Tão rápido no intento de humilhar os funcionários públicos reduzindo-os à condição de culpados de todos os males da nação, e aceitando que sejam afastados aqueles que em palavras ou actos desrespeitem a «nova ordem», o governo continua a condescender com o tom ostensivamente agressivo e provocatório usado pelo funcionário público Alberto João Jardim para se referir ao primeiro-ministro ou aos ministros do governo da República. Não que a situação seja nova, evidentemente, mas ela atingiu agora níveis extremos e absolutamente intoleráveis. As referências recentes à suposta falta de dinheiro para financiar a IVG na Região Autónoma da Madeira – quando se gasta o quádruplo a financiar um rali, se delapidam somas brutais para pagar o fogo-de-artifício do reveillon, ou se paga para que os dois clubes madeirenses de futebol estejam entre os cinco clubes portugueses que de maiores orçamentos dispõem – acompanhando essas referências dos insultos mais ordinários aos representantes do Estado, exigem-se medidas e não apenas vagas declarações de virgens ofendidas (mas um pouco distraídas também). Um caso sério de chantagem e de insubordinação que deveria merecer, no mínimo, uma advertência pública por parte do Presidente da República, do primeiro-ministro e do Tribunal Constitucional. Mas para tal, convenhamos, «hay que tenerlos».
Sem a repercussão do artigo de Manuel Alegre, passou quase despercebida a entrevista de António Arnaut ao semanário Visão. No entanto, desprovida do tom aparatoso e plangente de Alegre, ela parece-me muito mais pedagógica e, ao mesmo tempo, capaz de evidenciar o profundo desencanto da geração dos fundadores com os caminhos que vem seguindo o actual PS. Uma abordagem desiludida, mas de certa forma sábia, que não soa a ressentimento, assumindo o que lhe parece ser a inevitável transitoriedade da geração agora no poder. Descreve-a assim Arnaut: «É um produto das circunstâncias. Noto falta de cultura cívica. É gente sem reflexão sobre os comportamentos, a arte, a literatura e a história do nosso povo. (…) Muitos deles não têm uma ideia para Portugal, não reconhecem o país. Vivem do imediatismo, da conquista do poder. Conquistado, vivem para aguentá-lo. Esta geração vale-se mais da astúcia que da seriedade. E aprendeu os ensinamentos de Maquiavel.» Vale a pena ler a entrevista completa.
Liga-me aquilo que Manuel Alegre representa um conjunto de sentimentos contraditórios. Não aprecio o estilo grandiloquente (que já apreciei, aliás, quando ouvia os mesmíssimos tom e timbre de voz na Rádio Voz da Liberdade). Não gosto dele como poeta (embora reconheça a importância simbólica e patrimonial da sua «poesia de combate»). Não sinto grande empatia em relação a um padrão de discurso político assente em pressupostos estritamente éticos (que pode ser respeitável mas já pouco diz aos portugueses com menos de trinta anos). E parece-me excessiva, quando não um tanto ridícula, a construção de uma imagem de geronte do regime, falando «para a estatuária», da qual o próprio parece gostar e que a concepção editorial do artigo que hoje editou no Público(«Contra o medo, liberdade») acaba por alimentar.
Já simpatizo, porém, com a forma como insiste, a contracorrente, no concurso da coerência de princípios para a credibilização (ou na descredibilização) da política e dos políticos. Tal como gosto da forma como tem sublinhado que – por múltiplas razões, entre elas uma efectiva despolitização dos aparelhos partidários – a política não se esgota nos partidos e só fará bem a estes e à própria democracia reconhecê-lo. E, acima de tudo, admiro a sua capacidade para, numa época na qual a esmagadora maioria dos melhores quadros do país se desvinculou claramente da política activa, afirmar que a capacidade de decisão não pode ser «erigida num fim em si mesmo, quase como uma ideologia.» Poucos o dizem e menos ainda são capazes de levantar a voz em favor dessa dimensão crítica e prospectiva da política que é, no fundo, a sua alma. Uma atitude que a lógica «aparelhística», assente na coacção e na fuga ao debate, presa à defesa amoral dos pequenos e grandes interesses de grupo, e à incapacidade de pensar o futuro em termos de desígnio, tem vindo a apresentar como «irrealista» e descartável. Nesta direcção, o artigo aparatoso e amargurado de Manuel Alegre tem algum valor. Temo é que esse valor seja apenas histórico.
Diante do recém-editado livro autobiográfico de Zita Seabra (ZS) é muito difícil sustentar um registo de equidade crítica quando a maior parte do que lemos insinua uma rejeição que nem sempre é boa conselheira. Como seria de esperar, a recusa apriorística da possibilidade de ler o livro instalou-se, de imediato, entre pessoas mais ou menos próximas do Partido Comunista ou dos sectores situados à esquerda do PS. E muitas daquelas que o leram, fizeram-no sobretudo à procura das imprecisões ou dos juízos que permitissem depreciar o que a autora escreveu. Acontece, porém, que contando-me entre os portugueses que se distanciaram no passado e se distanciam hoje das posições públicas de ZS – relembro apenas o seu apoio à campanha pelo Não no referendo sobre a IVG e a sua actual assumpção como parte da ala direita do PSD –, me interesso também pela história recente. Tenho, por isso, uma certa obrigação de me esforçar para compreender a utilidade deste volume.
