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Rumo ao inconcebível

[Antelóquio] Não, não vou escrever este post com prazer. Tudo isto me parecem pedaços de paisagem depois do incêndio. As últimas brasas, fumo no ar, o restolho que cheira ainda a queimada. O crepitar de uma distopia que se esforça por resistir. Marcos quilométricos de um caminho arriscado, à beira da ravina.

As pessoas e as organizações que se preocupam com a construção de um Portugal democrático e melhor – isto é, mais livre, mais transparente, mais justo e mais moderno -, devem agir com a maior prudência em relação à actividade do PCP, não se limitando a afastarem-se da sua esfera de acção ou a encolherem os ombros. Os fundamentos desta minha cautela, que não é de agora, dependem essencialmente de sete factores (para seguir a estrutura argumentativa linear tão do agrado dos militantes do partido, em regra adversos aos raciocínios elípticos): 1) da forma de actuação do partido, que tem perfilhado uma «política de trincheira» traduzida na tentativa de conquista de pequenas áreas de poder e da sua manutenção a todo o custo, sobrepondo inúmeras vezes os interesses partidários aos das pessoas; 2) do modelo de Estado e de sociedade que defende, assente na defesa da ditadura «da classe revolucionária» sobre o conjunto da sociedade, o qual em pouco ou nada difere daquele, historicamente funesto, que foi o do «socialismo real»; 3) da defesa como princípio orgânico da vida interna do próprio partido do chamado «centralismo democrático», que não é senão uma forma de legitimação da vontade de uma minoria dirigente que julga deter a «verdade científica»; 4) da sua cultura de dissolução do indivíduo no colectivo, contrária à promoção de um equilíbrio harmónico entre os dois factores; 5) da ausência de um modelo de sociedade que identifique claramente aquilo que propõe, para além dos combates pontuais, como horizonte de acção; 6) da manutenção de uma prática de «partido de vanguarda» sistematicamente apostado em dirigir os movimentos nos quais se envolve; e 7) da continuada justificação, como modelares, de experiências internacionais que se converteram em sociedades fortemente repressivas, bloqueadas e até atentatórias desses mesmos direitos que, na sua linha de combate dentro de portas, os comunistas declaram defender.

A conjugação destes factores tem servido de fonte de conflito e de desconfiança com forças que poderiam confluir em batalhas comuns. E tem servido para manter o PCP num lugar de crescente ambiguidade em relação à sua efectiva integração no jogo democrático.

A situação agravou-se nos últimos tempos e a instalação, na direcção do partido, de sectores obreiristas, representados desde logo pela figura do actual secretário-geral, com o seu discurso simplista e meramente proto-sindical, é um sinal importante da sua presença. Em paralelo, o retorno a uma mentalidade de seita, que parecia há alguns anos ter começado a perder-se, vê-se traduzido sobretudo nas palavras e nos actos de alguns sindicalistas e de muitos membros da JCP, atestando a presença de sectores maximalistas que, há décadas atrás, seriam facilmente qualificados como «oportunistas de esquerda». O conjunto poderá até, num curto prazo, obter alguns pequenos êxitos eleitorais, advindos do crescente descontentamento popular face ao governo do PS, mas jamais será capaz de congregar um projecto de poder realmente alternativo àquele protagonizado pelos dois partidos rotativistas gestores do regime.

Esta tendência superou agora a fronteira do inimaginável com a divulgação do «Projecto de Teses do XVIII Congresso», aprovado por unanimidade por 180 membros do Comité Central. Cinjo-me apenas, para já, a aspectos que vieram referidos nos jornais, como a desculpabilização do processo de degenerescência do aparelho de Estado e do modelo de sociedade vigentes na ex-URSS, cuja «destruição» se vê, nestas «teses», apenas como resultado da «traição» de alguns dirigentes, sem ser feito sequer um esforço de compreensão e de questionamento da herança estalinista, dos erros cometidos pelo sistema e dos dogmas e incapacidades que estiveram na origem de muitos dos desastres. Fala pois, o documento comunista, de uma panóplia de valores e de ideias-feitas, perfeitamente datados, que ali surgem isolados de toda a reflexão teórica produzida nos últimos cinquenta anos, de um «abandono de posições de classe e de uma estreita ligação com os trabalhadores», da «claudicação diante das pressões e chantagens do imperialismo», da «penetração em profundidade da ideologia social-democrata», da «rejeição do heróico património histórico dos comunistas», da «traição de altos responsáveis do Partido e do Estado», que «desorientaram e desarmaram os comunistas e as massas para a defesa do socialismo, possibilitando o rápido desenvolvimento e triunfo da contra-revolução com a reconstituição do capitalismo». Simples e sem mais, como requer uma compreensão pouco treinada no debate aberto e nas subtilezas da análise complexa de situações complexas. Com menor fôlego crítico que as conclusões do XX Congresso do PCUS, ocorrido no longínquo mês de Fevereiro do ano de 1956.

