No prefácio a uma edição recente de Renaissance Self-Fashioning, o historiador da cultura (e não só) Stephen Greenblatt conta um episódio curioso ocorrido em Berkeley no ano de 1975. Michel Foucault, que acabava então de publicar o seu Surveiller et Punir, encontrava-se naquela universidade para leccionar um seminário semestral organizado pelo Departamento de Francês e divulgado aos potenciais interessados como sendo sobre a obra de Émile Zola. Greenblatt tinha pouco interesse por Zola, mas muita vontade de ouvir Foucault, e por isso inscreveu-se no referido seminário. No entanto, ao longo de todo o semestre, o filósofo não mencionou uma única vez o seu compatriota romancista. As sessões foram todas sobre o conceito de penitência na história da Igreja católica medieval, o que não parece ter caído mal em qualquer um dos inscritos. Na Europa à bolonhesa que nos cabe agora na rifa, com tudo previsto e aprovado para valer «créditos» destinados a oficializar «competências», esta sorte de golpe-de-rins já quase parece impossível.
Sinceramente, começo a ficar um tanto farto de passar por tanto blogue que refere repetidamente, explícita ou implicitamente, a beleza da Joana Amaral Dias, a difícil relação do Bloco de Esquerda com a beleza da Joana Amaral Dias, a ligação directa entre a beleza da Joana Amaral Dias e a sua maneira de actuar no combate político. Perorando nos intervalos sobre a fealdade ou as rugas de uma ou outra mulher politicamente empenhada. Os jornais e a televisão têm demonstrado, ao menos nestas matérias, e talvez porque por eles circula uma percentagem muito maior de mulheres, um pouco mais de pudor. Porque não discorrer também sobre a forma como a feiura de João Ratão de certos políticos, sindicalistas e outros homens públicos prejudica a empatia com muitos cidadãos, polui o microclima visual maltratando a nossa qualidade de vida, desfeia horrivelmente o outdoor da rotunda ou o recanto da televisão? Será assim tão importante insistir nesse pormenor do requebro e do busto? Para os sexistas, é. E o sexismo é ainda quem mais ordena neste alegado paraíso democrático em linha. Mesmo entre muitos daqueles gauchistes que por aqui declaram a pés juntos combatê-lo. A Joana Amaral Dias é uma mulher muito bonita, é sim senhor(a). Mas isso agora não interessa rigorosamente nada.
Num acesso de extremo ridículo, o Expresso compara a saída de Joana Amaral Dias da direcção do Bloco de Esquerda a uma purga à maneira de José Estaline. E para ilustrar o absurdo – num apontamento que intitulou de um modo supostamente irónico «Do passeio no Volga à Convenção do Areeiro» – nada melhor que relembrar a recorrente prática estalinista de fazer desaparecer dirigentes dos lugares que ocupavam no Partido, na vida e na história, ilustrando a referência com uma conhecida imagem manipulada na qual ocorreu o apagamento de Nicolai Yezhov, desta maneira apresentado como um mártir da liberdade. Saberá o relator anónimo de tal apontamento quem era o seu momentâneo herói Yezhov, mais conhecido por «o Anão», Comissário do Povo para os Assuntos Internos e responsável entre 1936 e 1938 pela chamada «Yezhovschina», a fase mais aguda do Grande Terror durante a qual centenas de milhares de comunistas e de quadros do Estado soviético foram torturados, executados ou, com um pouco mais de sorte, condenados a um exílio siberiano geralmente sem retorno? Yezhov ousou a dada altura chantagear figuras próximas do «Pai dos Povos» – começara mesmo a reunir material para chantagear o próprio Estaline – acabando por ser substituído pelo nosso bem mais conhecido Lavrentiy Beria. Foi executado em 1940. A analogia estabelecida pelo «semanário de referência» é demasiado absurda para parecer cómica. O Bloco lá terá os seus defeitos, mas não consta que Joana Amaral Dias tenha saído aos empurrões e sido enviada para uma abjecta masmorra. Ou apagada, credo!
A forma como vejo a proibição de entrada no Reino Unido de Geert Wilders, o deputado holandês de extrema-direita que tem difundido, no seu país e fora dele, posições abertamente xenófobas, não entra no coro dos aplausos nem no dos apupos. Também me parece que pessoas que pensam e agem como Wilders devem ser contidas nos seus direitos políticos (que usam contra a democracia que os alimenta) e no uso do espaço público que lhes é concedido (do qual se servem para sustentarem formas de ódio e de violência social). A sua intervenção deve ser criminalizada de forma clara e as autoridades policiais e judiciais dos países democráticos devem depois agir em conformidade com a qualidade do crime. Esse seria o princípio que me levaria a aplaudir a medida de proibição imposta pelo governo britânico.
