O factor mais impressionante de toda a barbárie que passou por Brasília, e que tende a emergir noutras paragens, consiste em a espécie de seres que a protagonizou – tendo a nem lhe chamar gente – apenas reagir aos slogans vagos que lhe inculcam e ser «anti» algo que nem sabe explicar. Não tem reivindicações objetivas, não possui um manifesto, não é capaz sequer de respeitar os valores patrimoniais comuns, como se viu na destruição indiscriminada de valiosas peças de arte, de mobiliário, de computadores e dos próprios edifícios públicos. Lula disse ontem, durante a visita que fez ao local após uma reunião com os governadores estaduais, que «a democracia é a coisa mais complicada para a gente fazer, porque exige gente suportar os outros, exige conviver com quem a gente não gosta.» Palavras justas, sem dúvida, mas construí-la e mantê-la terá de ser sempre com homens e mulheres, na sua diferença, jamais com feras ululantes, incapazes de agir fora do bando e que apenas respondem ao instinto.
A nostalgia do «Expresso» que foi
Completaram-se ontem, 6 de janeiro de 2023, cinquenta anos de vida do semanário «Expresso». Fui seu leitor desde o primeiro número, saído ainda em pleno marcelismo como expressão de uma oposição consentida pelo regime, e durante mais de quatro décadas não perdi um só. Mesmo quando fora do país ou em algum lugar onde o jornal não chegava, tinha sempre um quiosque que guardava o meu exemplar. Boa parte desse tempo integrou um ritual das manhãs de sábado, comprando o «espesso» e lendo-o depois normalmente no café. Em particular o bom suplemento cultural, durante uma boa época designado «Revista», e deixando de lado a volumosa publicidade e o caderno de Economia, uma área que infelizmente jamais foi a minha praia. A partir de certa altura passei para a edição digital, que assinei e lia no tablet, libertando-me de vez daquele saco de papel que alguns leitores costumeiros e mais tradicionais ainda exibem como um emblema geracional.
ler mais deste artigoTotalitarismo: um conceito plural e útil
Usado hoje de uma forma constante em artigos de opinião, notícias e reportagens, mas também em campos do conhecimento como a história, a ciência política, a filosofia ou a sociologia, o conceito de totalitarismo é, ao mesmo tempo, útil e questionável. Para ser útil deve utilizar-se em contexto, e não como um chavão aplicado indiscriminadamente, segundo formas que chegam a tocar o absurdo. Exemplificando, ainda há pouco tempo encontrei uma referência ao estilo de direção pouco dialogante do presidente de um grande clube de futebol caraterizando-a como «totalitária», o que é, obviamente, tão impreciso quanto disparatado. Já a sua dimensão questionável depende do caráter não consensual da pluralidade de significados que realmente encerra. A mesma que faz com que parte da esquerda o rejeite liminarmente e certa direita dele se sirva de uma forma politicamente obscena.
ler mais deste artigo«Pegada digital», vida pública e solidão
A rápida transformação nos processos de comunicação que teve lugar nos últimos trinta anos, associada ao papel dos meios eletrónicos, determinou alterações bruscas e extremas nas diferentes formas de qualquer de nós se relacionar em sociedade. À distinção tradicional entre os que procuravam o reconhecimento pessoal e o das suas ideias, e aqueles que preferiam viver no completo anonimato, juntou-se um campo híbrido intermédio e em constante expansão: o daqueles que, tendo ou não produzido «obras valerosas», podem ser escutados por bom número dos seus semelhantes.
ler mais deste artigoSemente de esperança vinda do passado
Dizia-me alguém, num registo ao mesmo tempo pedagógico e trocista, que «iluminismo não é palavrão». Não posso estar mais de acordo. A afirmação cega de um relativismo radical, assente na ideia absurda segundo a qual a tradição cultural europeia – sem dúvida associada também a formas de injustiça, opressão e desigualdade – é pobre e nociva, levando muitas pessoas sectárias ou sem informação a ignorar o papel emancipatório dos princípios basilares dessa corrente cultural laica que se afirmou no século XVIII. Na direção contrária, sectores do pensamento contemporâneo, defensores de formas de autoritarismo e de controlo dos cidadãos, olham-na como instrumento fundador de um conceito de liberdade e progresso municiador nos séculos seguintes de dinâmicas democráticas e revolucionárias, que rejeitam e pretendem destruir.
ler mais deste artigo«Etc.»