Depois, no topo do bolo, uma indicação, como expectativa, do que até hoje de manhã, ingenuamente, eu julgava inconcebível como posição colectiva dos comunistas portugueses, e imaginava confinada a sectores partidários activos mas não suficientemente representativos. Uma indicação, tenho a certeza disso, que exclui até uma espécie de consenso social construído, mesmo entre muitas das pessoas que têm votado no PCP, a propósito da matéria. Reproduzo sem comentários, que no caso em apreço se tornam completamente supérfluos: «Importante realidade do quadro internacional, nomeadamente pelo seu papel de resistência à ‘nova ordem’ imperialista, são os países que definem como orientação e objectivo a construção duma sociedade socialista – Cuba, China, Vietname, Laos e R.D.P. da Coreia.»

Estas pobres «teses» representam uma declaração de guerra do PCP à normal vida democrática, confirmando a sua afiliação a modelos ditatoriais e criminosos que as sociedades livres não só devem repudiar como precisam combater. Uma pergunta, apenas retórica pois não existe resposta possível para ela: o PCP qualifica o congresso que vai agora aprovar este terrífico monturo político como sendo projectado «Por Abril, pelo Socialismo, por um Partido Mais Forte»: Abril? Qual Abril?

PS – Estava a fechar este texto quando reparei num post sobre o mesmo assunto, e que aponta quase na mesma direcção, editado há poucas horas pelo Daniel Oliveira. Talvez eu me mostre só um tudo-nada menos defensivo, admito.

PS (2) – A «base teórica»

    Atualidade, Opinião

    Coragem, sim, mas apenas q.b.

    O PS tem um problema para resolver. Por um lado, os seus deputados vão votar contra os projectos do Bloco de Esquerda e dos Verdes sobre os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ao que dizem alguns por tal matéria «não constar do programa eleitoral do partido». Sem que se permita sequer a opção pelo voto de consciência, precisamente num dos temas no qual este mais sentido faria. Por outro, sabendo-se que a oposição mais conservadora se servirá sempre do assunto para, com o acordo tácito das maiorias silenciosas e homofóbicas, retirar muitos votos ao PS, os seus responsáveis jamais inserirão tal matéria no próximo programa, ou fá-lo-ão sempre de forma ambígua e semi-invisível. Como resolver então o imbróglio? Surpreendendo com uma atitude de arrojo político, um forte sentido de equidade e empenho na mobilização cívica. Precisamente aquilo que não se espera da actual maioria no poder e da generalidade dos membros do seu cordato grupo parlamentar.

      Atualidade, Opinião

      Imoral, pelo menos

      A notícia chegou e partiu como todas as outras, mas deixou um rasto de repulsa que merece ser partilhado. Saber pelos jornais que existe um número impressionante de famílias portuguesas que se estão a endividar pesadamente para comprarem aos filhos manuais escolares necessários para a sua integração – repare-se bem – no ensino escolar obrigatório, e que existem mesmo livrarias que criaram linhas de crédito para esse efeito, é algo que não pode ficar em claro e merece uma atenção muito séria das pessoas comuns. Não quero saber se existem outros «países avançados» que o fazem, ou se isto funciona como uma mola para a sacrossanta «modernização do ensino». Sei apenas que é uma situação imoral e caracterizada pela insensibilidade, a qual, num país marcado ainda por áreas de pobreza endémica e pela debilidade da classe média, deixa uma vez mais cair a responsabilidade social do Estado. E deveria envergonhar, envergonhar a sério, os responsáveis por um governo com o carimbo virtual de «socialista».

        Atualidade, Opinião

        A Festa, pá

        Gosto de festas e nada tenho, garanto, contra a Festa do Avante! Em democracia, todos os partidos têm o direito de realizar os acontecimentos que entendam e, para mais, «a Festa» do PCP é sempre bem organizada e muito mais decente que aquele forrobodó etílico preparado no Chão da Lagoa pelos idólatras de Alberto João Jardim. Aliás, já fui a algumas, das quais conservo até excelentes recordações. A organização «da Festa» implica muitas pessoas, mobilizadas com antecedência, que dão o seu melhor em prol da celebração anual que lhes transmite a sensação de pertencerem a um colectivo que tem do seu lado os ventos da História. Poucas delas parecem reparar no facto de uma grande parte dos presentes ali estar como se está numa feira, numa romaria ou num festival de rock, nada lhes importando que seja o PCP, a Comissão Fabriqueira ou a empresa Som da Frente a organizar o evento. O importante, para os militantes, é projectar uma imagem da grandeza do Partido e da perpetuidade dos seus ideais, e isso parece-lhes assegurado. «Um grande êxito» que congregou «o melhor do esforço e da iniciativa dos camaradas», dirá sempre algum relatório.

