação utilizada para definir politicamente alguns dos movimentos radicais das décadas de 1960-1970, mas nem por isso se ocupa em excesso com uma busca retrospectiva das referências que naquele tempo moldaram o percurso do autor. Ao invés, a actualização das leituras e dos debates aos quais este se reporta conferem ao livro uma dimensão exemplar, rara entre nós, de adequação do reconhecimento da mudança do mundo ao pulsar mais contemporâneo do pensamento crítico e da intervenção política.

                        Esta é, no entanto, uma daquelas obras das quais é habitual dizer-se que valem pelo todo. Não é possível lê-la de forma fragmentada, pois resultaria quase indecifrável um discurso erudito que não se compraz com sublinhados ocasionais. Trata-se de facto de um texto denso, consistente, resultante de um trabalho aturado de cerca de treze anos, através do qual Celso Cruzeiro conduz o leitor por quatro inquietações com correspondência noutros tantos capítulos. A primeira delas diz respeito à busca de um sentido, no domínio da epistemologia das ciências e da reflexão filosófica, para um mundo que hoje, mais que nunca, se revela instável e desconforme os grandes sistemas explicativos da modernidade colapsados a partir do segundo pós-guerra. A segunda ensaia um trabalho de compreensão da realidade actual do capitalismo, da renovação das suas vias e métodos, das consequências da ordem injusta que materializa para a vida das pessoas comuns. A terceira inquietação prende-se com a busca de indícios que permitam entrever a construção de uma teoria revolucionária capaz de fazer frente às novas realidades, à desesperança e às carências impostas pelo actual processo de mudança histórica. E, por fim, o quarto problema conduz o autor ao vasculhar das consequências mais nefastas da presente ordem económica mundial e do aparecimento de algumas das vozes e das tendências capazes de lhe fazerem frente no terreno.

                        Quando, a dado momento, recorre à voz do economista e filósofo neoliberal Friedrich von Hayek onde este declara não existir actualmente «critério algum através do qual nós possamos descobrir o que é socialmente injusto», Cruzeiro aponta justamente para o inverso: para a necessidade de perceber as causas da injustiça de modo a que se torne possível combatê-la e aniquilá-la. Uma obra marcada, por isso, mais pela esperança que pelo desencanto.

                        Celso Cruzeiro (2008). A Nova Esquerda. Raízes teóricas e horizonte político. Porto: Campo das Letras – Âncora Editora. 250 págs.

                          Música, Opinião

                          Resgate e redenção

                          Israel

                          Por onde quer que distribuam a sua acção e a sua influência, é própria de todas as religiões – mesmo das seculares – a vontade de determinar um ethos, identificado com o bem comum e a moral individual, capaz de justificar a prescrição de certas atitudes e a proscrição de outras. As religiões do livro em particular, todas elas, têm séculos de experiência neste campo. E é nesta tradição que se pode encaixar a actividade da organização não-governamental israelita JONAH – Jews Offering New Alternatives to Homosexuality – que procura prevenir e actuar sobre pessoas que sintam «atracção por outras do mesmo sexo». Como sempre, a intenção declara-se benévola: aliviar o tormento de quem sofre a sua «anormalidade», bem como o dos entes queridos destas pessoas, que com elas têm de partilhar esse lado «triste» e doloroso da vida. Afinal, declara na página oficial da JONAH o rabi Shmuel Kamenetsky, «nada existe que a Torah proíba e o ser humano não seja capaz de controlar.» Mudando de hábito de acordo com o lado onde nasce o sol, esta gente vive num mundo cerrado que roda a uma velocidade lenta, mas nem por isso deixa de procurar impor onde pode um perigoso higienismo.

                            Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                            Whadda mistaka da maka!

                            Bertorelli

                            Não deixa de ser curiosa a forma como um certo tipo de glosador da realidade circundante – da mesma espécie que correu em passo acelerado a acusar o Bourbon madrileno de sobranceria quando este sugeriu publicamente a Hugo Chávez que simplesmente deixasse os outros falarem -, ignore agora, ou refira só de raspão, a frase pronunciada por Isabel de Inglaterra quando esta se espantou, durante a régia recepção aos políticos do G20, com o tom vagamente tumultuoso, ou no mínimo alterado para o ambiente tranquilo do Palácio de Birmingham, da voz do cavaliere Berlusconi. Como este não é Chávez, agora o escândalo morreu à nascença e os exaltados de serviço deixaram as acusações no saco. O que até é injusto, dado fazer todo o sentido estranhar-se que uma figura como Isabel II ignore os traços dominantes de um dos personagens centrais de Allo, Allo!, uma das melhores séries de comédia para a televisão produzidas no interior dos seus reais domínios. Refiro-me ao sonoro Capitão Bertorelli, obviamente, que o estrepitoso Don Silvio descaradamente plagia.