Como sabem muitas pessoas, «Etc.» é a abreviatura da expressão latina «Et cetera», ou «Et coetera», que significa «e outras coisas mais», ou «e assim por diante». Durante o meu (antigo) ensino secundário diversos professores nos avisaram repetidamente para evitarmos a expressão, sobretudo se quiséssemos exprimir-nos com clareza e de forma completa. Como professor fiz o mesmo a muitos milhares de alunos: poderiam usar a abreviatura nos seus apontamentos, ou então em mensagens privadas, mas jamais em teste, exame ou trabalho escrito, sabendo toda a gente que o que apresentavam seria muito desvalorizado se o fizessem. Não era um mero capricho: «Etc.» traduz uma forma de preguiçoso facilitismo, por vezes de descrédito, que tende a apagar conhecimento ou a afirmar a ideia segundo a qual onde existe diversidade «é tudo mais ou menos a mesma coisa». Hoje mesmo escutei uma alta responsável ligada a um orgão de gestão de uma prestigiada universidade portuguesa usar de forma repetida esta miserável muleta durante uma comunicação pública e admito que senti algo entre a náusea e o arrepio.
[originalmente no Facebook]
A grande arte do aforismo
«A verdadeira eloquência consiste em dizer tudo aquilo que é preciso,
e não em dizer seja lá o que for.» (La Rochefoucauld, 1613-1680)
Insisto na declaração de amor pela grande arte do aforismo. Vindo do grego ἀφορισμός, «aphorismós», que significa «definição breve» ou «sentença», o termo traduz essencialmente a enunciação sucinta de um pensamento de natureza moral. A sua brevidade, todavia, pode ser enganadora a respeito do seu valor. Na verdade, ela articula reflexão, saber e experiência num todo em que determinados aspetos da vida do indivíduo ou da coletividade emergem sob a forma de mensagem de uma humanidade e de uma profundidade intemporais. Parecendo semelhante ao adágio, vai mais longe que este pois apela mais ao conhecimento, à sabedoria transmitida, que à simples evidência. Também não emerge como mera intuição, como «achismo» mais ou menos repentista, sendo sempre resultado, por parte de quem o produz, de um trabalho de amadurecimento. «Aforismistas» essenciais foram Erasmo de Roterdão, provavelmente o criador do género, Rabelais, La Rochefoucauld, Voltaire, Benjamim Franklin, Flaubert, Nietzsche, Kafka, Karl Kraus, Sartre ou Adorno, mas os meus favoritos são Montaigne, Emil Cioran e, é claro, Camus. Nessas curtas linhas plenas de sensibilidade e sabedoria que nos foram legando tenho encontrado o que de mais essencial pude aprender.
Cheias: ditadura e democracia
Quem mora na região de Lisboa está a sentir com especial gravidade, também devido à concentração populacional, os efeitos desta chuva intensa e que não para, mas grande parte do país vive idêntico problema. Após largos anos de seca, com aguaceiros intermitentes, tínhamos esquecido por cá o poder das verdadeiras tempestades. Tento recordar um temporal destes em Portugal e preciso recuar até aos anos 70, para recuperar algo assim. Os meteorologistas é que têm os dados certos, mas é esta a imagem que tenho.
ler mais deste artigoA «ortodoxia suave» do PCP
Talvez mais em resultado da conjugação dos astros que por um efeito do mero acaso, no mesmo dia desta semana de dezembro os jornais «Público» e «Diário de Notícias» atribuem um grande destaque ao que consideram ser sinais de moderação, ou de distanciamento e de suavização da ortodoxia, por parte do PCP. Os sinais que referem não permitem, no entanto, inferir com clareza essa dinâmica, e apontam a aspetos que até nem seriam os mais importantes num processo de eventual e efetivo «aggiornamento» do partido. Os articulistas, porém, entendem que assim é.
ler mais deste artigoO papel do trabalho de revisão
Como sabe quem escreve com regularidade livros e artigos, o trabalho de revisão de um original realizado por alguém competente e sensível é crucial, podendo salvar a correção e a elegância do texto, embora possa também traduzir-se em alguns desastres. Muitos autores consagrados, certos deles premiados, sentiriam vergonha ao ler os seus originais publicados sem estes terem passado por essa etapa. E os leitores habituais nem os reconheceriam. Erros e gralhas, repetições de frases ou de palavras, parágrafos pouco claros, falhas de concordância, pontuação deficiente, e por aí afora. Basta, para quem preste atenção, ver como alguma dessas pessoas atabalhoadamente escrevem nas redes sociais e depois o modo como os seus originais são publicados impressos ou no digital.
ler mais deste artigoExtrema-direita e apatia da democracia
Com dezenas de prisões de pessoas com algum destaque social e político, acaba de ser desmantelada na Alemanha uma conjura, sustentada em teorias da conspiração, destinada a preparar a tomada do parlamento e a provocar um golpe de Estado, da qual sairia de seguida uma revisão das condições de rendição do país após a Segunda Guerra Mundial. A reação imediata de muitos de nós foi de incredulidade, pois geralmente damos como assente que a Alemanha é uma democracia estabilizada e que os traumas associados à ascensão e à queda do nazismo estariam enterrados. Esta é, todavia, mais uma prova da ascensão da extrema-direita revanchista fundada agora nas dinâmicas do populismo, nas falhas da memória coletiva e na visível apatia da democracia.