        Aparte o comício final, ao qual vão apenas os indefectíveis, o tom «da Festa» é pois… mais ou menos o de festa. O programa é agora bastante mais fraco e repetitivo que o de outros tempos, quando os fundos eram generosos e estar presente no acontecimento representava até, para muitos grupos ou artistas, uma importante mais-valia promocional. Mas o que importa é «o espírito» e esse, naqueles dias, ganha um novo fôlego. No final, de pin ao peito e boné posto, os militantes cantam o hino do partido e regressam a casa com uma consciência de missão cumprida, enquanto os outros, os «amigos» e os infiltrados, há já longas horas que estão no seu domicílio com os pés metidos numa tina de água e a trincarem amendoins à frente do televisor.

        Um acontecimento respeitável, e acima de tudo normal, não fora o estendal de kitsch e de pactos com o passado no qual foi transformado o Espaço Internacional, desta feita com «especial atenção aos 90 anos da Revolução de Outubro». A informação que consta do Avante! online – e que pode ler aqui – é eloquente a esse respeito. Um bom exemplo foi uma vez mais fornecido pelo paupérrimo e triste pavilhão da Coreia do Norte (ali mais singelamente designada como «Coreia»), o qual, apesar da míngua da oferta facultada aos visitantes, não deixou de evocar in loco o companheirismo dos comunistas portugueses para com os responsáveis pela monstruosidade concentracionária na qual se tornou o seu «Estado dos trabalhadores». Afinal, não terá sido um mero deslize, próprio da idade, aquilo que na semana passada declarou à Visão a «jovem esperança» da JCP Patrícia Machado: «Uma vez que a Coreia do Norte resiste ao imperialismo americano e busca o socialismo, continuará a contar com o nosso apoio». São «detalhes irrelevantes» desta natureza que estragam tudo, incluindo o «espírito festivo». Digo-vos eu, que sou um apóstata e um descrente.

          Olhares, Opinião

          Jogo viciado

          Não é argumento que integre uma qualquer teoria da conspiração. É sabido como, na lógica do «quanto pior, melhor» que presidiu quase sempre ao relacionamento entre as principais potências mundiais durante a Guerra Fria, a União Soviética se relacionou muito melhor com os republicanos americanos (Nixon ou Reagan, por exemplo) do que com os democratas (Kennedy ou Johnson). Uma posição mais maleável da parte do Ocidente teria sempre, como inevitável corolário, uma diminuição do papel de contrapeso que os soviéticos então detinham no mundo. E não havia necessidade. Mutatis mutandis, há qualquer coisa nisto que evoca a forma como o actual governo da Rússia afronta neste momento pré-eleitoral a América, beneficiando, de uma forma óbvia, aqueles que dentro desta defendem mais abertamente uma política de agressão e de intransigência. Os republicanos, pois claro.

            Atualidade, História, Opinião

            O caso Barak

            O antiamericanismo congénito, como o anticomunismo primário, padecem de uma sintomatologia análoga: ambos se mostram expeditos a ripostar ao adversário quando o reconhecem sem margem para erro, mas têm grande dificuldade em reagir quando entre «bons» e «maus» se interpõe um discurso autónomo e complexo, que escapa aos lugares-comuns e à lógica maniqueísta que alimenta a falta de lucidez. Assim vejo – concordando no essencial com aquilo que, ontem no Público, escreveu Rui Tavares – o escorregar estonteado da parte da esquerda que diz que sim à óbvia diferença de Barak Obama e diz que não a conceder-lhe o benefício da dúvida. Com todas as reservas que deveremos manter em relação aos compromissos do candidato democrata e à lógica do sistema político americano, não duvido que estamos perante algo de substancialmente novo. Que não pode ser lido com os óculos do costume.