Livro algum tem necessidade de justificar a sua existência. Porém, não sendo analista, historiadora ou política no activo com um papel relevante, não se encontrando ainda em idade de fazer um «balanço de vida», não tendo nada de particularmente novo para contar e escrevendo até com alguma dificuldade, para quê dar-se a autora ao trabalho de falar publicamente sobre o seu próprio passado? Deixarei para o final deste texto uma tentativa de resposta a esta questão.
Foi Assim relata a infância, a juventude e a vida adulta de ZS sensivelmente até à sua expulsão do PCP, ocorrida em Janeiro de 1989, centrando-se particularmente na experiência de clandestinidade, na intensa actividade pública que manteve nos anos que se seguiram a 1974 e no processo que levou ao seu isolamento político e pessoal dentro do PCP. Todavia, de tudo isto, de um tempo tão intenso, de uma relação tão estreita que manteve com a intervenção dos comunistas na sociedade, nada do que ZS conta se mostra particularmente novo ou interessante, tanto ao nível dos processos como dos métodos. A referência que faz à vida na condição de clandestina, à actividade na UEC, ao seu papel durante o PREC e na Assembleia da República, não contém algo que não se encontre já bem documentado e que, provavelmente, apenas interessará a quem estiver fora destes temas e, levado pela campanha mediática em redor do livro, se decida a comprá-lo. Presumo, no entanto, que, de entre este eventual núcleo de leitores, poucos serão aqueles que o conseguirão ler até ao final. Ou, pelo menos, que serão capazes de o ler com a devida atenção.
De facto, o texto encontra-se escrito de uma forma absolutamente surpreendente para quem o sabe da responsabilidade de uma pessoa que rompeu com o PCP há já quase vinte anos e tem vindo a tomar posições cívicas que a distanciam claramente dessa área de origem. No entanto, a linguagem utilizada, a rígida ética que lhe subjaz, o jargão utilizado na análise do tempo e dos factos aos quais se reporta, são impressionantemente próximos daquele que foi, e em certa medida ainda é, o discurso-padrão dos comunistas. Torna-se quase insuportável para um leitor consciente deste aspecto o modo como ZS usa a «língua de madeira» comunista para falar, de uma forma que se pretende analítica, da sua relação com a experiência de luta e de organização do PCP. Muitas frases revelam essa fala ancorada no passado, feita de clichés, liturgicamente repetidos ao longo de décadas e que, estranhamente, a autora mantém intactos, deles se servindo a todo o momento: «comportamento exemplar» (p. 53), «eivado de irrealismo e de voluntarismo» (p. 65), «um camarada altamente responsável» (p. 71), «um camarada de confiança» (p. 83), «teve bom porte na PIDE» (p. 153), «regressou com uma ampla publicidade» (p. 163), «era uma revolucionária profissional, uma verdadeira bolchevique» (p. 187), «os controleiros das faculdades e os militantes mais destacados» (p. 211), «tal como Lenine ensinou e nós aprendemos» (p. 235), «Amílcar Cabral gozava de prestígio» (p. 250), «só a verdade nos libertará» (p. 436). E a listagem poderia ser multiplicada por dez, quinze ou vinte vezes.
Acrescento ainda este fragmento que parece tirado de uma qualquer cartilha ou de uma proclamação do PCP da era pré-Abril: «Ia finalmente passar à acção directa e preparar a queda do regime através da revolução democrática e nacional, à qual se chegaria pela insurreição popular armada, primeira etapa da revolução socialista. Só após a instalação da ditadura do proletariado se encontraria o caminho livre para a forma suprema de organização da humanidade: o comunismo.» (p. 151). O mesmo posso dizer da sua explicação do «centralismo democrático», que parece tirada de uma síntese escolar do Que Fazer?, de Lenine (p. 174). ZS não se reverá agora, naturalmente, nestas posições, mas a forma como mantém este conjunto de fórmulas para «explicar às criancinhas» o sentido da crença que partilhou com milhares de outros comunistas portugueses, não só não é abonatório da sua actual capacidade de análise, como, e acima de tudo, define um discurso extremamente equívoco, entediante para quem já as conhece e incompreensível para quem, ao ler isto, delas toma conhecimento pela primeira vez.
Esta maneira de escrever parece-me indissociável do percurso cultural da autora. Todo este livro revela uma formação exígua ao nível das leituras (apenas alguns romances e textos teóricos que qualquer pessoa da sua geração e extracto sociopolítico leu), das práticas culturais específicas (quase exclusivamente confinadas ao gosto interrompido pelo ballet), dos interesses por um saber não instrumental. O próprio conhecimento dos clássicos do marxismo-leninismo se afigura insuficiente para uma pessoa que teve as responsabilidades políticas de ZS, o que é revelado na admiração que ainda hoje nutre por quem o detinha (como José Pacheco Pereira, Miguel Portas e, naturalmente, Álvaro Cunhal) e exemplifica o nível da formação teórica de muitos dos quadros comunistas portugueses. A mesma coisa no que se refere aos gostos artísticos (as referências musicais ou do campo da pintura são de uma banalidade atroz, mesmo para a época, não faltando sequer a referência sacramental à Guernica de Picasso) ou ao gosto pelo cinema, que reconhece ter sido muitíssimo limitado pelas imposições da vida clandestina e que, com toda a certeza, não terá podido recuperar nos anos do PREC. Algo de manifestamente estranho, aliás, para quem, entre 1993 e 1995, foi presidente do Instituto Português de Cinema e do organismo que lhe sucedeu. Não é pois de estranhar que, a dado passo, se refira ao filme Emmanuelle como sendo… «pornográfico» (p. 426).
