Não se desculpa, nem se ignora

Reparei há dias, a acompanhar uma fotografia que circulou profusamente e mostrava a real dimensão, pequena de cerca de cem pessoas, da manifestação em favor de uma abstrata «defesa da polícia» convocada pelo Chega junto do parlamento, num comentário quase eufórico a proclamar «afinal são tão poucos!». Esquece quem o fez, esquecemos muitos de nós quando observamos estas aparentes demonstrações de insignificância, que uma das caraterísticas da extrema-direita é ser alimentada, em boa parte, por gente com medo de tudo, cheia de rancor por isto ou por aquilo, habituada a calar e a levar, sempre pela penumbra, a água ao seu moinho egoísta. Gente que não dá o rosto ou se manifesta.

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    A América também é aqui

    Há cerca de vinte anos, quando passei a ter nas aulas muitos estudantes brasileiros, reparei no grande desconforto que sentiam de cada vez que me referia aos Estados Unidos apenas como «a América». É um velho hábito europeu que ecoa um costume dos norte-americanos, transformando a palavra em conceito gerador de uma identidade transversal a ambos os lados do Atlântico. Como surgiu referido, em sentidos diversos vinculados a esse referente único, em Mon oncle d’Amérique, o filme de Alain Resnais, na canção pessimista This is not America, de David Bowie e Pat Metheny, ou sobretudo em God Bless America, o conhecido hino composto em 1918 por Irving Berlin, usado pela propaganda patriótica americana durante e após a Segunda Guerra Mundial. 

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      O Chega na fronteira do crime

      Para além das divergências políticas e ideológicas que, entre nós, o separam dos restantes partidos, sejam os de esquerda ou os da direita – embora os últimos ensaiem algumas aproximações oportunistas -, o Chega, maior partido da extrema-direita portuguesa, possui duas marcas que claramente o separam das demais forças políticas. A primeira consiste na defesa declarada e sem máscara do racismo, da xenofobia, do Estado autoritário, da homofobia, da nostalgia do Império e dos valores da ditadura derrubada a 25 de Abril. Inclui também a defesa da violência social contra minorias, pobres não-obedientes e imigrantes, e a rejeição da democracia, usada apenas em proveito próprio.

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        Má educação e ar puro

        Começou por acontecer com alguns jornalistas que me contactavam para pedir informações relacionadas com certos temas ou situações. Em regra, se estivesse ao meu alcance e não violasse princípios de ética dos quais não abdico, prontamente respondia. Por vezes, informava que não tinha forma de responder, disponibilizando-me no entanto para outra altura. Na larga e crescente maioria dos casos, nem um obrigado. Depois, começou a ocorrer com colegas organizadores de eventos ou publicações académicas, que perguntavam se estava disponível para colaborar. Quando não podia mesmo, ou não me interessava, ou não me considerava a pessoa certa, dava conta da impossibilidade, sempre de forma educada e cordial, agradecendo e ficando ao dispor. Uma palavra de apreço pela resposta, nem vê-la. Tornou-se um hábito, num universo ainda há não muitos anos maioritariamente pautado pela afabilidade e a ajuda mútua, o império do interesse imediato determinado pela «carreira» sobre o valor da relação pessoal. Face a esta feia e tristonha realidade, há anos que comecei a fazer uma lista negra de pessoas que passaram por este crivo, a quem por certo não mais responderei positivamente. Tenho bastante cuidado com a pureza do ar que respiro.

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          Ainda a necessidade e o perigo das vanguardas

          A palavra vanguarda é usada no vocabulário comum como metáfora de origem militar que alude ao destacamento especial dos exércitos destinado, durante as campanhas, a seguir muito à sua frente, tendo por objetivo reconhecer os caminhos que deveriam percorrer, observar melhor as forças do inimigo e realizar pequenas incursões destinadas a feri-lo ou a testá-lo. Atualmente a designação é associada a indivíduos, a experiências e a movimentos que, nos planos vivencial, estético, filosófico ou político, se mostram bem à frente das sociedades de onde emergem, propondo, ensaiando e materializando vias e dimensões caraterizadas pela ousadia, pela raridade e pelo pioneirismo.

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            O partido da triste figura

            Tenho escutado isto menos, mas durante décadas o Partido Ecologista Os Verdes foi entre nós sistematicamente apelidado de partido-melancia. Como esta, verde por fora e vermelho por dentro. Na verdade, tratou-se sempre, praticamente desde a sua fundação em 1982, e mais acentuadamente nos últimos anos, de um agrupamento satélite criatura do PCP, com a utilidade prática de agregar uns poucos votos de pessoas sensíveis à temática ecologista – pessoas com dificuldade em reparar que existem partidos, como o Livre, o PAN ou mesmo o BE, mais consequentes e ativos neste domínio – e sobretudo de justificar a formação de uma frente eleitoral designada «unitária», colocando nos boletins eleitorais, ao lado da foice e do martelo, um belíssimo girassol estilizado.