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              Fim de festa

              Os Jogos de Pequim fecharam e, antes ainda dos balanços, é hora de repousar das emoções. A cerimónia de abertura trouxe um instante de frescura a contrastar com os últimos discursos dos engravatados e hirtos «poupas altas»(*): a entrada no relvado do gigantesco Ninho de Pássaro de Boris Johnson, o mayor conservador de Londres – conservador, repare-se – que se apresentou descontraído, de fato amarrotado e casaco sem os dois primeiros botões apertados(**), para receber com um gesto nada protocolar a bandeira olímpica que a sua cidade sustentará até 2012. Entretanto, na capital britânica, uma multidão preparada mas informal contrastava com as rígidas coreografias que qualquer cidadão atento terá notado terem sido mantidas, mesmo durante as provas, nas bancadas e nas ruas preenchidas com sempre risonhos e embandeirados chineses, que muitas vezes pareciam saber exactamente em que momento iam ser focalizados pelas câmaras. As democracias não são capazes de alardear tal perfeição nas exibições de capacidade de organização e mando, e essa é uma qualidade sua que devemos preservar.

              (*) Como eram conhecidos, por parte significativa da população da antiga República Democrática Alemã – e até por agentes menores da STASI -, os altos dignitários do Partido e do Estado. Existia, em diversos edifícios oficiais, um serviço de cabeleireiro destinado a conservar a «rigidez de Estado» das cabeleiras dos dirigentes, ou, se possível, a disfarçar-lhes calvícies precoces. A petite histoire por vezes é muito útil.
              (**) JCE ter-se-á revolvido no túmulo.

                Atualidade, Opinião

                Três revistas

                Mesmo em tempo de Internet, as revistas especializadas de grande circulação publicadas em papel dão-nos imenso jeito como fontes de informação actualizada, veículos de opinião ou pontos de partida para aceder a determinados temas. As que circulam entre nós são quase exclusivamente estrangeiras, com um claro destaque, em campos como a história, a literatura, a filosofia ou as ciências sociais, para aquelas que se publicam em França. O que apenas será estranho se não considerarmos que a maioria dos seus compradores pertence a um segmento social e etário cuja formação conservou ainda o francês como segunda língua. São pois em francês os três números temáticos de revistas que aqui destaco e podem ser encontradas em alguns quiosques e livrarias.

                A Philosophie Magazine é sobre um tema – XXe siècle. Les philosophes face à l’actualité – particularmente útil numa época de desvalorização do papel interventivo do intelectual e da sua revisão como conceito operativo. Comporta largas dezenas de fragmentos de intervenções públicas de importantes filósofos, colocando-os em confronto com as suas circunstâncias. De Bergson, Berdiaev, Kraus ou Benjamin até Baudrillard, Zizek, Enzensberger e Amartya Sen, sucedem-se intervenções participativas sobre temas como a guerra, a revolução bolchevique, a ascensão dos fascismos, o Holocausto, a questão colonial, os feminismos, os acontecimentos de 1968, a conquista do espaço, a queda do Muro, o neoliberalismo, o «choque de civilizações», a globalização ou o conflito real-virtual.

                Já o Magazine Littéraire publica um número especial que tem como assunto La Passion – théâtre de l’existence. Aqui o objectivo é coligir cerca de três dezenas de artigos publicados na revista, ao longo de mais de vinte anos, tendo sempre em conta uma dupla abordagem da paixão, seja esta afirmada por um ser amado, por uma causa, por uma actividade ou por uma ideia. A primeira abordagem é talvez a mais antiga, e é associada a um certo desregulamento da personalidade, a uma forma de exaltação ou de doença. A outra, mais recente, aproxima-a do desejo, da vertigem, da exaltação. Flutuando sempre entre a melancolia e a acção.

                Para fechar, o bimensário Manière de Voir, editado pelo Le Monde Diplomatique, preocupa-se na edição de Agosto-Setembro com De Lénine à Poutine: Un siècle russe. Esta será, sem dúvida, a mais controversa das três publicações. Por ser a única que oferece textos centrados num tema cujas ondas de choque permanecem, tanto ao nível das representações de um passado recente como no que diz respeito aos contornos do mundo contemporâneo, plenamente activas. Estes distribuem-se por três partes organizadas cronologicamente: a primeira vai da Revolução de Outubro à resistência perante os nazis, a segunda parte da Guerra Fria e fecha com o aparecimento da perestroika, e a última ocupa-se do tempo preenchido com as presidências de Yeltsin e de Putin. É na primeira parte, centrada nos fundamentos do regime soviético e na perversão do Gulag, que se torna possível detectar os textos mais polémicos. Mas os mais perturbantes são aqueles que revelam a Rússia actual como um território que se mantém perigosamente inflamável.