                              Atualidade, Opinião

                              Cuba Sí, pero…

                              Fidel e Camilo Cienfuegos
                              Fidel e Camilo Cienfuegos

                              Alguns dos factores que no início da década de 1960 transformaram a revolução cubana e os seus rostos salientes – um Fidel persistente e carismático, o efémero mas decisivo Cienfuegos, um Che em breve tornado imortal – num factor de atracção e de romântico entusiasmo para toda uma geração de europeus ocidentais e de nascidos nas Américas que incluía intelectuais e revolucionários, mas também muitas pessoas pouco politizadas, parecerão hoje algo paradoxais. Sobretudo se observarmos aquilo em que Cuba se transformou e se identificarmos o perfil político daqueles que hoje ainda defendem sem hesitações o regime que governa o país. Essa atracção e esse entusiasmo advieram, justamente na época em que os partidos comunistas começavam a perder o pé junto de alguns dos sectores mais dinâmicos da esquerda ocidental e de uma nova geração de estudantes e de trabalhadores, do facto de os revolucionários da ilha de Martí parecerem evidenciar uma acentuada ruptura em relação à cartilha ideológica proposta a partir de Moscovo e à imagem cinzenta, gerontocrática, fornecida pelos rostos que, da tribuna do Kremlin, zelavam diariamente pela sua preservação.

                              À deriva proto-nacionalista de grande número de partidos e organizações comunistas tradicionais, ao esgotamento do padrão de sociedade que estas erguiam como paradigma, ao impacto perturbador da invasão da Hungria pelos soviéticos e das revelações de Kruchtchev no XX Congresso do PCUS, contrapunha-se a emergência de um novo e polissémico universo de expectativas que os agora renovados movimentos sociais reivindicavam, e que os barbudos cubanos, jovens, informais, arrebatados e com os olhos no futuro, com Fidel à cabeça, pareciam materializar. Não por acaso, os insubmissos cubanos, bem como os seus primeiros e incondicionais apoiantes – com Sartre, já então saído do PCF, à cabeça – foram vistos de início com muita desconfiança pelos mesmos partidos comunistas que então, é bom não esquecer, denunciaram o «aventureirismo guevarista». Hoje deparamos com a inversão destas atitudes de afeição e de desconfiança: politicamente insulada, a «revolução cubana» viria a fixar-se nos modelos de autocelebração que originalmente repudiara. Por sua vez, privados das anteriores referências fundacionais, alguns partidos comunistas passaram a erigir como modelo o regime que um dia olharam com desconfiança ou mesmo com animosidade. A História faz-se de factos, por muita reescrita que a possa envolver, mas nela a Revolução Cubana terá sempre um lugar de destaque.

                                História, Memória, Opinião

                                N’Gola ritmo

                                Angolanos

                                A propósito da visita a Portugal de José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA e chefe supremo da clique cleptocrática que neste momento dirige um grande país onde a democracia, a transparência e o respeito pelos menos protegidos tardam em chegar, parece-me aceitável a posição do governo recebendo educadamente o chefe de Estado angolano e tratando com ele de uma forma normal. Afinal, com mais de 100.000 portugueses a trabalharem em Angola e muitas centenas de empresas e instituições envolvidas em negócios e projectos, com a grande tradição cultural e (assumidamente) histórica partilhada pelos dois países, seria de uma irresponsabilidade total insistir no carácter não-democrático e corrupto do poder instalado em Luanda voltando as costas aos seus circunstanciais porta-vozes. Mas é também justa a posição do Bloco de Esquerda ao recusar participar na parte teatral da visita: não estando no poder, o Bloco pode assumir uma atitude de princípio que exprime, tenho a certeza, aquilo que a maioria dos portugueses verdadeiramente pensa. Não faz sentido, pois, a rábula de Vital Moreira referindo-se à atitude frontal dos bloquistas como «falta de sentido de Estado». Nem, uma vez mais, o silêncio conivente do PCP, que não precisa de mostrar «sentido de Estado» mas ainda pensa o MPLA como uma espécie de «partido-irmão» subtropical que é necessário proteger.

