Arquivo de Categorias: Poesia

A poesia não é para os cães

poetry

Para que serve a poesia hoje? é um pequeno livro de Jean-Claude Pinson, recém-editado pela Deriva, que nos ajuda a responder a uma pergunta completamente actual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projectado para a evasão, que jamais deixou de ser mas deve reassumir.

(…) o poeta – o poeta baudelairiano – confia-se à musa citadina em vez da académica, e coloca-se do lado do que é «fraco, arruinado, entristecido, órfão». Canta sem refilar os «cães calamitosos que erram, solitários, nas ruínas sinuosas das imensas cidades». E talvez seja por a poesia não hesitar em encarregar-se, acrescenta Baudelaire, da «honra dos cães sujos», que pode esperar contribuir para que permaneça aberta outra habitação do mundo, menos alienada. Pois a poesia não é, apesar de tudo, feita para os cães.

    Atualidade, Poesia

    Do sentido do transitório

    poeta

    Percorrendo os arquivos de um dos meus primeiros blogues, dou de caras com este post-proposta datado de Dezembro de 2003. Pura arqueologia, pois.

    O poeta, porque transporta consigo a liberdade, é um viajante. Longe de se perder nas esferas menores do reino do efémero,  cruza a mais antiga memória com impaciência juvenil diante do não visto e do que está por cumprir. Crivado de passados, organiza emoções e renova desejos. Combina experiência e invenção. É moderno na medida do seu arcaísmo. É o próprio tempo. Por isso todos os ministérios, direcções-gerais, gabinetes jurídicos, administrações, conselhos directivos, estados-maiores, deverão no futuro integrar um núcleo avançado de poetas. Para que jamais percam o sentido do importante, do realmente importante, que é o transitório.

    Uma possibilidade maiakovskiana que não pesaria muito no Orçamento Geral do Estado.

      Devaneios, Olhares, Poesia

      A sorte de Boris

      Boris Pasternak

      Apesar de tudo, Boris Pasternak foi um homem com sorte. Muito poucos intelectuais soviéticos terão sido amigos de tantos autores perseguidos por não aderirem aos cânones do realismo socialista ou por atacarem abertamente José Estaline – como, no seu círculo, aconteceu com Osip Mandelshtam, Marina Tsvetayeva, Anna Akhmatova ou Mikhail Bulgakov – e viveram tempo suficiente para se gabarem disso. É verdade que ainda hoje é mais conhecido na Rússia como poeta do que como romancista, em virtude de O Doutor Jivago ter sido silenciado por motivos políticos e de em 1958 ter sido impedido de aceitar o Prémio Nobel da Literatura, mas pôde manter o privilégio de fazer aquilo que fazia, se bem que de forma condicionada. O jornalista e também escritor Ilya Ehrenburg conta nas suas memórias um episódio que ilustra o clima no qual se vivia em plena época do Grande Terror (1936-1938). Ilya regressava a Moscovo depois de uma temporada em Espanha, onde cobrira como correspondente a Guerra Civil, quando deparou com um aviso na porta do elevador do prédio onde vivia: «Proibido deitar livros na retrete. Os infractores serão descobertos e castigados». Os moradores procuravam desfazer-se dos livros de autores que tinham sido liminarmente proibidos. De que forma Boris Pasternak sobreviveu a este ambiente de medo e coacção é algo que está por esclarecer. Provavelmente nunca teremos uma resposta. Mas por distracção do regime e do NKVD não terá sido com toda a certeza. Um tema desenvolvido no El País de hoje.

        História, Poesia

        O outro Vladimir

        Maïakovski

        Na minha alma não tenho um só cabelo branco,
        nem a doçura dos velhos.
        Diante do meu verbo vigoroso, o mundo treme
        aqui vou eu – soberbo
        com os meus vinte e dois anos.

        | do prólogo de A Nuvem de Calças (1915)

        Acaba de me chegar La Vie en Jeu, a primeira tradução do sueco da biografia do poeta, revolucionário e provocador Vladimir Maïakovski (1893-1930). O autor, Bengt Janfeldt, desenha um retrato revisto e bastante aumentado para o qual se serviu dos testemunhos inéditos de pessoas muito próximas, de arquivos privados e principalmente de documentos recentemente disponibilizados que foram propriedade exclusiva dos serviços secretos soviéticos e britânicos. Seiscentas páginas de um trajecto voraz e rigorosamente vigiado. Uma edição da Albin Michel que me servirá de companhia durante os próximos dias. Darei notícias.

          História, Poesia

          WW e o 4 de Julho

          Walt Whitman

          Mesmo à medida das mentes acossadas da casta dirigente da Coreia do Norte, a escolha deste 4 de Julho para lançar mais sete mísseis balísticos sobre o Mar do Japão. Aliás, já em 2006 haviam feito a mesma coisa. O aniversário da Declaração de Independência dos Estados Unidos América – documento fundador do mundo contemporâneo que em 1776 preludiou a Revolução Francesa e questionou o domínio colonial dos europeus – pareceu-lhes uma óptima data para demonstrarem com fogo-de-artifício as saudades que têm da Guerra Fria. Só que no mesmíssimo dia, embora em 1855, Walt Whitman publicou a primeira edição de Leaves of Grass, impressa na Rome Brothers. Bem vistas as coisas, talvez esta data possa não agastar menos os norte-coreanos. E também os seus comparsas de outras latitudes.