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                  «Já o tinha afirmado o Génesis…»

                  Um artigo de opinião que saiu no Público, assinado por Pedro Vaz Patto, desenvolve mais uns quantos parágrafos em apoio da grande cruzada da direita católica contra a legitimação das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Não vale a pena perder muito tempo com o essencial da argumentação, uma vez que esta apenas retoma os conhecidos clichés a propósito da impossibilidade, em tais uniões, de se consumar uma preconceituosa «função social do casamento» assente na actividade reprodutora do par. Este raciocínio primário já o ouvimos alto e em bom som pelo menos desde os idos de 1982, dando então lugar à memorável altercação de Natália Correia(*) com o deputado centrista João Morgado.

                  Mas aquilo que é particularmente grave neste artigo é que o seu autor avança numa direcção menos usual e que é inadmissível na boca de um jurista. Acontece «apenas» que ele deixa implícita, na forma ligeira como se refere ao assunto, a menoridade social e jurídica daquilo a que chama o «casamento de casais estéreis». Na sua cabeça claramente confinado a uns desventurados que devem ser olhados como pessoas incompletas. E deixa obviamente de parte a possibilidade da existência – sabe-se hoje cada vez mais presente na nossa vida colectiva – de uns quantos depravados que não têm filhos por lhes ser impossível educarem de forma estável uma criança ou simplesmente por opção de vida. A desumanidade destas pessoas de credo na boca é apenas brutal.

                  (*) Lateralmente mas a propósito: que jeito nos dariam hoje uns quantos deputados menos pusilânimes, assim da têmpera da Dona Natália!

                    Atualidade, Opinião

                    O sorriso dos espoliados

                    O jornal Público não é a folha informativa de um sindicato. Nem um boletim partidário. Por isso apresenta a informação, e em muitos casos também a opinião, de uma forma que se pretende aberta a diferentes sensibilidades e interesses sociais. Mas ainda assim foi uma escolha infeliz a fotografia que preenche metade da primeira página da edição de hoje. Nesta, um grupo de trabalhadoras da Têxtil do Mindelo, todas elas com um sorriso aberto, mostra à câmara do fotógrafo os cheques referentes às indemnizações por despedimento que lhes eram devidas há 14 anos. Tanto tempo depois, que outra coisa poderiam fazer senão sorrir? A vida continuou e, afinal, tristezas não pagam dívidas.

                    Mas a notícia no interior do diário mostra um cenário bem diferente. Aqui as imagens são outras: um autocarro ocupado com pessoas em silêncio e em traje de domingo, mulheres de negro com um aspecto resignado, muita tristeza e muito cansaço. Pessoas a quem a vida tirou muito, outras descendentes daquelas que entretanto faleceram ou já se não podem deslocar, muitas ainda num total que foi de 417, e que agora vieram receber uns trocos. Sem juros, como seria de esperar. Com «rateamento de verbas», como se contava que fosse. «Era 200 contos. Agora tenho um papel que diz 307,69 euros». O Sr. Abel já tem destino a dar ao seu dinheiro: arranjará o telhado, dará «uma pintadela», comprará um esquentador. Nunca saberemos se quando olhar para eles se lembrará dos anos que passou na Têxtil do Mindelo. Que foi de um senhor que tem agora, diz alguém, «uma quinta muito grande».

                    É verdade que a caixa que acompanha a fotografia da capa começa por referir que «a alegria dos rostos esconde a demora da justiça portuguesa». Mas para maioria das pessoas, que compra o 24 Horas ou nem sequer se interessa pelas notícias, e que passa na rua mesmo ao lado dos exemplares do Público espalhados na banca dos jornais, a mensagem errada ficou dada. O jornalismo, pelo menos o de referência, tem também uma função cívica. Ou, pelo menos, deveria tê-la.

                    Citações e informações retiradas da notícia do Público

                      Olhares, Opinião

                      O «barulho das luzes»

                      De férias e por isso com um horário menos pendular, não vi a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Mas chegam-me de todo o lado notícias e impressões sobre a dimensão magnífica e aparatosa do acontecimento. Acredito que sim, que assim foi. O governo chinês investiu muito neste momento e detém, como todos sabemos, condições e instrumentos para fazer um trabalho bem feito, varrendo as queixas sobre vozes silenciadas, populações deslocadas, trabalho semi-escravo e direitos humanos espezinhados. Obviamente questões menores diante da «grandeza» do momento, da «capacidade de afirmação» da maquinaria chinesa, da concentração imposta dos meios existentes e da conjugação de interesses de dimensão planetária que suporta o evento.