Uma outra área na qual o desconhecimento de ZS se me afigura chocante refere-se às práticas e aos processos organizativos dos sectores que agrupa na designação canónica, leninista, de «esquerdistas». Esta atitude, muito comum entre a generalidade dos antigos militantes ou simpatizantes do PCP que estiveram ligados ao sector estudantil, não é para mim novidade. Mas perceber esta perspectiva limitada e confusa daquela que foi a sua principal dirigente nos anos finais do regime, é, no mínimo, perturbante. Como o é o não ter lido um pouco, antes de escrever, para se informar melhor.
Já tenho alguma dificuldade em pronunciar-me sobre a parte mais apelativa do livro – a situada no domínio da petite histoire – e que é também aquela sobre a qual se podem colocar maiores dúvidas relacionadas com uma interferência profunda da subjectividade ou um questionamento da veracidade de alguns dos episódios relatados. Não me repugna, confrontando este testemunho com outros (como aquele recentemente publicado por Raimundo Narciso), aceitar o carácter complexo, para não dizer tortuoso, da personalidade de Álvaro Cunhal (o «Camarada» que marcou para sempre a vida de Zita). Nem reconhecer a atitude sectária, frequentes vezes seguidista, da generalidade dos apparatchiks do PCP (a sessão do plenário do Comité Central no qual ela foi expulsa do mesmo, do qual por certo existirá uma acta, é particularmente denunciadora de uma crua incapacidade para se aceitar a diferença fora dos processo do «centralismo democrático» e de se reconhecer o que de «bom» fez uma camarada marcada a partir daquela altura pelo «mal»). Mas grande parte do que se conta – algumas frases e atitudes do «Camarada», a confirmarem-se são particularmente abjectas no plano meramente humano – permanecerá no âmbito do testemunho estritamente individual. Sobre esta fase de ruptura, existem já outros depoimentos publicados – entre eles um livro da própria ZS, O Nome das Coisas, escrito «a quente» e editado logo em 1988 –, bem como uma possibilidade de se obterem relatos de pessoas vivas, que permitirão aferir melhor o processo que a autora descreve.
A leitura encontra-se também marcada por traços de personalidade e de estilo de ZS que, sendo respeitáveis na dimensão da sua idiossincrasia, tornam por vezes penosa a comunicação com o leitor. Desde logo as inúmeras provas de arrogância e de exposição de uma dimensão quase providencial das decisões que foi tomando. «Eu fiz», «eu resolvi», «eu escolhi», «eu decidi» são expressões pouco agradáveis para a cultura democrática ou para a educação de muitos daqueles que a lêem. Um exemplo apenas: referindo-se à altura em que, em 1974, Cunhal se tornou ministro sem pasta do governo, conta ZS: «passei-lhe de imediato o Domingos Lopes para chefe de gabinete». Tanto quanto sei, Domingos Lopes não será propriamente um cachecol ou uma garrafa térmica. A afirmação desta «personalidade difícil» é ainda complementada, negativamente, pela inépcia absoluta para lidar com o humor ou com a ironia: mesmo alguns episódios realmente engraçados que conta são, no discurso de Zita, passados à condição de mais um elemento na enumeração dos factos que relata, sem uma exploração literária que melhoraria o prazer da leitura e a aproximaria um pouco mais de quem a lê. A mesma coisa em relação à vida amorosa e aos afectos, pelos quais passa sem referência praticamente alguma, se exceptuarmos o «sentimento de culpa» que, sendo filha única, de certa forma sente pela separação que deles voluntariamente manteve. Ao contrário daquilo que já li, mesmo a referência a Sita Valles, a notável militante comunista que viria a ser torturada e executada em Angola após o falhanço do golpe militar dirigido por Nito Alves, me parece mais do domínio da admiração do que de uma efectiva amizade. Falo daquilo que percebo pela leitura, naturalmente, não daquilo que Zita Seabra eventualmente sentirá e que, por formação ou por deformação, se esforça a todo o momento por esconder.
Volto então à questão colocada inicialmente. Para que serve afinal este livro da Aletheia, marcado por um grafismo propositadamente decalcado das Edições Avante!, ampliado por uma intensa campanha mediática e colocado nos escaparates melhor situados das lojas da Bertrand e da FNAC? Para ser lido, como escreveria o senhor de La Palisse. Mas quem o lerá? Presumo que, para além de uns quantos interessados na nossa história recente, de alguns quadros partidários, e, por dever de ofício, de um ou outro opinion maker, talvez a parte do público estigmatizada ainda pela cultura do anticomunismo, ou aquela outra que espera encontrar neste livro uma versão circunspecta da má-língua de Catarina Salgado. Sob este aspecto, podem desenganar-se. Pouco lhes interessará a vida da mulher que sempre gostou de usar sapatos vermelhos.
Zita Seabra (2007), Foi Assim. Lisboa: Aletheia Editores. 442 páginas.
Existe um livro de João Martins Pereira – No Reino dos Falsos Avestruzes, editado em 1983 pel’A Regra do Jogo – que, apesar de visivelmente datado sempre que refere determinados aspectos da vida política portuguesa da época, merece ser revisitado com alguma atenção, suscitando o reencontro com um padrão de reflexão política hoje praticamente inexistente. Quase ao acaso, dou de caras com uma frase sublinhada naquela altura: «A banalização do adjectivo «utópico» num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha». Nesse mesmo ano, Tony Blair entrava pela primeira vez para o Parlamento britânico: o resto da história é conhecido.