ler mais deste artigoContra o referendo sobre a morte assistida
Salvo em momentos de total bloqueio político, sou absolutamente contrário ao recurso, em democracia, à experiência do referendo. Se nos colocarmos no plano estrito dos princípios, ele pode, sem dúvida, parecer uma forma de democracia direta que completa as da democracia representativa. Todavia, tende a minimizar a reflexão e o debate, cingindo-se a respostas primárias, de «sim» ou «não», face a perguntas muito simples, o que tenderá sempre a dar maior poder de decisão aos setores menos informados e mais despolitizados. Por isto mesmo é uma arma perigosa, sempre bastante apreciada pelos populistas.
ler mais deste artigoNoventa anos sobre o Holodomor
Estão, por estes dias, a ser lembrados os noventa anos volvidos sobre a ocorrência do genocídio do Holodomor. Refiro-me à morte pela fome ou através de execuções e de deportações assassinas, entre 1932 e 1933, de no mínimo 4 milhões de ucranianos – algumas estimativas mais ousadas chegam aos 12 milhões, incluindo-se aqui os fortes abalos na natalidade – sobretudo entre camponeses pobres e pequenos proprietários rurais (os kulaks), mas tocando também setores políticos e intelectuais.
ler mais deste artigoO Catar, nervo político e «novo normal»
Apesar das objeções colocadas logo em 2010, quando a FIFA anunciou a sua escolha, nas últimas semanas tem sido especialmente contestada a realização do Mundial de futebol no Catar. As razões são múltiplas e persistentes, embora aqui deixe de parte as que têm uma natureza desportiva e as que se relacionam com casos de corrupção logo denunciados quando da escolha do local e da altura da prova. Centro-me antes em três questões de uma natureza política: a levantada pela caraterização do regime que governa aquele país do Golfo Pérsico, a que envolve a forma como os mais importantes responsáveis políticos nacionais a têm encarado e a que respeita ao modo como esta situação interpela a atividade e a consciência de quem se preocupa com os dilemas da «polis».
ler mais deste artigoPequena história com Saramago
Esta semana, o centenário do nascimento de José Saramago deu lugar a um vendaval de artigos e comentários. Para além daqueles produzidos por quem o leu e, gostando ou não de o fazer, tem em conta a sua condição de autor único e dedicado ao seu labor, destacam-se os extremos. Refiro-me às pessoas para as quais qualquer coisa que tenha a ver com o autor ribatejano é inequivocamente positiva e sagrada, e às que do lado oposto, muitas vezes sem o lerem com atenção ou conhecerem a sua biografia, fazem juízos de valor negativos e absolutos sobre a sua escrita e escolhas. Não sou, nunca fui, e sempre o declarei, grande apreciador da sua obra, que no campo da ficção li praticamente na íntegra, mas respeito muito o seu trabalho criador e também, naturalmente, quem o aprecia, distanciando-me apenas por questões de gosto e sensibilidade.
ler mais deste artigoOperários em construção
Por um destes dias, se entretanto não mudar de ideias, procurarei escrever algo substancial e historicamente sustentado sobre o tique «obrerista» – sempre justificado no plano teórico, como é óbvio – que fez e faz com que muitos quadros de partidos e organizações ligados ao amplo e diversificado movimento comunista sintam o dever de, mesmo não tendo sido de facto operários, ao longo da vida se fazerem passar por tal.
ler mais deste artigoProblemas de um contador
Como a maior parte das pessoas sabe, embora nem todas levem esta perceção às últimas consequências, ficção e realidade constituem dimensões diferentes, ainda que sempre se misturem. Seja no domínio dos factos, das representações ou da linguagem. Jamais a ficção pode prescindir da realidade, pois é esta que lhe fornece os códigos básicos de comunicação. E jamais a realidade pode dispensar a ficção, pois sem ela não passaria de um conjunto de ocorrências mecânicas e sem sentido algum. Por isso não é possível deparar com ficção ou com realidade em forma pura.
ler mais deste artigoExperimentalismo e vanguarda… ou nem por isso
Na arte, como na política e na vida em geral, o novo requer sempre impulso, ousadia, experimentação, por vezes a árdua capacidade de provocar, de remar contra a corrente ou de saltar sobre ela. Durante duas décadas e meia organizei todos os semestres na minha faculdade, em aulas de disciplinas de história cultural contemporânea, três horas de exposição e debate sobre o nascimento e o papel das vanguardas ocidentais sensivelmente entre 1910 e 1970. As estéticas, as filosóficas, as políticas e as vivenciais. Costumava alertar os alunos, todavia, sobre como sempre foi fácil – e mais ainda no tempo mais próximo – elas serem recuperadas pelo sistema de mercado e pelo pensamento dominante. Ou então transformadas, geralmente por ignorância, em formas de repetição do que se fez há já algumas décadas atrás.
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