                      Salvaguardando a diferença imposta pelas tecnologias hoje disponíveis, recordo-me bem, apesar da sombra deixada pelo boicote de 65 países, do espanto do mundo diante da gigantesca coreografia que em 1980 abriu os Jogos de Moscovo. E, via YouTube, já assisti também a cerimónias de enorme «grandeza» e «capacidade de afirmação» em estádios da Coreia do Norte. Em todas essas «grandiosas» manifestações, e apesar da diferença formal que as separa, sempre a mão de uma organização sem falhas, orientada para a consumação da vontade una e a exibição interna e externa dos Estados «dos trabalhadores». Uma capacidade que os Estados democráticos jamais conseguiram igualar, uma vez que não dispõem, felizmente, das mesmas condições para treinarem e para imporem o unânime e o irrefutável.

                      No Público, Inês de Medeiros esqueceu por momentos estes problemas e concentrou-se na disposição cinematográfica concebida em Pequim por Zhang Yimou, o talentoso realizador que trocou as incertezas da ex-condição de rebelde por um cartão de militante do PCC e pela confiança das autoridades. Já Ruben de Carvalho exultou com a forma como, através do espectáculo de projecção global posto em marcha, a China «procurou transmitir valores de inteligência, do valor do saber, da comunicação e do entendimento entre os homens». Fazendo questão de frisar, com indisfarçável satisfação, que «falharam completamente as “previsões” que, por um lado, anunciavam uma liturgia totalitária e, por outro, uma expressão de agressivo nacionalismo». Chama-se a isto ampliar o «barulho das luzes».

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                        Sem blogues

                        Não sei quantas pessoas lerão por dia os blogues portugueses de opinião e ideias, mas aceitando que uma boa parte delas segue diariamente sete ou oito, o seu número ascenderá, sem dúvida, a muitos milhares. Dez mil? Vinte mil? Mais ainda? Julgo que ainda ninguém conseguiu fazer tal contabilidade, nem sequer no âmbito daquele padrão de inquérito sociológico que depois permitirá diversas extrapolações. Mas serão muitas pessoas, muitas mesmo, sempre bem mais do que aquelas que lêem alguns jornais de âmbito nacional. Na comparação com estes é ainda necessário ter em conta que aqueles que acompanham certos blogues os lêem na quase totalidade, enquanto os leitores de jornais se centram neste ou naquele texto.

                        Parece-me pois deslocada uma frase de Miguel Sousa Tavares, usada na crónica que saiu hoje no Expresso, segundo a qual «sinal dos tempos e do país em que nos estamos a tornar, a morte de Alexander Soljenitsine não ocupou mais do que um curto obituário, preenchido com banalidades, mesmo nos jornais ditos “de referência”». Se passasse uma vista de olhos pela blogosfera, o conhecido colunista e escritor de sucesso teria percebido como a vida e a obra de Soljenitsine nela foram destacados e até debatidos. A vaga de alusões, de leituras e de informações que emerge dos blogues, independentemente da sua dimensão e valia, é, aliás, indicador de uma atenção por temas de interesse mais ou menos público que passa por um universo de comunicação que Sousa Tavares, com toda a legitimidade e talvez algumas boas razões, insiste deliberadamente em ignorar. Problema seu, naturalmente.

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                          Vergonha global

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                          O governo chinês prometeu aquilo que todos sabíamos que jamais iria cumprir. Os honoráveis Comités Olímpicos fingiram que acreditaram. Os governos democráticos fizeram de conta que não era com eles. Os partidos políticos não consideraram o assunto uma prioridade. A Amnistia Internacional e outras organizações não-governamentais têm sublinhado a constante violação dos direitos humanos na China, mas a sua voz raramente passa das páginas interiores, dos suplementos de faits-divers, das entrelinhas do teletexto.

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                            O programa dos ínfimos

                            O louco da aldeia representa sempre um duplo papel: funciona como divertimento daqueles que são incapazes de escapar às rígidas normas da vida comunitária e descodifica a realidade através de metáforas inusitadas e enigmáticas. Aquilo que diz raramente faz sentido, mas é sempre escutado. São esses os sinais da diferença que o tornam ao mesmo tempo relevante e rejeitado. Suspeito que em sociedades mais complexas ele possa perder a importância primordial, dada a proliferação de códigos e de vozes. Porém, quando vejo na televisão o programa A Liga dos Últimos, perco a certeza de que a sua função originária se tenha tornado descartável.

                            A pretexto de uma ideia inicial curiosa – encontrar e mostrar a alma das piores equipas do futebol federado – passou a organizar-se ali uma espécie de vitrina nacional para pessoas dementes, bêbedos incorrigíveis, mulheres subjugadas, idosos senis e pobres diabos. Pessoas sem dinheiro, sem poder, sem instrução, de roupa disforme e dentes invariavelmente estragados, que, de tão contentes por defenderem o clube da sua terra e de por uma vez sem exemplo lhes ser dada voz, se deixam humilhar diante de todos. Uma iniciativa indigna que nos deveria encher a todos de pena e de tristeza. Mas que a estação «pública» passa sem remorso – e com a exibição de um ar de obsceno gozo da parte dos apresentadores – no horário nobre das sextas à noite.