Aceitando-a, não posso, todavia, deixar de ver nela – num registo um pouco diferente, João Tunes fez já a mesma coisa – não a expressão de um meritório princípio democrático, mas o seu contrário. Sendo claro: trata-se de uma cedência cobarde, e não declarada sequer, às práticas intolerantes associadas aos partidários, europeus ou não, de um certo Islão que se crê acima da própria democracia e da cultura laica (e laicista) que a Europa conserva ainda como matriz. As notícias que chegam sobre Fitna, o filme de Wilders que iria ser projectado na Câmara dos Lordes e que o seu autor iria apresentar, coincidem em considerá-lo uma manipulação barata do Corão destinada a criminalizar os muçulmanos apenas pelo facto de o serem, e para isso – o apelo ao ódio religioso – existem, julgo, leis próprias que deveriam ser aplicadas dentro do país no qual o delito fosse cometido. Mas em vez desse gesto arrojado e justo, as autoridades britânicas optaram uma vez mais, como noutras paragens da Europa tem sido feito também, por ceder às pressões dos islamitas e por conservarem o criminoso à distância apenas pelas suas «opiniões radicais contra o Islão», não por ser um potencial e «algemável» criminoso. Outro passo atrás na política de medo e de autodepreciação.
Dez anos após a fundação do Bloco de Esquerda, a VI Convenção que decorreu neste fim-de-semana colocou um ponto final e abriu um parágrafo na sua curta e agitada história de sucesso. Se quisermos, o «velho» Bloco de causas, resultante de uma amálgama complexa de percursos colectivos e individuais que em 1999 procuravam sobretudo a construção de uma plataforma que lhes permitisse entenderem-se, seguiu o seu caminho natural, alijando algumas vozes discordantes que se foram afastando (quase sempre pacificamente, sem dramas, o que foi só por si uma novidade para quem vinha de um universo dogmático e habituado a purgas), mas conquistando ao mesmo tempo uma base social alargada e uma visibilidade pública que, nos seus tempos de prática política isolada, militante algum das organizações que lhe deram corpo vislumbrara nos seus melhores sonhos. Quando as sondagens são unânimes a considerarem a grande possibilidade de o Bloco ultrapassar o Partido Comunista, é agora todo um outro horizonte que se abre e que passa, previsivelmente, por uma intervenção cada vez mais apostada em apresentar alternativas de poder, ou com capacidade de intervenção num plano legislativo e de gestão política, no interior do sistema democrático que habitamos. A «esquerda grande» da qual falou ontem Francisco Louçã – expressão que traduz um daqueles tiques popularuchos que de vez em quando ainda escapam –, supõe também uma suposta maioridade que se traduz na superação de uma auto-representação do Bloco e dos seus presumíveis aliados como meras forças protestativas e de contrapoder.
O futuro dirá para onde nos leva o caminho agora aberto. Ficam, no entanto, dois problemas urgentes por resolver e não sei como irá o Bloco lidar com eles, uma vez que, enquanto partido adulto e «de confiança», não pode continuar a manter a seu respeito uma posição de público alheamento. O primeiro deles tem a ver com a posição face ao PCP, que continua assumir-se como um partido anti-sistema e que já declarou publicamente ver no Bloco um dos adversários a abater. A aproximação com os comunistas, como quase toda a gente sabe, apenas será possível numa situação crítica e de confronto com um inimigo maior – que felizmente não se vislumbra -, uma vez que lhes está nos genes identitários a vontade de se assumirem como força dirigente, arrastando atrás de si os sectores que considera «menos consequentes» e que apenas respeitarão enquanto os puderem instrumentalizar. O segundo problema tem a ver com o apagamento quase completo de uma esquerda radical, de protesto e de denúncia, não comprometida com as máquinas do poder, que o Bloco praticamente «secou». Este campo é necessário porque é ele quem pode dizer «inconveniências», apontando em quaisquer circunstâncias para a nudez do rei, e em breve os dirigentes bloquistas pensarão duas vezes, se é que o não fazem já, no preço político e eleitoral que pagam pelo empenho dado a combates demasiado delicados e a causas minoritárias.
Em todo o caso, e independentemente da forma como estes dois problemas poderão ser resolvidos, digo sempre a mesma coisa a quem me pergunta, perante as posições independentes e muito críticas que vou tomando aqui e ali – quase sempre distanciadas da minha frágil e efémera antiga militância bloquista -, se afinal irei votar nas próximas eleições. Digo que sim, que irei votar. No Bloco de Esquerda, claro.
São inquietantes, e muito, as manifestações de milhares de pessoas, junto às refinarias de Lindsey e de Grangemouth, à siderurgia de Teesside e à central eléctrica de Aberthaw, no Reino Unido, contra a presença de operários estrangeiros, sobretudo de portugueses e italianos. O apoio de alguns sindicatos britânicos a medidas xenófobas destinadas a protegerem o emprego dos trabalhadores locais – que em regra até há pouco rejeitavam as tarefas mais difíceis cumpridas pelos imigrantes – vem reforçar pesadamente a dimensão sinistra do episódio, mas indiciam também uma tendência que vem cruzando fronteiras.