Num passado ainda recente, na prática dos grandes partidos institucionais, certas coisas pensavam-se e faziam-se, mas não se diziam. Existia, ao nível do menor denominador comum da opinião pública, uma ética que descriminava quem verbalizava ideias, quem propunha atitudes, que contrariavam os fundamentos da vida democrática. Esses tempos passaram, e, como todos eles, foram substituídos por outros, nos quais a gente que ainda há algum tempo estava caladinha e quietinha perante o perfil ético e o passado de muitos dos quadros presentes na política activa, tomou o poder e só não perdeu a vergonha porque, de facto, jamais a teve.
Pelas 12 horas e 50 minutos de hoje, ouvi no Rádio Clube de Coimbra (delegação do Rádio Clube Português), o président directeur général da Comissão Distrital do Partido Socialista e actual deputado Vítor Baptista, afirmar, num tom muito exaltado, que cargos como os de directores de hospitais e centros de saúde, ou de chefia de direcções-regionais, devem ser da confiança política do governo e cessar funções sempre que o partido de governo muda. E dizer que estes jamais deverão admitir que os seus subordinados exprimam internamente posições críticas do governo que lhes paga. Sabendo que a figura em causa é um dos mais consabidos exemplos do estado a que chegou o actual partido do poder, e da indigência política (e cultural, já agora) de uma grande parte dos seus apparatchiks, a desfaçatez não admira. Algo ingenuamente, confesso, pensava porém que estas pessoas ainda cuidavam minimamente das aparências. Pelo que oiço, já perceberam que não precisam de o fazer.
Através do João Tunes, cheguei a este texto do Marcelo Ribeiro. Uma espécie de carta-aberta, e um testemunho muito pessoal, exprimindo uma indignação e uma preocupação que democraticamente partilho. Embora ainda considere mais indigna, e mais preocupante, a sórdida legitimação da «bufaria», por parte de diversos responsáveis do partido do governo, que a repetição deste tipo de actos tem vindo a configurar. E muitos outros permanecem ainda fora do conhecimento público, como muito bem sabe quem anda de olhos abertos pela «vida real» de diversos organismos dependentes do Estado. Um sinal dos tempos que não pode ser tolerado. Seja qual for o percurso de quem o alimenta ou, pela via do silêncio, com ele pactua.
Há alguns meses atrás, da actividade de uma outra (ou seria a mesma?) comissão patrocinada pelo governo e financiada com dinheiros públicos, tinha transpirado a recomendação peregrina de fazer aumentar em flecha os descontos dos trabalhadores para a segurança social, diminuindo imenso os salários reais. Agora, a Comissão para o Livro Branco das Relações Laborais, ao fim de dois anos de reuniões devidamente remuneradas, concluiu «cientificamente» que a solução para o saneamento do mundo do trabalho se encontra em medidas como a redução das férias de 25 para 23 dias úteis, a simplificação dos despedimentos, o fim das diuturnidades e a transferência para os privados da responsabilidade pelas reformas dos trabalhadores. Não me espantará que o próximo passo seja sugerir que os funcionários que não recebam a classificação de «excelente» vejam reduzido o horário do almoço, usem um indicativo visual e/ou passem a auferir de metade do vencimento. Quanto aos deveres dos «empregadores», claro, nem uma palavra. Toda esta conversa de defensores da destruição selvagem do welfare state é patrocinada por um governo que nas últimas eleições ainda se declarou «socialista». Tudo isto com o silêncio dos defensores dessa sacrossanta «modernização» (tendência «Joe Berardo», presumo) que vale por si mesma, esmagando as pessoas que deveria servir. Será que esta gente quer mesmo recuperar a luta de classes dos confins da nossa história recente?
Adenda – Este post não é alarmista. Sei perfeitamente que governo não irá avançar, pelo menos nos tempos mais próximos, com medidas legislativas que possam dar seguimento a todas estas propostas. Mas o simples facto delas existirem, de serem produzidas no contexto da actividade de uma comissão de iniciativa governamental, e de, lamentavelmente, o Partido Socialista não ter aberto a boca sobre o assunto, parece-me muito preocupante.
A entrevista feita por Alexandra Lucas Coelho que saiu no último Ípsilon a propósito de mais um romance de Baptista-Bastos, retoma algumas questões recorrentes sempre que se fala deste (ou com este) jornalista e escritor. Começo por dizer que não sou um seu grande admirador: não aprecio particularmente o estilo da escrita (convém dizer que BB gosta muito de Agustina, Saramago e Mário Cláudio, três escritores portugueses que sinceramente dispenso dos meus planos de leitura), tal como não gosto do tom paternalista e auto-referencial da sua forma pública de falar com os outros e dos outros. Também me distancio de um certo “conservadorismo de esquerda”, marcado pelos requebros de casmurrice e de nostalgia que o caracterizam. Ao mesmo tempo, porém, concordo e simpatizo com algumas das suas posições públicas, nomeadamente com aquelas em que associa o lugar cultural do jornalista (e do jornalismo) a uma atitude de intervenção na vivência da cidadania.