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                              Errantes e extravagantes

                              Tal como muitos outros gadje, mais ou menos instruídos e ciosos de exotismo, que até um passado recente recolheram, a ocidente, a tradição iluminista de deferência por quem nos chegava do Levante, partilhei um dia uma certa atracção pela figura, supostamente misteriosa e refractária, do cigano. O retrato de Carmen, a tabaqueira sedutora de Mérimée e de Bizet, como a silhueta da beldade dançante de flamenco, a «linda cigana», reproduzida nos maços de Gitanes que fumei aos milhares ou em quadros decorativos para as paredes da classe média da província, acompanhavam, a par do interesse menos comum por algumas das Rapsódias Húngaras de Liszt ou pela guitarra de Django Reinhardt tocando Les Yeux Noirs, a atracção quase atávica por esse universo paralelo que imaginava livre e feliz. E fazia esquecer o rasto de pobreza, fedor, lixo e desolação deixado pela maioria dos ciganos que conhecia.

                              Talvez seja nessa romantização orientalista e partilhada da figura do cigano, ou da sua cultura própria – associada a uma absolutização dos valores da solidariedade para com os humilhados e os diferentes -, que reside a origem de um certo desinteresse de alguns dos defensores do Estado social pelos destinos das comunidades romani. Em Portugal, muito mais que em Espanha ou em França, onde uma presença e uma tradição cultural afirmativa empurraram as populações nómadas, ou recém-sedentarizadas, para outro patamar de visibilidade social, essa idealização e essa displicência conduziram a uma situação dramática. Saber, seguindo os dados publicados no Expresso, que, entre os cerca de 50 milhares de ciganos portugueses apenas existem 4 licenciados, e que 35.000 deles recebem o Rendimento Social de Inserção (o que não impede uma parte significativa de se dedicar à mendicidade), não pode deixar-nos apenas atónitos: deve deixar-nos também tristes pelo espectáculo de miséria humana que apenas os focos mediatizados de exclusão, de racismo ou de violência, e os relatórios da PSP e da GNR, tornam visível. E não nos venham dizer que é lá com eles e com a sua cultura extravagante, resistente e persistentemente «admirável». É preciso fazer mais, muito mais. De um modo fraterno mas também com firmeza. Ouvindo e falando.

                              P.S. em 28.Jul.2008 – Se as afirmações de um dos fundadores da União Romani Portuguesa e do coordenador do gabinete de apoio às comunidades ciganas junto do Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural, transcritas hoje pelo Público, captam a essência das suas declarações ao jornal, estamos perante um bom exemplo de atitudes que mostram uma preferência por conhecer ou compreender a «admirável» diferença, ou mesmo por atribuir apenas a um dos lados a culpa da «guetização», em vez de promoverem condições para uma afirmação conjugada da integração, da afirmação identitária e da valorização desta minoria no âmbito da nossa vida colectiva.

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                                A ignição iraniana

                                Se bem que a sua sombra assome ainda em algumas evocações, a Guerra Fria terminou com a liquidação da União Soviética. Não pode dizer-se, porém, que o mundo que lhe sucedeu seja mais seguro do que aquele que lhe serviu de cenário, e prova disso é que um dos espectros que alimentou – o de uma guerra nuclear causadora do Armagedão – continua presente. Tal como há trinta ou quarenta anos atrás, a fonte do perigo reside menos na capacidade do armamento do que nas mãos de quem dele se possa servir.

                                A verdade é que as armas de destruição maciça incorporam um perigo potencial que advém, em primeiro lugar, do facto de a sua gestão ser de natureza humana e, nessa condição, de o seu uso jamais poder ser inteiramente previsível. Só que existem imprevisíveis menos imprevisíveis que outros, e colocar em idêntico plano a posse de armas nucleares pelos Estados Unidos e por Israel, ou mesmo pela China, com aquela que ocorre em países instáveis, como o Paquistão, ou que se encontra nas mãos de fanáticos como o são muitos dos dirigentes iranianos, tal como António Vilarigues deixa hoje implícito no Público, é pura demagogia.