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              O 7 de outubro

              A 7 de outubro, quando se comemora o primeiro dia da era judaica, iniciada a 3761 AEC, completou-se um ano sobre o ataque do Hamas, lançado principalmente sobre alguns kibbutzim próximos da faixa de Gaza, aldeias comuns limítrofes e um festival de música para jovens, dele resultando de imediato o assassinato de cerca de mil israelitas, o rapto de perto de 250, muitos idosos e crianças, a violação de dezenas de mulheres, e um grande número de civis feridos. Teresa de Sousa chama-lhe «o maior massacre de judeus desde o Holocausto».

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                Embuste e menosprezo do saber contra a democracia 

                Apesar dos seus riscos e defeitos, uso com regularidade as redes sociais. São múltiplos os motivos: manter um contacto regular com algumas pessoas, divulgar ou saber de iniciativas, difundir artigos de opinião, saber de livros, séries e filmes, chegar na hora a notícias importantes, conhecer mais e de uma forma mais plural, e sobretudo tomar o pulso ao mundo em perpétua e rápida mudança. Elas podem ainda aproximar-nos de universos novos ou que geralmente desconhecemos. Por isso, digo a quem não as utiliza ou as abandonou, devido sobretudo ao excessivo ruído e à ocasional violência, que fazem mal e talvez delas não se tenham servido de um modo eficaz e necessariamente seletivo. 

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                  O beijo na face como pecado venial 

                  Pertenço à geração que recuperou, naturalizou e tomou como sua a prática convivial do beijo na face, fazendo dela uma forma habitual e partilhada de saudação ou uma expressão de amizade. Apesar de, devido aos interditos impostos por um padrão de masculinidade, dominante no ocidente, fora da família ele se mantivesse muito menos comum entre os homens, a partir dos anos sessenta do século XX passou a representar uma conquista no processo em aberto de aproximação entre corpos que anteriormente pouco se tocavam em público ou o faziam de uma forma por regra cerimonial. Associado à nova cultura urbana e libertária triunfante no pós-Segunda Guerra Mundial, o beijo na face, como também o uso mais público daquele dado na boca, transformou-se num emblema de informalidade democrática.

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                    Os incêndios, os incendiários e as televisões

                    Por razões sobretudo pessoais sou muito sensível ao drama anual dos incêndios florestais de verão. Nascido e criado na «Zona do Pinhal Interior Norte» – área que inclui 14 concelhos dos distritos de Coimbra e Leiria – recordo desde sempre o panorama regular destas calamidades e o medo que elas provocavam. Aconteceu mesmo, por duas vezes, ajudar no combate ao fogo, tendo numa delas chegado, juntamente com um pequeno grupo de populares, a ficar cercado pelas chamas. Uma memória inesquecível, como o é também a de exaustão absoluta, que nunca mais voltei a sentir, sentida após dois dias e duas noites sem dormir a combater o fogo.

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                      Por Olivença, «marchar, marchar»?

                      Há bastantes anos, conheci um rapaz que durante algum tempo insistiu em que eu me inscrevesse como fiel «Amigo de Olivença». Isto é, que me tornasse militante da causa dos que pretendem repor a soberania portuguesa e alentejana sobre aquela cidade raiana da Estremadura espanhola. Apesar de reconhecer a legitimidade do retorno de um território que, após a assinatura pela Espanha, em 1817, do tratado de Viena, esta reconheceu como português, não me pareceu causa sequer longinquamente prioritária, pelo que recusei aquela aproximação, passando até a referir privadamente o episódio como piada.

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                        O mito das criancinhas e Trump

                        Ao longo de décadas, um dos mais utilizados mitos usados por governos e partidos de orientação anticomunista foi a divulgação – a par de lendas sobre imaginárias injeções letais atrás da orelha impostas aos idosos – de que sob os regimes controlados pelos comunistas estes, por mera perversão, «comiam criancinhas ao pequeno almoço». A influência do mito foi tão forte e de tal modo transversal que ainda por volta de 1977 estive em debates em aulas onde alunos universitários, meus colegas à época, defendiam a veracidade desta ideia mirabolante.