Os nossos sindicatos, demasiadas vezes envelhecidos nos métodos, nas estratégias e até nos rostos, ainda não chegaram tão longe, mas mostram muitas vezes sintomas umbiguistas e corporativistas igualmente inquietantes. Refugiados numa dimensão ultrapassada e muitas vezes partidarizada da luta sindical, esquecem quase sempre os imigrantes (legais e ilegais, que raramente votam ou se sindicalizam), os jovens (que não constam dos seus planos e lhes pagam na mesma moeda), os desempregados e os reformados (que não são trabalhadores, não tendo por isso peso nos conflitos laborais), as mulheres (cujas especificidades reduzem quase sempre à condição supostamente paritária de trabalhadoras), acantonando-se também na defesa de algumas formas de proteccionismo que são, no mínimo, socialmente perigosas. Ainda não chegámos a Inglaterra, mas indícios de que nos podemos aproximar rapidamente do mau exemplo começam a surgir. E não só no horizonte.
PS – Houve entretanto quem «enfiasse a carapuça» a propósito deste brevíssimo comentário (que, obviamente, não é «análise» alguma). Nele não se atacam «os sindicatos», como qualquer leitor que não leia isto no «registo do acossado» facilmente percebe. Referem-se apenas algumas características presentes na prática de um certo modelo de sindicalismo. Velho, dependente, autofágico, e, é esse o problema aflorado, tendencialmente corporativista.
Parece-me inapropriado que em 2009, num país europeu, um jornal de referência destaque numa notícia sobre a viragem em curso na Islândia, a quatro colunas e com chamada na contracapa, que «uma lésbica assumida vai governar o país». A concessão ao fácil não deve colher no leitor-comum do Público, que gosta de ver este tipo de informação, se ela for relevante, integrada na notícia, sem dúvida, mas sem destaque maior que aquele atribuído à idade, à profissão, à actividade política e, eventualmente, aos passatempos da pessoa em causa. Falo por mim, mas julgo não estar sozinho.
P.S. Muitas horas depois de, bem pela manhã, ter redigido o anterior parágrafo, revisito a notícia no Público online. Pelo estendal de comentários sórdidos que se lhe seguiu, percebo como o título utilizado pelo jornal ainda é mais perigoso e lamentável do que inicialmente parecia.
Eu sei que mais tarde ou mais cedo se quebrará o feitiço. E que sempre que falamos de patriotismo remexemos na caixa maldita que a filha primogénita de Zeus enviou a Epimeteu e este abriu libertando os males do mundo. Mas foram de facto raras, «antigas», inscritas numa dimensão ética quase fora deste tempo, algumas das frases do primeiro discurso oficial de Barack Obama. São trechos nucleares sobre os grandes princípios da convivência política e social, palavras que já não se costumam ouvir no refrão ajustado para os momentos de campanha, e que por isso mesmo a maioria dos comentadores ignorou ou achou desinteressantes. Esquecidas também porque centradas em desígnios, em princípios de vida, traduzidos em palavras que já não inteiram o ar do tempo. Mas é mesmo por isso que sabe bem ouvi-las sem ligarmos à grande ilusão que sabemos conterem e tudo aquilo que o futuro nos reserva. Ler mais aqui.
Vale a pena ler com alguma atenção o dossiê «A Esquerda e o Poder» que vem no número deste Janeiro do Le Monde Diplomatique português. O tema será provavelmente eterno, e os quatro testemunhos escolhidos demonstram de que maneira, felizmente, a declaração do binómio mais facilmente promove a divergência do que instiga o unanimismo.
Ao contrário do habitual neste tipo de nota, refiro primeiro os dois textos que me parecem francamente menos estimulantes. O artigo de António Abreu, ex-vereador lisboeta pelo PCP, intitulado «Diz-me como o exerces…», é crispado e previsível. O primeiro parágrafo dá o mote, pois nele se anuncia logo que o autor não vai «dar para o peditório que se vai arrastando penosamente das agregações, reorganizações e reconfigurações das várias componentes da esquerda», deixando claro que é «a experiência política» que o afasta de «tais conversas». Pouco há, pois, para discutir, tratando-se sobretudo de reafirmar convicções sobre a disjunção esquerda-direita que Abreu resolve sem quaisquer sobressaltos para quem conheça as posições oficiais do seu partido. Desenvolve depois algumas considerações que se fixam no papel da (sua) esquerda no domínio do poder autárquico. Já o texto de André Freire, «Esquerda plural e clareza das alternativas», nada tem de preconceituoso, mas integra a marca de uma boa parte das suas intervenções públicas: revela um exercício de ciência política de orientação normativa, criterioso e documentado como seria de esperar, mas infelizmente com um interesse um tanto relativo para o padrão de debate, mais de uma natureza prospectiva, mais quente, que aqui o tema proposto parecia reclamar e provavelmente a maioria dos leitores agradeceria.