                                Para relativizar o perigo iraniano, assevera mesmo AV que algumas dessas armas se encontram igualmente nas mãos deu um Estado, Israel, «que se reclama de origem divina». Como se a identidade cultural e religiosa do Estado hebraico – não falo, naturalmente, dos grupos de extremistas judaicos que também o habitam – possa ser comparável à do Irão, onde o recuo civilizacional imposto por uma leitura literal do Corão se tem traduzido numa presença no poder de sectores que associam a prática política à dimensão, primordialmente religiosa e penitencial, da vida terrena. Todos sabemos como os falcões americanos ou israelitas não são propriamente meninos de coro, mas a verdade é que eles movem-se no interior de regimes democráticos, sob um razoável controlo da opinião pública e da comunidade internacional: torná-los piores que os iranianos é puro dislate. AV recupera também, pela enésima vez, os exemplos abomináveis de Hiroshima e de Nagasaki, mas qualquer pessoa sensata concordará que evocá-los como molas percutoras da actual política internacional americana é tão anacrónico como servir-se do Pacto Gernano-Soviético de 1939 para atacar a linha política dos actuais partidos comunistas.

                                Em Persepolis, a perturbante banda desenhada autobiográfica entretanto transformada em filme de animação, Marjane Satrapi fala-nos desse universo no qual a razão de Estado e os direitos das pessoas comuns (ali principalmente os das mulheres) se encontram submetidos à voracidade dos impulsos motivados por uma moral redentora cuja essência está para além do humano. O slideshow que aqui se apresenta permite-nos também revisitar parte desse universo tão próximo. É nas mãos de gente que admite, estimula ou legitima a violência extrema que este «normaliza» que pode estar, ou que pode vir a estar, a capacidade de manipulação de armamento nuclear. Colocar esta situação ao mesmo nível, ou a um nível menos ruinoso, daquele que pode ser associado a outros países que o utilizam hoje «apenas» como instrumento de dissuasão ou de chantagem – ou, pior, conferir-lhe uma dimensão emancipatória (embora não seja esta, sublinho, a posição de AV) –, só não é uma atitude de cegueira porque se funda numa linha política cujo suporte ético transforma sistematicamente em amigo, ou pelo menos em aliado, o inimigo do inimigo. Ainda que este possa encarnar o Mal na sua formulação mais absoluta e manifesta. Que importa isso perante a possibilidade de dar um bom puxão de orelhas aos bastardos do Império?

                                Clique nos botões para mover o slideshow.
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                                  Uma história muito antiga

                                  Miguel Portas não diz nada de singular na entrevista que concedeu à revista Visão desta semana. Mas certas vezes é isso mesmo que gostamos de ouvir: apenas o relembrar de temas que nos preocupam há muito mas que, sob o ruído dos nossos próprios passos, cansados pelas urgências que nos desviam do essencial, tendemos, se não a esquecer, pelo menos a colocar entre parêntesis. Gostei de o ouvir recordar que existe, no comunismo, «uma dimensão de crença que se mistura com esperança». E também de sublinhar a sua estrutura religiosa – no sentido mais completo que a expressão pode tomar, como adequação a um sistema relativamente fixo de pensamento, incorporando liturgias e tradições – que o relaciona, por vezes, com «uma estrutura hierárquica» e com um conjunto venerando «de ritos e práticas que consagram a própria doutrina». Gostei ainda de o ver rememorar a inevitabilidade da  tendência que esta assume para transformar «deuses pagãos em santos» e para ter os seus próprios sacerdotes. Mas também para se alinhar numa «história muito antiga de luta contra as injustiças» que, essa, é imortal. E que, enquanto tal, à margem dos oficiantes e dos fiéis que a todo o instante a desviam ou pervertem, sempre nos transcenderá. O que hoje pouco tem a ver com Marx, e menos ainda com Lenine ou os seus discípulos, que serão apenas marcos milenares, apenas notáveis acidentes de percurso.

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                                    Um cheiro a pólvora

                                    A condenação do sequestro de Ingrid Betancourt e da utilização de reféns como princípio de acção política feita agora por Hugo Chávez e por Fidel Castro – muito tempo depois de o poderem ter declarado com outra força e outra legitimidade, e não apenas nesta altura, sob a pressão da opinião pública mundial -, ainda que suave, deixa sem argumentos os indefectíveis defensores do carácter «glorioso» da actividade das FARC. Assobiarão para o lado ou inventarão qualquer coisa, claro. Os mais teimosos agarrar-se-ão ainda mais ao seu mundo obsoleto e perigoso. Ao seu ideal de revolução lançada contra o «inimigo de classe» e necessariamente temperada, como diria o coronel Bill Kilgore (interpretado por Robert Duvall) em Apocalypse Now, «com um cheiro a pólvora pela manhã».

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