É este aspecto que volta a ter um grande destaque nesta entrevista, ao ponto do suplemento incluir um depoimento de Miguel Sousa Tavares e um artigo de Adelino Gomes nos quais ambos, e particularmente o segundo, procuram contrariar a repugnância de Baptista-Bastos pela defesa do distanciamento e da «santa objectividade» (uma expressão utilizada positivamente por Mário Mesquita) como chaves do «bom jornalismo». Não chego ao ponto de dizer que concordo inteiramente com esta repulsa, pois reconheço que, muitas das vezes, sem um esforço de imparcialidade o jornalismo cai facilmente no panfleto ou, pior ainda do que neste, no território da asneira. Mas parece-me também que o jornalismo engagé e «de tarimba» – não apenas de escola superior, mas de formação, sensibilidade e experiência – faz muita falta para alimentar um nervo mobilizador do interesse (e da paixão) do público, ajudando este, ao mesmo tempo, a definir e a tomar posições. Preferia ler jornais onde um e outro dos estilos pudessem competir na captação de leitores e na diversificação da opinião. Não apenas o jornalismo padronizado, asséptico, «técnico», no qual já nem sequer a diferença determinada pelo estilo e pela personalidade do jornalista muitas vezes se percebe. É este jornalismo que Baptista-Bastos detesta, criticando-o em nome desse outro jornalismo do qual se sente cada vez mais a falta. Eu, pelo menos, sinto.
A pergunta parece gasta, mas não excedeu ainda o prazo de validade. Poderemos continuar a integrar, como instrumento do combate social e da representação contemporânea do mundo em mudança, o binómio esquerda-direita? A melhor forma de responder à questão talvez seja pensá-la colocando de lado os apriorismos que transformaram «esquerda» e «direita» em ídolos ou em meras etiquetas. Porque a identificação da «esquerda» e da «direita», e a actualização do seu perfil, são tarefas bem mais complexas que o simples enunciar de profissões de fé apoiadas na invocação de símbolos ou de tradições.
E são-no ainda mais neste presente fluido que relativiza práticas e valores, perturbando o universo mais simples no interior do qual as duas categorias historicamente se separaram. Afinal, Bush e Blair contestam a restrição dos direitos humanos e apelam à redução das desigualdades, ainda que tenham contribuído para as aprofundar. Ao mesmo tempo, Castro e Chávez praticam o autoritarismo e o silenciamento daqueles que se lhes opõem, apesar de serem apresentados por alguns como paladinos da democracia. O CDS fala de liberdade de expressão, enquanto o PCP relativiza constantemente o conceito. Os partidos socialistas e social-democratas permanecem erráticos, com programas repletos de expressões vagas utilizadas para fins eleitoralistas, rapidamente substituídas por atitudes pragmáticas na gestão do quotidiano, de acordo com aquela que consideram ser uma «perspectiva moderna» da política.
Foi-se, de facto, o tempo das barricadas, quando as bandeiras pareciam cravadas nas mãos certas e no seu lugar natural. Mas devemos fazer a crítica desta ambiguidade recorrendo a um processo de separação que nos ajude a compreender onde se distanciam ou começam a confundir-se a defesa dos princípios essenciais dos programas políticos e a prática da mais sórdida demagogia. Colocando o problema no campo do que é essencial, Norberto Bobbio considerava que, em última instância, a distinção entre direita e esquerda acaba sempre «por se converter na distinção entre sagrado e profano», dentro da qual se inserem outras diferenças, como «a que existe entre ordem hierárquica e ordem igualitária, e entre comportamento tradicionalista, favorável à continuidade, e comportamento voltado para o que é novo ou progressista, favorável à ruptura, à descontinuidade». Esta é, no fundo, a sobrevivência da tradição divisória que vem da Revolução Francesa e que, sem coagir em demasia a procura de novos caminhos, nos pode ajudar a separar as águas e a encontrar uma alternativa, questionando a traição aos princípios fundadores sem deles fazer territórios inamovíveis.
Procurarei abordar aqui – num conjunto de posts obrigatoriamente diferidos no tempo – o modo como, no campo da esquerda, essa grande traição se tem vindo a afirmar. Viajarei pelo processo de perversão de alguns dos seus fundamentos, apoiados nos ideais de liberdade, de tolerância, de igualdade, de laicidade, de emancipação ou de progresso. Justamente aqueles que, permanecendo marmóreos nas declarações de princípios, têm vindo a ser subvertidos pelos movimentos e pelas experiências que continuam a reivindicar a parte mais substancial da sua herança.
Um dos pequenos dramas domésticos mais comuns consiste em desejar ardentemente cortar o som da televisão, ou mudar o canal, e não se saber onde raio poisámos o telecomando. Foi o que me aconteceu ontem, obrigando-me a ouvir em alta gritaria, durante alguns minutos, Notas Soltas, a entrevista de Judite de Sousa a António Vitorino que a RTP transmite todas as segundas-feiras. Calculo que este seja um dos programas com mais baixo nível de audiências da televisão portuguesa, apesar de ir para o ar em horário nobre, de anteceder o popular concurso Um Contra Todos, e de muitos cidadãos, em função do título da rubrica e do nome do entrevistado, poderem legitimamente pensar que a conversa verse os meandros da música erudita. A previsibilidade absoluta das ideias, que apenas repetem em modo afável o discurso oficial do governo, a incapacidade para ser-se convincente, mobilizador ou sequer, como Marcelo Rebelo de Sousa, um bom entertainer, transformam aquela meia hora num suplício a requerer medidas céleres de higiene doméstica. E é aí que entra (ou deveria ter entrado) o bendito telecomando.