Os outros dois testemunhos são claramente mais interessantes e, acima de tudo, abrem-se a um debate que possa ter em conta o necessário aggiornamento da esquerda, os rostos diversos que a sua definição como território de resistência vai tomando, e a sua ligação às experiências de conquista e de partilha do poder. Em «Poder fazer, fazer o poder», Daniel Oliveira recupera algumas das posições públicas que tem manifestado sobre as possibilidades da esquerda conservar a suas capacidades no terreno da contestação e da prática contracultural, sem que tal implique obrigatoriamente uma recusa de participação, ou até de partilha, no campo do poder. Recusando que a lógica dos movimentos sociais os reduza às relações de enfrentamento com a política institucional, sublinha que a participação da esquerda da qual fala nos organismos de decisão pode impulsionar mudanças pelas quais ela se tem batido. Mas avisa que «a luta pelo poder nas instituições de Estado» não só não dispensa esses movimentos «como precisa deles se quiser mudar alguma coisa.» Deixa claro constituir um erro o voltar das costas a esse espaço de intervenção, por troca com uma cultura de contrapoder ruidosa mas sem efectiva capacidade para mudar as coisas.
Por sua vez, José Neves, em «Alguns lugares-comuns sobre o poder», caminha de certa forma em direcção contrária, deixando em alguns momentos no ar a possibilidade negativa de o poder, o poder sem si, «sujar» a capacidade positiva de insubordinação diante da ordem injusta que a matriz da esquerda deve necessariamente incorporar. Provavelmente, este artigo é dos quatro o mais ambicioso, sendo o único que aborda criticamente algumas das fundações contemporâneas do conceito e da actividade de esquerda, colocados ambos sob uma perspectiva temporalmente situada que parece fecunda. Mas é também o único que não sugere respostas imediatas, pondo o acento tónico na diversidade das situações e na obrigatória capacidade de reformulação e de redescoberta que a esquerda e as suas organizações precisam manter para se adaptarem, reorganizarem e agirem num mundo crescentemente complexo: a ‘forma’ como elas fazem política deve então, nesta direcção, «ser algo tão ou mais importante do que o conteúdo das ‘políticas’ que defendem.»
O dossiê do LMD aproxima sintomas, vírus e fármacos. Não se ocupa, felizmente, da perfeição futura do doente quando por um passe de magia revolucionária este retornar ao estado saudável. Em parte, foi esta presunção de mudança que produziu o modelo unívoco e autofágico de esquerda que o tempo se tem encarregado de varrer. Para que outro, menos peremptório, mais plural, possa seguir o seu caminho.
«Aconteceu uma coisa terrível na educação: tudo tem de ser divertido.» Nem tudo o que diz Alice Vieria na entrevista que deu ao Público de hoje – e que pode ser lida aqui – me parece indiscutível, mas existe muito de avisado nela. E a frase destacada pelo jornal sublinha aquela que me parece, de facto, ser a fonte última de alguns dos maiores problemas do sistema que temos, disseminados já por todos os graus e áreas de ensino. A dor de aprender é uma dor boa, só que muitas pessoas, e algumas delas com poder de decisão neste campo, já não sabem disso. Não sabem o que perdem, aquilo que deixam de ganhar e o que roubam aos outros.
Ainda e de novo Gaza. Ainda e de novo uma evidência. Ser por uma solução justa é ser pela paz, mas ser pela paz não impõe a vitória de um Estado sobre um povo, de um povo sobre outro povo, de um povo que se bate pelos seus direitos sobre outro que o faz também. Ser pela paz não é ser contra Israel, como o Hamas confirma e os idiotas úteis se esforçam por provar. Ser pela paz não é condenar a Fatah e ignorar os israelitas que não são belicistas. Ser pela paz não é ser por Israel e a imposição violenta de uma pax hebraica erguida contra uma eventual pax arabica. Não é ser sionista. Nem anti-semita, já que semitas são eles todos, e também nós um pouco.
Mas também não é ser estúpido e acreditar que são todos bons rapazes. Nem fugir ao óbvio: a actual guerra injusta, aproveitada por sectores no poder em Israel para afirmarem uma política agressiva e se manterem no poder, foi, num primeiro momento, na altura do Natal, directamente provocada pelo Hamas, que sabia muito bem ir ter uma resposta. Que, tal como o Hezbollah, procura usar a luta dos palestinianos para impor mais uma ditadura islamita, como o comprova a sua forma de governar as regiões que controlam. Que não quer paz alguma: quer a guerra, como o atesta a reivindicação estúpida de agora apenas aceitar o cessar-fogo cedido pelos israelitas se os vencedores a curto prazo se declararem vencidos a longo termo. Que se serve de escudos humanos e transforma os horrores da guerra, reais – dos maiores horrores da Segunda Grande Guerra, relembro, viveu-os a Alemanha sob as bombas aliadas, como no-lo contou W. G. Sebald – em propaganda que muitos ocidentais compram sem ver. Ser pela paz é apresentá-la como o único horizonte possível, mas não é a aceitar a supremacia de uma das partes. E, de um lado ou do outro, não se faz, não pode fazer-se, com aqueles que pretendem impor essa supremacia. Tanto quanto seja possível, e o mais depressa possível, esses devem ser afastados do processo. Em nome de uma paz levantada contra os tigres e os falcões, e que não nasça podre.