          FOR YOU O DEMOCRACY

          Come, I will make the continent indissoluble,
          I will make the most splendid race the sun ever shone upon,
          I will make divine magnetic lands,
          With the love of comrades,
          With the life-long love of comrades.

          I will plant companionship thick as trees along all the rivers of America, and along the
          shores of the great lakes, and all over the prairies,
          I will make inseparable cities with their arms about each other’s necks,
          By the love of comrades,
          By the manly love of comrades.

          For you these from me, O Democracy, to serve you ma femme!
          For you, for you I am trilling these songs.

          Walt Whitman – Leaves of Grass

            Atualidade, Memória, Poesia

            Anche noi

            Apesar de tantos e tão justificados rumores em redor do centenário do poeta, romancista, crítico literário e tradutor Cesare Pavese (1908-1950), chegados durante esta última semana de todas as partes, quase ia passando em claro este pedaço de noite.

            Anche noi ci fermiamo a sentire la notte
            nell’instante che il vento è piú nudo: le vie
            sono fredde di vento, ogni odore è caduto;
            le narici si levano verso le luci oscillanto.

            Também nós paramos para sentir a noite
            no instante em que o vento é mais nu: as ruas
            estão frias de vento, todos os odores caíram;
            as narinas erguem-se para as luzes que tremem.

            Fragmento de «Piaceri Notturni»
            (Trad. de Carlos Leite in Trabalhar Cansa, Ed. Cotovia)

              Olhares, Poesia

              Before and After

              «In what distant deeps or skies
              Burnt the fire of thine eyes?»

              –William Blake, The Tyger

              Awakened from her slumber
              she knew something had gone–
              a drowsy innocence,
              a complacent naitivity…
              suddenly, in rude simplicity,
              gone.

              Shut against the world,
              thousands of deaths evade her eyes;
              their blood her own
              spilled by her own–
              an indifference.

              Their blood her own,
              in thousands (neither more nor less)
              suddenly, in rude simplicity,
              gone–

              And now,
              some how,
              a difference.

              Um poema de Julie Craig

                Atualidade, Memória, Poesia

                Através da noite

                Ela está exposta na sua frágil frescura
                e um pouco mais longínqua e despojada.
                Ele procura-a no cimo da montanha
                ou numa vertente vertical. A noite é calma,
                um barco atravessa o mundo. Junto de um rio
                brilham chamas sem rumor. Dispersas
                são as imagens e as vozes, mas reunidas
                num outro mundo mais sereno e vagaroso.
                Ele soletra a pedra nupcial e misteriosa.
                Um grito rápido de pássaro atravessa a clareira.
                Entre duas árvores cintila a Cassiopeia.
                Passam esquivas sombras sob os ramos das árvores.
                António Ramos Rosa
                Banda sonora: Bouzou Bajou – Second to None

                  Música, Olhares, Poesia

                  Vozes

                  A fala de algumas línguas, sobretudo a daquelas que não entendemos, define sempre uma harmonia, uma emoção peculiar, que somos incapazes de representar na nossa própria língua. Ouvi certa vez o palestiniano Abdel Karim Sabawi ditar em árabe um dos seus poemas. Não entendi uma só palavra, mas vi estender-se pelo ar, dois passos à minha frente, uma espiral única de vozes e de inequívocos ritmos. A língua italiana, novilatina e por isso mais próxima, essencialmente calorosa, salienta também esse efeito, sobretudo quando pronunciada num dos seus incompreensíveis dialectos. Mas nada de tão raro quanto o grego falado aos seus ignaros. Simultaneamente indecifrável e materno, próximo e fugidio, parece revelar em poucas palavras a bruma azulada, o cheiro a flores cortadas, um resvalar de risos.

                    Devaneios, Poesia

                    Insolência

                    antevisão de pernas

                    Os poetas machos da geração que me antecedeu
                    falavam obsessivamente das pernas das mulheres.
                    Viviam num universo móvel onde elas as pernas
                    prefiguravam o indizível distante que as mãos,
                    tangentes, iriam procurar e querer depois beijar.
                    Habitavam o lugar distante lá onde todo o desejo
                    perfazia em privado a intenção das linhas ondulantes.

                    Os da minha, que eu saiba procuraram o corpo
                    erotismo táctil ignorante de pernas porém ágil em pêlos
                    odores líquidos nos lugares que não era preciso vigiar.
                    Saíam de manhã as mãos abertas averiguando o vento
                    preliminar de encontros indagados sob as árvores
                    ou em camas cedidas nuas por companheiros solitários.
                    Sabem da urgência diurna que antecede o silêncio.

                      Etc., Poesia