Não é fácil defender a importância de uma obra como esta. Quando se multiplicam os livros, discursos, colóquios, debates e números de revistas que pretendem colocar em diálogo islamismo e cristianismo, ou que intentam provar «cientificamente» que se completam, e quando a defesa da laicidade parece confinar-se à teimosia de uns quantos excêntricos fora do tempo, não é fácil declarar, e tentar demonstrar, que ambos são males transportando consigo, em quaisquer das suas múltiplas formas, a opressão e a guerra. Mas é isso que procura fazer o filósofo americano Sam Harris em O Fim da Fé. Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, recém-editado pela Tinta da China.
Um dos argumentos centrais deste livro aponta para o carácter negativo de um novo dogma, do qual são portadores os «crentes moderados» e também aqueles que, não sendo pessoas de fé, entendem a religião como uma área intocável e essencialmente positiva da experiência humana: uns e outros «imaginam que o caminho para a paz só será desbravado quando cada um de nós tiver aprendido a respeitar as crenças injustificadas dos outros». O que leva Harris a declarar, e a propor-se mostrar, que, ao invés, «o próprio ideal de tolerância religiosa (…) é uma das principais forças que nos arrasta para o abismo».
Numa recente entrevista ao suplemento Babelia, Fernando Savater afirma, reciclando o velho aforismo de Marx, que «mais do que ópio, a religião é cocaína». Isto é, ela não se limita a anestesiar, a entorpecer, mas é capaz de produzir estados psicóticos produtores de uma suspensão do tempo e de ilusões com um elevado potencial de violência. O livro de Harris parte também, de alguma forma, do entendimento da religião como uma doença, e como uma doença perigosa, cujo alastramento é favorecido por dois mitos que procura desarmadilhar: o primeiro associado ao facto da maioria de nós acreditar «que é possível retirar coisas boas da fé», o segundo vinculado à crença de que as coisas terríveis que por vezes se cometem em nome da religião «são produto, não da fé em si mesma, mas da nossa natureza mais ignóbil (…) em relação à qual as crenças religiosas constituiriam o melhor (senão mesmo o único) remédio».
Todo o volume se constitui então como um tentativa de destruição do mito da «moderação» religiosa e, ao mesmo tempo, como um enunciado do grau de inadequação ao mundo contemporâneo de todas as religiões do «Único Deus Verdadeiro», as quais, aliás, pressupõem sempre «uma ignorância enciclopédia da história, da mitologia e até da própria arte» e impelem o outro, a todo o instante, para um lugar, tolerado ou combatido, de menoridade política e de inferioridade cultural. Se ele se afirmar como apóstata, então a solução será a exclusão ou a morte.
Particularmente examinados são, para além dos traços essenciais da matriz judaica, os fundamentos e as práticas, passados e presentes, do islamismo e do cristianismo. E aqui a crítica é impiedosa, procurando provar o seu carácter arcaico, o potencial de violência que integram, e a periculosidade das posições daqueles que buscam compreender, quando não aceitar, os seus mais terríveis excessos. A argumentação, que recorre constantemente aos textos sagrados, bem como aos discursos e às práticas dos líderes políticos que procuram na religião os fundamentos das suas opções, é verdadeiramente esmagadora, embora, frequentes vezes, bastante perturbante para aqueles que foram educados num universo laico mas tolerante em matéria de religião. Ao mesmo tempo, o recurso constante a factos do passado recente integra o debate em volta dos antigos mitos na discussão sobre os acontecimentos contemporâneos que os invocam e com os quais nos temos visto, e continuamos a ver, constantemente confrontados. Afinal, pergunta o autor, «quando será que nos iremos aperceber de que a indulgência do nosso discurso político em relação às crenças religiosas nos impede de mencionar, quanto mais de erradicar, a fonte de violência mais prolífica da história?»
A presença dos cristãos fundamentalistas na administração americana é mostrada em muitos dos seus assustadores detalhes, mas a crítica do Islão é, sem dúvida, a mais agreste. Tendo em linha de conta a tese proposta, afinal, de que outro modo poderia ser, se, como se sabe, é neste campo que as coisas têm agora ido mais longe? As palavras são duras: «Ao reflectirmos sobre o Islão e sobre o risco que ele representa para o Ocidente, deveríamos imaginar o que seria preciso para vivermos pacificamente com os cristãos do século XVI. Com homens ainda desejosos de perseguir as pessoas por crimes como a profanação da hóstia ou a bruxaria. Estamos hoje na presença do passado. Conseguir estabelecer um diálogo construtivo com estas pessoas, convencê-las dos nossos interesses comuns, incentivá-las a seguir o caminho da democracia e a celebrara diversidade mútua de ambas as nossas culturas, é tudo menos uma tarefa simples.» Tarefa esta que o autor não enjeita, ainda que não se mostre muito optimista em relação aos seus possíveis resultados.
O argumento de Harris faz também cair por terra a ideia de acordo com a qual, resolvidas as desigualdades ao nível da distribuição da riqueza e do desenvolvimento económico, as contradições religiosas desapareceriam, ou, pelo menos, os extremismos que actuam neste campo ver-se-iam isolados e reduzidos a uma expressão residual. O autor mostra como estes aspectos pouco interessam às massas ignorantes de crentes e como os líderes religiosos que lhes alimentam a credulidade e a ferocidade frequentam um universo quase invariavelmente protegido, informado e próspero.