O 5 Dias é um blogue que acompanho desde a abertura, e que nas diversas fases pelas quais foi passando me habituei a seguir com atenção, mesmo quando (ou justamente quando) exibia posições das quais discordava. Todos os colaboradores escreviam muito bem, as opiniões eram diversas mas fundadas, a informação rápida mas criteriosa. Mentiras, calúnias, verborreia e embustes nunca por ali se viram, excepto quando a óbvia ironia ou a casual brincadeira o requeriam. E assim se mantiveram as coisas até há pouco tempo, quando o panorama começou a mudar rapidamente com a chegada de alguns colaboradores que, para além de fazerem baloiçar a base de apoio do português, se servem de algumas das técnicas habitualmente utilizadas por fascistas ou delinquentes. Pois de que outra forma posso compreender artigos como este(fazendo lembrar o chamado «paleio de retornado» do antigamente)? Ou a apresentação, sem qualquer identificação mas contendo uma insinuação grave, desta imagem (decalcada aliás de uma outra, essa assumidamente ficcionada, utilizada no filme de propaganda franquista Sin Novedad en el Alcazar)? Jamais abriria a boca se estes posts surgissem num blogue qualquer – que estivesse confinado, como A Terceira Noite, a umas centenas de seguidores fiéis que aguentam estoicamente a irregularidade dos registos e a ausência de comentários – mas já me parece perigoso quando este tipo de processos chegam a blogues reconhecidos por muitos como um espaço de referência. Nada tenho a ver (era o que faltava!) com o caminho pisado pelo 5 Dias, e não vou, garanto, entrar numa guerrinha de Alecrim, mas diz-me respeito a exibição pública da ética do vale-tudo para subir no Blogómetro (onde ATN estava ontem num discretíssimo 119º lugar). E apetece-me dizê-lo a quem me lê.
A guerra não é um grande momento para subtilezas e elegâncias, salvo para quem, numa confortável posição de segurança, dela se queira servir como de um tabuleiro de xadrez. Quando a vida e a morte se confrontam, quando o medo e a impiedade se olham de frente, é impossível pensar com ponderação e falar serenamente. Qualquer pessoa sabe disso, mas sabe-o melhor quem já esteve sob fogo em teatro de guerra. Nesses momentos a linha que separa coragem e cobardia, o júbilo e o lamento, frieza e descontrolo, torna-se invisível, e qualquer um, em poucos segundos, pode passar de cordeiro a lobo. Ou o contrário. Na guerra que vivi, pude ver homens religiosos dispararem sobre crianças (e vi depois essas crianças mortas), seres que me habituei a reconhecer como pacíficos a perderem totalmente a compostura e a chorarem como bebés. E o contrário também: pessoas em quem nem tinha reparado que, num repente, foram buscar forças e coragem a um lugar desconhecido. Nestas alturas, todos dizem o que lhe vem à cabeça, gritam ou ficam imobilizados, disparam à toa ou foge, fazem juras de ódio que podem tornar-se letais quando transportam ao ombro uma espingarda-metralhadora.
Mesmo longe desses lugares terríveis, olhando-os nos monitores coloridos das nossas televisões e dos nossos computadores, esse envolvimento emotivo assalta-nos o raciocínio, torna-nos cegos e impulsivos, sendo preciso algum sangue-frio para conseguir discorrer sem levantar a voz sobre aquilo que vemos. Tarefa quase impossível, como se pode ver pelos posts que lemos sobre a guerra terrível que ocorre em Gaza, com quase todos a escreverem frases com pontos de exclamação, tomando um e outro dos lados em confronto, guardando para melhores dias a possibilidade de se questionarem sobre tudo aquilo que podem ver. Claro que os completos consensos jamais serão possíveis e que sempre existirão pessoas para quem o mundo é apenas branco-alvo e preto-carvão: essas só gritam contra a guerra porque um dos lados da brutalidade nela leva a melhor, mas anseiam pelo dia da vingança, no qual agredirão o agressor. Hoje, numa viagem matinal pela blogosfera lusitana, encontrei até um texto que compara aos nazis os responsáveis palestinianos da Fatah que se opõem ao Hamas. Outro identifica «inequivocamente» a causa da Palestina com um sinal do avanço do «fundamentalismo islâmico». Outro ainda diz da violência israelita ser esta «pior que o Holocausto». E a maioria dos comentadores, mesmo alguns dos mais clarividentes e respeitados, vê apenas a agressão israelita, não referindo que os responsáveis do Hamas possuem como meta declarada, para a qual apontam sem concessões, a «destruição de Israel», e que foram eles a quebrar o cessar-fogo, contra a posição negociadora da Fatah. Como ignoram a existência de um amplo movimento israelita a favor da paz e de um grande número de objectores de consciência que, contra o expansionismo sionista, propõem uma abordagem do conflito que passe pela aproximação entre vizinhos historicamente destinados a entenderem-se.
Observamos por todo o lado manifestações cegas, claras deturpações e mesmo mentiras (o «subcomandante Marcos» chegou ao ponto de inventar uma declaração inexistente de Barack Obama sobre o seu apoio à invasão de Gaza). E reconhecemos posições que, de tão marcadas pela «ira da guerra», se mostram inúteis, contraditórias e perigosas. Não parece que devamos ir para a rua gritar indiscriminadamente «a favor do Hamas» ou «contra Israel», sendo apenas «pelos palestinianos» e «contra os judeus». Nem escolher obrigatoriamente a posição contrária, de aplauso de tudo aquilo que o governo israelita resolva fazer, incluindo o bombardeamento metódico de populações civis com as quais os «heróicos combatentes» do Hamas resolveram misturar-se. No levantamento de uma forte corrente da opinião pública internacional, partilhando a convicção de que a paz é possível – a paz, não apenas mais um cessar-fogo – e pressionando os governos para que tomem iniciativas sérias nesse sentido, residirá mais tarde ou mais cedo uma boa parte da solução.