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                          Excesso de presente e usos da história

                          O historiador François Hartog chamou «presentismo» a uma forma de encarar o tempo que desvaloriza o passado e despreza o futuro como dimensões da experiência humana, valorizando apenas o presente. Para quem a assume, esquece-se o que ficou para trás e apagam-se as utopias abertas ao futuro, visto como mera repetição da realidade atual, instalando-se a descrença na hipótese de mudanças substantivas. Resta então o presente como modo de orientação no tempo, tomando-se o anteriormente vivido como uma névoa ou uma sombra, e encarando-se o que virá sem réstia de esperança. Os «presentistas» habitam, pois, um eterno presente, que julgam o único lugar do possível. Uma perceção que não cai do céu, mas resulta da conjugação de cinco fatores. 

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                            Cegueira política e eleições nos EUA

                            Li ontem, no Público, um artigo de opinião Alexandra Lucas Coelho sobre a convenção dos democratas norte-americanos, pejorativamente intitulado «Kamalas, Obamas, Tonys & Tims: o espetáculo da América que arma a guerra», que é claro sinal de um posicionamento desastroso e irrealista face à política norte-americana e aos seus reflexos no mundo. Lamento dizê-lo, pois, apesar de com frequência pautado pelo viés do sempre restritivo «wokismo», gosto geralmente daquilo que, em diferentes géneros, a autora escreve.

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                              Kamala e a América

                              A noite passada, madrugada aqui em Portugal, o discurso de aceitação de Kamala Harris, perante a Convenção do Partido Democrata, como candidata à presidência dos EUA, foi, como seria de esperar, um excelente exercício de determinação e de retórica, recebido no centro de congressos de Chicago com um enorme entusiasmo e de forma triunfal. Se tivesse, como um certo presidente da República, a incumbência de atribuir notas de 0 a 20 no domínio da oratória, se a Barack e Michelle Obama teria atribuído, sem pestanejar, a ambos um 20, a Kamala dou sem qualquer dúvida um 19. Mas os Obama são, de certa forma, seres de outro planeta no campo da capacidade de comunicação, enquanto a afirmativa candidata democrata ainda pertence ao domínio do humano.

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                                As vidas, as obras e a complexidade de tudo

                                De tempos a tempos, quando por alguma razão – seja uma polémica, um prémio recebido ou o seu desaparecimento físico – se destacam nos jornais ou nas redes sociais figuras com um recorte público, é fácil surgirem arrebatados testemunhos, sejam os de quem apenas as elogia ou, no lado oposto, aproveita o momento para as denegrir. Umas e outras tendem a desvalorizar a complexidade do humano e o facto, sem exceções, de jamais alguém ter apenas realizado coisas formidáveis ou só cometido erros, oferecido unicamente beleza ou defendido ideias detestáveis. E, todavia, um grande número de pessoas tende a olhar as demais, sobretudo aquelas que se destacam da mediania, apenas sob uma perspetiva unívoca, dividindo-as de forma, singelamente dualista, apenas em indiscutivelmente «boas» e inequivocamente «más». 

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                                  Esperança e expectativa

                                  A renovada candidatura democrata à presidência dos Estados Unidos, agora com duas figuras enérgicas, carismáticas e progressistas no boletim, está a oferecer uma nova esperança a quem já dava por certa a vitória de Trump e do seu programa de destruição da democracia na América e de agravamento do equilíbrio mundial. Kamala Harris e Tim Waltz têm ambos um tom vibrante e um currículo de defesa dos direitos humanos, das mulheres, do serviço público e da liberdade que é muito positivo. Quem acompanha a realidade política norte-americana sabe que os meandros do Partido Democrata são complexos e nem sempre transparentes, mas esta não é altura para esquisitices, uma vez que são, de facto, dois universos opostos que estão em confronto. Perante o que se avizinhava, e como já mostram as sondagens, há agora uma viragem que todos os e as democratas do planeta esperam que se mantenha e alargue até ao voto popular de 5 de novembro.
                                  [Foto: Chris Lachall /USA Today]

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                                    Fé ou convicção

                                    Aquilo a que chamamos fé designa habitualmente uma crença de natureza religiosa, política ou moral que não carece de justificação racional e determina o empenho diário de quem a possui em prol do ideal no qual ela se apoia. Já a convicção é um estado de espírito que resulta de um facto ou de numa ideia cuja existência e sentido podemos provar de modo racional, deste processo resultando uma dose de certeza e de necessidade que conduz à ação. Os dois conceitos parecem, pois, antitéticos, mas quando o primeiro deles em certas circunstâncias contamina o segundo, tudo o que daí resulta é pervertido, passando a apresentar-se como convicção aquilo que não passa de uma extensão de fé. Na história humana, particularmente com religiões assassinas ou ideologias totalitárias, este contágio tem produzido sucessivos desastres.

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