No final do livro, dois capítulos mais densos mas não menos polémicos debruçam-se sobre a essência do fenómeno religioso e sobre o valor positivo de uma espiritualidade liberta da religião. Outro tenta enunciar uma posição positiva no sentido da definição e alargamento de um grande campo de combate cultural à presença e à influência das religiões. Um interessante posfácio procura ainda rebater algumas das principais e previsíveis críticas, muitas delas com um recorte de grande violência, que foram feitas após a saída da primeira edição deste livro, vencedor do Pen Award para a não-ficção de 2005 e grande êxito de vendas. No mundo onde é possível editar livros destes e debater estes temas, evidentemente.
Tendo-lhe sido perguntado, em entrevista da revista Sábado, se se identificava com o Zorro ou com D. Quixote, José Sá Fernandes, o protagonista da «candidatura alface» do Bloco de Esquerda à Câmara de Lisboa, afirmou, como era de prever num candidato partidário a alguma coisa, «com o Zorro porque tinha os pés na terra». Sendo grande a minha simpatia pelo herói mascarado – mais ousado até do que Sá Fernandes o pinta (sobretudo na versão de Isabel Allende) – sinto principalmente a falta de Quixotes. Um dos problemas de algumas das forças que a dada altura pretenderam renovar a política activa e a participação dos cidadãos talvez advenha mesmo destas não lhes darem grande atenção. O espectro gélido de Lenine paira ainda em muitos horizontes.
Admito que a afirmação do ministro Mário Lino a propósito do «deserto» situado abaixo do habitat das senhoras tágides tenha sido, para além de politicamente controversa, uma valente gaffe. Mas já deu para entender que ML habita, ele próprio, um outro deserto: o dos «homens públicos» com sentido de humor e alguma propensão para a introdução de critérios de subjectividade no sempre previsível discurso de Estado. Considero isso extremamente saudável e até lhe agradeço a singularidade. E, claro, não deve pedir desculpa coisíssima nenhuma por ter dito aquilo que disse e como o disse. Será bom até, para a saúde mental da Lusitânia, que o faça mais vezes. Ainda que depois se veja forçado a corrigir o tiro. Se mais políticos agissem com este estilo, talvez a opinião pública lhes prestasse uma maior atenção. A maioria deles, porém, simplesmente não é capaz de o fazer. Ou então vive de mãos atadas e de língua presa.
Nunca vi uma emissão da Radio Caracas Televisión (RCTV). Sei apenas que se opõe ao populismo chavista, o que, não sendo em si necessariamente bom ou mau, jamais deveria ser crime punível por lei. Também não gosto das posições públicas de muita gente, da linha política de determinados partidos, do perfil e da publicidade de certas empresas, da cara de certos sujeitos que me entram em casa através do ecrã, e jamais me passaria pela cabeça tirar-lhes a voz ou mandá-los prender apenas porque me desagrada aquilo que dizem. Prefiro ignorá-los, mudar de canal, assobiar uma marchinha de Santo António ou dar um passeio de bicicleta. Acredito aliás – pelo menos desde quando dizê-lo poderia custar a liberdade ou a carreira a qualquer cidadão – que a aceitação integral da diferença, ou mesmo da afronta, é um elemento essencial da democracia. E que, quando elas colidem com os nossos direitos, existem tribunais próprios para tratar o assunto. Ou uma opinião pública livre para exprimir o seu próprio juízo. Por isso, considero inaceitável o encerramento do canal pioneiro da televisão venezuelana pelo simples motivo deste ser contra o governo legítimo do país e de o assumir de viva voz.
Sabe-se como grande parte da esquerda populista sul-americana é, no que toca ao respeito pela democracia, herdeira apenas levemente espúria de alguns dos princípios que alimentaram a triste experiência das «democracias populares», mas deveria esperar-se que a portuguesa, num contexto cultural e social muito diferente, e com a experiência de luta pela liberdade que detém no seu lastro, mostrasse outra atitude e, independentemente de defender uma ou outra das partes, assumisse uma posição de princípio sobre a censura imposta na Venezuela. Mas assim não é, como se pode ver: o Partido Socialista fecha-se em copas (diplomacia oblige, dizem), o Partido Comunista exulta e o Bloco de Esquerda limita-se a tomar nota. Afinal quem poderia, entre nós, defender a liberdade de expressão, a verdadeira, aquela sem adjectivos, se tal um dia fosse preciso? A «direita moderna»?
Nota: Fica prometida uma série de pequenos textos sobre a grande traição da nossa esquerda aos seus valores fundadores.
1. Nos sistemas de poder centrados na lógica dos aparelhos, esta tende a projectar para lugares de responsabilidade não aqueles (e aquelas) que são os melhores, mas aquelas (e aqueles) que melhor se movimentam por entre as suas complicadas engrenagens. Em Portugal a situação tem piorado na medida exacta em que o currículo político, em termos de filiação a causas, a convicções ou a programas, deixou de ser critério de valorização. Promove-se principalmente quem se movimenta melhor dentro dos organismos partidários e possua uma pequena «competência» adequada às funções. Se possuir alguma visibilidade mediática, tanto melhor.
2. Não existindo partido de poder inocente, o PS é, sem dúvida, aquele que melhor dá corpo a esta realidade. Existem no Partido Socialista lugares de responsabilidade intermédia sistematicamente atribuídos a gente incapaz de fundamentar politicamente o seu «socialismo», ou mesmo a sua formação democrática, e que por isso mesmo, fora das mais ou menos hábeis proclamações retóricas, jamais os levam em grande consideração. Com a agravante de, dada a origem social e a formação de muitos dos seus quadros, ser este o partido com mais condições para – ao lado da honestidade e da dedicação de muitos dos seus militantes – albergar o pior arrivismo e a mais abjecta arrogância. Os de gente que sobe porque precisa mesmo subir e que se apanhou a mandar de um momento para o outro. Depois dá no que dá.