Na página da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique deparo com um artigo que me parece pouco sério, assinado por Alain Gresh, editor do jornal, com o título «Gaza: ‘choque e pavor’». Trata-se, a meu ver, de um exemplo de impudor cheio de boa intenções alardeado por certos analistas – mapeados entre a esquerda mais ortodoxa e aquela que se autoproclama crítica mas é incapaz de reapreciar dinamicamente o seu sistema de crenças – sempre que falam da eternizada crise do Oriente Médio. O autor parte de uma situação assustadora, sobretudo para os civis que não podem escapar-lhe, que se prende com os actuais bombardeamentos israelitas lançados sobre a faixa de Gaza. Pretende aqui, como tantos outros textos o procuram fazer, denunciar a sua brutalidade e protestar contra o seu prolongamento, o que me parece ser uma causa boa e necessária. Os militaristas israelitas não podem sentir-se livres para promoverem uma escalada sem fim e com danos intoleráveis. Mas Gresh fá-lo recorrendo a um conjunto de omissões e de insinuações que não podem servir quem pretenda proceder a uma abordagem equitativa e justa do problema, a qual passa por tudo menos pela consideração das «duas partes» – como se neste conflito seja possível separá-las com toda a clareza sem opções intermédias – enquanto antagonistas de uma luta unívoca entre o bem e o mal.
Começa por ignorar completamente a provocação do Hamas que antecedeu o ataque de Israel, traduzida no lançamento, a 20 de Dezembro, de dezenas de rockets sobre as cidades judaicas de Ashdad e Ashkelon (fala apenas da sua ténue reposta após o início dos bombardeamentos israelitas). Continua tentando provar a «legitimidade democrática» do governo islamita do Hamas quando este tomou o poder de uma forma descricionária após uma guerra de extermínio contra os militantes da Fatah que conduziu à fuga de Gaza de dezenas de milhar de refugiados palestinianos. Esquece que, como até o próprio Hamas reconhece, cerca de 250 dos mais de 300 mortos nos ataques da aviação israelita pertencem às milícias do movimento (o que não isenta de crítica esses ataques, mas indica o seu sentido primordial). Ignora a repelente estratégia dos islamitas no sentido de disseminarem quartéis e rampas para o lançamento de rockets no centro de áreas habitacionais que lhes servem de escudo humano. E, por fim, faz praticamente tábua rasa dos direitos históricos dos israelitas à presença na região, que não podem, nem devem, sobrepor-se aos dos palestinianos, mas precisam ser conformados com eles. Não seria preciso tanto para julgar um artigo como parcial e, realmente, pouco honesto.
Amos Oz tem falado repetidamente de uma inevitabilidade que ele próprio já não verá, e muitos de nós não terão também tempo de ver, que é esta, bem simples: irmãos de sangue e vizinhos, palestinianos e judeus, custe o que custar, estão condenados a entenderem-se, a colaborarem, a miscisgenarem-se até. Ainda que contra a vontade de quem, lá como aqui deste lado da Europa, sofre de miopia e se empenha teimosamente em atear rastilhos para alimentar a sua leitura maniqueia do mundo. Ao contrário deles, prefiro valorizar o sinal de aproximação entre dois universos expresso nesse instinto de proximidade, desenhado por Le Clézio em Estrela Errante, que foi possível desenvolver entre Esther, a judia que fugira aos nazis e chegava a Israel à procura de reconstruir a sua vida, e Nejma, a palestiniana que ao mesmo tempo deixava o país em colunas de refugiados, rumo ao exílio. Leio: «A água, a terra e o céu mistura-se. Há uma brisa que se espalha e oculta imperceptivelmente o horizonte. (…) Tudo está calmo no molhe.» Um dia, contra os cães raivosos, também as pessoas partilharão o destino comum dos elementos. Até que esse dia chegue, porém, convirá que não façamos por adiá-lo alinhando cegamente num dos lados do partido do ódio.
O Houaiss considera intelectual aquele «que vive predominantemente do intelecto», dedicado a actividades «que requerem um emprego intelectual considerável». Ou então o sujeito que mostra «gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes», por isso considerado «erudito, pensador, sábio». Este é também o significado atribuído à palavra pelo cidadão comum, aplicado em regra ao ser raro, de socialização difícil e elevado número de dioptrias. Que habita esse limbo separador das pessoas vulgares, a quem a leitura e o conhecimento que dela se desprende de pouco ou nada servem, dos deuses e semideuses que não precisam conhecer pois são já omniscientes.