                                  Atualidade, Opinião

                                  Onde fica a revolução?

                                  Onde fica a revolução?

                                  De acordo com um artigo publicado há menos de um mês no The Economist, e devido sobretudo ao rápido crescimento dos chamados países emergentes, pela primeira vez na História mais de metade da população mundial é composta por pessoas da classe-média. Mesmo vivendo em numerosos casos com dificuldades, pessoas que dispõem de automóvel, conta bancária, cartão de crédito, telemóvel, muitas vezes casa própria. Os «partidos da classe operária» estarão assim, por imposição da realidade, condenados a tornarem-se partidos de trincheira, exilados na nostalgia de um mundo que se perdeu e na recusa de um presente que lhes foge. Esperando que tudo piore e as chaminés voltem a fumegar, espalhando limalha e extremando atitudes, para poderem retomar o seu caminho redentor. Marx «regressa» na pior altura.

                                  Créditos: JCN, através do Twitter

                                    Atualidade, Opinião

                                    O espectro de Lippe

                                    Disciplina

                                    Numa reportagem da RTP1 pergunta-se a um «pupilo» do Colégio Militar: «Fizeste os exercícios porque te obrigaram ou foi para exceder os teus limites?» A infâmia da pergunta imbecil e a presunção da resposta condicionada não merecem sequer um comentário, mas o caso que motivou a peça deve ser olhado com alguma atenção. Ele veio relatado no Expresso deste sábado e conta-se em poucas palavras. Um aluno de 17 anos foi condenado a quatro meses de prisão por maus-tratos a um colega de nove, mas a pena foi depois anulada pelo Tribunal da Relação que considerou adequado o castigo aplicado ao menor: palmadas no pescoço, flexões, abdominais, saltos de cócoras e posição de Cristo (de pé com os braços abertos). A vítima, um aluno hiperactivo, acabou por sair do Colégio, tendo os pais apresentado a queixa que conduziu a situação a tribunal. A Relação acabou por acolher o argumento de um antigo director da instituição, segundo o qual «apesar de não estar inscrito no regulamento, é habitual as faltas menos graves serem sancionadas pelos graduados com exercícios físicos». «Graduados» podem ser aqui, assinale-se, simplesmente alunos mais velhos, que assim adquirem informalmente o direito de exerceram formas de violência física sobre os novatos. A notícia refere ainda inúmeros casos de agressões, algumas delas, as mais graves, apenas associadas a ligeiras sanções internas.

                                    Trocando isto por miúdos: um tribunal português aceitou castigos físicos praticados entre alunos do Colégio Militar como actos lícitos. Numa altura em que, finalmente (e felizmente), nas instituições de ensino superior os abusos das «praxes» começam a ser prevenidos e punidos, é no mínimo espantoso que este tipo de práticas, brutais, arcaicas e perigosas, possa sobreviver numa instituição de ensino. A aprendizagem da disciplina no trabalho e na vida faz parte de um bom processo educativo – obviamente mediada, no meio paisano como entre os militares, por condições de razoabilidade e de protecção dos direitos individuais – mas tal não pode significar a admissão do abuso de poder e da violência como «prática pedagógica» normal. Sob pena de continuarmos a formar – neste caso, de continuar o Colégio Militar a afeiçoar a este mundo – disciplinados monstrozinhos. Diz o actual director que «onde há rapazes, há sempre bulhas». O problema começa quando se considera que a suposta «naturalidade da violência» – temos aqui um director hobbesiano, nitidamente – possa ser enquadrada como instrumento normal de uma boa prática educativa. Foi o prussiano Conde de Schaumburg-Lippe quem entre nós, de 1762 a 1764, procurou associar, codificando nesse sentido os procedimentos disciplinares castrenses, a sageza militar à brutalidade dos castigos físicos e vexatórios. Mas isso aconteceu há perto de 250 anos atrás e entretanto o mundo deu umas voltas.

                                      Atualidade, Opinião