3. Ainda ninguém foi capaz de explicar como é que a senhora directora soube da «insultuosa» frase do professor afastado. Existem no edifício da DREN microfones nas paredes? Ou será que a única pessoa que estava com o mesmo professor, e que este declarou ontem ser «um grande amigo», ouve vozes e fala sozinha? A delação também pode ser um critério de promoção pessoal. Vem nos livros. É feio, mas eles não se importam. It’s part of the game.
Escrito depois [25/5]: A coluna de Vasco Pulido Valente no Público de hoje refere-se também ao assunto. Nela se incorpora uma informação, diferente daquela dada de viva voz pelo professor visado, e que aponta para a existência de múltiplas testemunhas. Num caso ou no outro, o papel do denunciante é o mesmo. E o do sistema que o aceita também.
Fora das iniciativas que não possam fracturar o «domínio imperial», um sector significativo dessa velha esquerda que se presume remoçada esquece ou despreza muitas das causas que, afinal, poderiam integrar o lado mais nobre e essencial da sua própria tradição. Aquela que não sucumbiu aos crimes sem remissão do estalinismo e dos seus substitutos mortos-vivos. O combate pela liberdade de expressão e de pensamento, pela justiça social como valor indiscutível, pela efectiva aproximação entre povos e nações, a luta pela emancipação face à opressão e ao obscurantismo, tornam-se assim «bons» ou «maus» apenas na medida em que se revelem úteis no cerco à América ou possam servir para enfraquecer aqueles que a combatem. Tudo o mais é irrelevante e pode ser manipulado, como acontece quando se procura transformar seres agressivos e autoritários como Mahmoud Ahmadinejad ou Hugo Chávez em paladinos mundiais da justiça entre as nações.
Um último exemplo desta atitude hipócrita é-nos oferecido pelo silêncio diante do actual avanço dos islamitas na Turquia, na sua tentativa para destruírem os fundamentos do estado laico que Kemal Ataturk fundou em 1923 e instalarem um poder teocrático, inevitavelmente repressivo e, claro, «anti-imperial». As enormes manifestações de cidadãos comuns com uma aparência educada e moderna, de mulheres que se batem para preservarem direitos que não querem perder debaixo do véu islâmico, o medo e a revolta que se instalam entre eles, aqui mesmo às portas da Europa, não parece colher grande simpatia, nem ímpetos solidários, nem palavras emocionadas, desse lado de uma esquerda esclerosada que, cada vez mais, tende a deixar para a nova direita os combates por essa «coisa relativa» que é liberdade individual e o direito à diferença. A alma intolerante e autoritária de muitos dos órfãos de Lenine, o legado da sua matricial obsessão com a dimensão estritamente táctica da iniciativa política, sobrepõem-se à capacidade de indignação diante da iniquidade e às velhas bandeiras da liberdade e do laicismo, pelas quais tantos dos seus, num passado agora longínquo, um dia se bateram. Acontece que «isso agora não interessa nada.»
Na generalidade dos países industrializados, fora de algumas organizações sindicais e dos militantes e simpatizantes dos partidos e movimentos tardo-marxistas, já poucos descem à rua no 1º de Maio para gritarem palavras de ordem. Longe das áreas nas quais as contradições sociais ainda inspiram, compreensivelmente, a consagração simbólica da luta de classes, por aqui trata-se apenas, para a imensa maioria, de mais um feriado. Dia de passeio que outrora foi pelo campo e hoje segue a passo pelos grandes centros comerciais, tempo para dormir uma sesta sem ninguém que incomode, às vezes para namorar um pouco, para acertar umas almoçaradas, para um jogo de futebol entre amigos. Quando se liga a televisão, podem ver-se os horríveis cortejos militares de Pequim ou de Pyongyang, a sombra de Fidel na Praça havanesa da Revolução, os velhos moscovitas saudosos do império que cantam a Internacional ao lado de uns quantos adolescentes de comportamento duvidoso. Um pouco mais de intensidade, talvez, em Beirute, Caracas ou Manila.
Por aqui, desfiles de rua com os mesmo sindicalistas (ou os seus clones) que há mais de 30 anos, inamovíveis nos seus lugares protegidos, gritam as mesmas palavras de ordem («U-ni-da-de-Sin-di-cal!», «Go-ver-no-Pará-rua!») que já ninguém sabe muito bem que coisa significam ou para que servem. Poucos são os trabalhadores sem enquadramento e quase não vejo jovens desempregados, imigrantes, contratados a prazo, tarefeiros, diplomados sem expectativa de emprego, ecologistas, gays, lésbicas, prostitutas, deficientes, mulheres em defesa dos seus direitos, membros de ONGs: largas centenas de milhar de pessoas, em breve muitas mais, situadas completamente fora do aparelho produtivo, e que o velho sindicalismo não sabe (ou não quer? ou não pode?) mobilizar. Não pagam quotas, não militam, não votam, não desfraldam bandeiras vermelhas, mas esperam por algo mais do que a compreensão da sociedade em que vivem. Ninguém lhe poderá dizer que «depois da revolução» os seus amanhãs cantarão. Mas também não está no seu horizonte que um dia, quando estivermos todos longe «da cauda da Europa» e a viver riquíssimos num país «de excelência», as oportunidades lhes sejam concedidas.