Como meio mundo sabe, o termo surgiu no final do século XIX e foi divulgado a partir da intervenção de Émile Zola e de Anatole France na polémica em torno do caso Dreyfus. Associado a uma participação cívica que distinguia aquele a quem se aplicava, afastando-o do perfil do sábio confinado à sua torre de marfim. Para Maurice Blanchot, a condição intelectual aplicava-se «a uma parte de nós mesmos que não apenas nos desvia momentaneamente de nossa tarefa mas que nos conduz ao que se faz no mundo, para julgar e apreciar o que se faz». Não existiria, portanto, a figura do intelectual que era apenas um «sábio» em tempo integral: para se transformar num intelectual, o «indivíduo culto» precisava desdobrar-se, acumular funções diversas, deixar de lado os saberes particulares, para se dedicar em full-time ao trabalho da crítica e à luta por aspirações universalizantes. Interpretando o passado e o presente visando a construção ideal do futuro. Foi neste sentido que Antonio Gramsci, entendendo que «todos os homens são intelectuais» uma vez que pensam e reflectem sobre o mundo utilizando o seu próprio conhecimento, considerou que «nem todos desempenham, na sociedade, a função de intelectuais». Estes têm então uma missão a cumprir, dando corpo, como elementos orgânicos, não só ao movimento social mas a todo um trabalho cultural que a este deve encontrar-se associado.
Só que este papel apenas ganha destaque quando, através da sua intervenção reflexiva e do seu saber, o intelectual se mostre portador de uma certa «autoridade científica», sendo através da sua imagem social – alcançada através da projecção pública que obtém como político, professor, cronista, jornalista, escritor ou artista – que estabelece relações com a sociedade e assegura um estatuto ao mesmo tempo privilegiado e dinâmico. Edward Said fala, nesta direcção, do intelectual como «figura representativa». Alguém que representa um ponto de vista e que o faz de modo necessariamente público – falando, escrevendo, ensinado ou aparecendo na televisão – o que envolve inevitavelmente, e em simultâneo, «empenhamento e risco, arrojo e vulnerabilidade». Sempre em cena, portanto. E sempre na corda-bamba também. Desenvolvendo, como sugeriu Foucault, uma forma de «sacerdócio» que deriva tanto das suas posições sociais e políticas quanto da competência científica que mostra.
Um conjunto de factores explica, entretanto, o recuo, hoje visível, deste modelo de intelectual que busca, através dos seus actos públicos, uma aliança entre ética e política. Em primeiro lugar, o enfraquecimento das ideologias do progresso e a ascensão dos valores individualistas, desviando o intelectual de uma missão com um sentido claro que deveria dar voz aos interesses da comunidade. Em segundo lugar, a especialização dos saberes, condenando a uma gradual irrelevância social esse tipo de pessoas que sabia de tudo um pouco, que falava de tudo um pouco, sem jamais se vincular, como diz hoje o jargão, a «competências específicas». Em terceiro lugar, a intervenção dos média, que retirou público e diminuiu o palco no qual elas tinham lugar cativo, assim as afastando do indispensável protagonismo. Em quarto lugar, a disseminação da capacidade de intervenção dos cidadãos, reduzindo a necessidade de figuras-tulares capazes de funcionarem como porta-vozes ou catalisadores dos interesses (o aparecimento dos blogues reforçou, aliás, esta situação). E em quinto e último lugar, a perda de capital simbólico da figura do pensador independente, reconhecido pela sua dimensão moral e de rectidão, pela coragem da opinião única, por troca com o político de aparelho, frequentemente um pragmático de recorte dúctil, traduzido fisionomicamente no aparátchik que não diz o que pensa mas aquilo que o aparelho espera que ele diga. A desastrada carreira partidária de dois dos nossos últimos intelectuais e o achincalhamento a que têm sido submetidos por parte de alguns dos seus ainda ou ex-correligionários – refiro-me a José Pacheco Pereira e a Vasco Pulido Valente, não estando aqui em causa as suas opiniões, mas sim a sua atitude – ilustram bem esta incompatibilidade.
Por tudo isto me parece inapropriado, para não dizer bastante caricato, a crescente invocação da figura do ministro Augusto Santos Silva, que tenho visto mencionada em publicações periódicas e em blogues, como a de um (ou a «do») «intelectual do PS». É que não basta ser-se professor catedrático, terem-se dado aulas numa universidade, editado alguns livros e artigos, escrito artigos de opinião nos jornais e citado Pierre Bourdieu para se ser considerado um intelectual. À maneira zoliana, bem entendido. É preciso, isso sim, assumir-se um perfil moral e de independência, de militância e de ousadia, de coragem e de capacidade de análise, que não combina com um discurso público previsível, sem capacidade de mobilização, subserviente em relação às estratégias mais imediatas e comezinhas do poder. Se a pessoa em causa fosse de facto um «intelectual do PS», utilizaria o seu lugar privilegiado para ajudar a superar o tacticismo cego, para mobilizar o seu próprio partido e a sociedade em favor de uma percepção crítica e de uma dinâmica mais acentuadamente política da actividade de governação. Não se mostrando apenas como uma espécie de cônsul provisório dos aparátchiki.
Tem sempre algo de cegueira a atribuição do exclusivo da culpa aos políticos e aos militares israelitas, esquecendo que a violência se tem desenvolvido num contexto de guerra onde não são simples, e muito menos transparentes, as orientações estratégicas e os processos de actuação. Como se o combate fosse apenas entre judeus inequivocamente «maus», medidos todos pela mesma bitola, merecendo continuar a penar, errando de terra em terra até ao fim dos tempos, e os árabes, acantonados nos estados despóticos da região ou nos territórios autónomos, adeptos da causa palestiniana e «bons» por natureza. Como se a solução política e histórica do conflito israelo-palestiniano não passasse por um entendimento obrigatório, ainda que distante e com toda a certeza difícil de obter, entre os moderados que, de um e do outro dos lados, não apelam liminarmente ao extermínio do «inimigo». O anti-semitismo tem muitas caras e uma delas passa pelo menosprezo do sistema democrático que rege o Estado de Israel desde a sua fundação diante de uma dimensão, supostamente «popular», mais «democrática», das correntes próximas do radicalismo religioso – pois o velho «socialismo islâmico» está morto e enterrado – que praticam a suprema honra de combaterem de armas na mão, ou de bombas à cintura, o amaldiçoado judeu e os seus aliados ocidentais. Mas as coisas, felizmente, não são redutíveis a análises monoculares que colocam o fígado acima da inteligência.
Por isso tem pouco de honesta a leitura do mortífero ataque de hoje lançado pelos israelitas sobre a faixa de Gaza – controlada com punho de ferro pelo Hamas após expulsão da Fatah, é bom que se não esqueça – omitindo ao mesmo tempo, declaradamente, que esta ocorreu após o bombardeamento de diversas cidades israelitas por parte do mesmo grupo radical, causando também um elevado número de vítimas. Tratou-se de um acto de represálias, evidentemente. Condenável sem dúvida, como foi condenável o bombardeamento sobre civis lançado pelo Hamas. Mas natural em estado de guerra, que é aquele que se vive na região. A solução, nestas circunstâncias, como já Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, contra muitos dos seus, haviam percebido, encontra-se pois numa demanda efectiva da paz. E não na justificação da «bondade» natural de um dos lados em guerra em prejuízo da «maldade» absoluta do outro.
Estranho ainda é falar-se – como o fizeram, uma vez mais, diversos jornalistas e alguns bloggers – da malévola exacerbação do conflito, por parte dos israelitas, «em plena época de Natal». Como se não estivéssemos a falar de um universo cultural essencialmente composto de árabes e de judeus que pouca importância atribuem ao menino nas suas palhinhas. Uma lapalissada que parece necessário repetir como uma mantra, pois todos os anos é esquecida. Quem desencadeou a violência quis, obviamente, provocar os falcões do exército israelita, que toda a gente sabe terem dedo fácil no gatilho e reagirem seguindo a lógica do «dispara primeiro e pergunta depois». E quis ainda desafiar o ocidente, de matriz cristã, que tende hoje a fomentar uma solução de conciliação – e, provavelmente, mais tenderá ainda a promovê-la com o início da intervenção política de Barack Obama – com uma declaração formal e bastante ruidosa de princípios e de intenções. Por isso escolheu uma vez mais esta época do ano, supostamente pacífica, na qual se ouve melhor o estrépito da metralha. Uma vez mais também, houve por estes lados quem mordesse rapidamente o isco.
Para Frantz Fanon, os «condenados da Terra» não se insurgem apenas contra a miséria e a fome, mas também contra a contínua humilhação a que são submetidos. A sua lição não foi no entanto assimilada por aqueles a quem, no que ainda há pouco tempo era o território do Estado-Providência, competia assegurar a moderação dos desequilíbrios sociais e a integração daqueles que eram empurrados para a exclusão. Então, quando a ira coletiva sobrevém, os obstáculos a desmantelar pelos revoltados não podem ser escolhidos de forma racional. Quando fala das condições de emergência nas sociedades contemporâneas de uma nova forma de guerra civil, Hans Magnus Enzensberger relembra trechos de uma destruição que se revela exprimindo «a raiva pelas coisas intactas, o ódio a tudo aquilo que funciona.» Pelo caminho dessa rebelião em estado puro, geralmente praticada em horda, tudo é reduzido a escombros: o mobiliário das salas de aulas é destruído, os pneus são furados, os automóveis incendiados, os sinais de trânsito inutilizados, os jardins ficam cheios de fezes e de urina, os telefones de emergência são inutilizados com alicates, as vidraças das pequenas lojas são partidas à pedrada, os quiosques são assaltados, grafitti cobrem as paredes com frases que se amontoam e se anulam umas às outras. É verdade que, muito provavelmente, a maioria não quer a destruição, mas, como nota ainda Enzensberger, «a maioria é muda, ninguém lhe presta atenção, sempre que tem oportunidade vira as costas à luta e foge». Refugia-se então nos seus lares, por detrás dos monitores onde se reproduz, a uma distância segura, o tumulto que ficou na rua. E esfrega as mãos de contentamento, imaginando que lhe escapou. (mais…)